Jornal do Chega com ‘tratamento de favor’ do regulador dos media

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Pedro Almeida Vieira|14/02/2025

O Chega usufruiu de um ‘regime especial’ concedido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social: apesar de não ter sequer jornalistas na sua Folha Nacional – o órgão de comunicação social em versão digital e impressa semanalmente –, o regulador permite ilegitimamente que ostente, na sua ficha técnica, um director (Nuno Valente), um director-adjunto (Patrícia Carvalho) e um subdirector (Ricardo Dias Pinto), além de um editor (Bernardo Pessanha). Ou seja, só ‘generais’ sem qualquer ‘soldado’. Assim, não surpreende que, apesar de actualizado diariamente, 97 das últimas 100 notícias, publicadas desde o dia 8 de Fevereiro, sejam ‘takes’ da Agência Lusa e apenas três são de ‘produção própria’, embora sem assinatura.

A Lei da Imprensa, um diploma de 1999 com a sua mais recente alteração de 2015, estabelece explicitamente, na secção da “organização das empresas jornalísticas”, que “nas publicações com mais de cinco jornalistas o director [que tem sempre de existir] pode ser coadjuvado por um ou mais directores-adjuntos ou subdirectores, que o substituem nas suas ausências ou impedimentos”. Ora, a Folha Nacional nem um, quanto mais seis jornalistas para possuir essa estrutura.

André Ventura, líder do Chega.

Aliás, nem o seu director, Nuno Valente – um assessor videógrafo do Grupo Parlamentar do Chega –, não tem carteira profissional ou de equiparado, algo que não é obrigatório no seu caso, uma vez que a Folha Nacional é classificada, no âmbito da Lei da Impresa, um periódico doutrinário, como são os casos do Povo Livre (PSD), Ação Socialista (PS), Esquerda.net (Bloco de Esquerda) e Avante (PCP).

Porém, ao contrário da Folha Nacional, nenhum dos outros órgãos de comunicação social considerados doutrinários por razões ideológicas – que se distinguem dos periódicos informativos por poderem ter um cunho ideológico assumido – têm mais do que o director no topo da sua estrutura, mesmo quando contam com jornalistas acreditados.

Por exemplo, o Avante – o quase centenário jornal do PCP – tem apenas um director, Manuel Rodrigues, que tem o chamado cartão equiparado a jornalista (TE310), – não tem director-adjunto, mesmo se conta, na sua redacção, com quatro jornalistas acreditados: Gustavo Carneiro (apresentado como chefe de redacção), João Chaqueira (apresentado como “chefe adjunto”) e dois redactores, Domingos Mealha e Hugo Janeiro.

Jornal ostenta um director, um director-adjunto e um subdirector, mas não tem jornalistas. Lei da Imprensa não permite, mas ERC fecha os olhos.

Já a Esquerda.net – a publicação online do Bloco de Esquerda – menciona apenas na sua ficha técnica o nome do director, Luís Branco, também jornalista acreditado. Apesar da generalidade das notícias não estarem assinadas, com excepção daquelas da autoria do próprio director, tudo está dentro da legalidade: com menos de seis jornalistas, não há mais nenhum cargo de direcção.

No caso da Ação Socialista, nada também a apontar. Há apenas um director – Porfírio Silva, ex-deputado socialista, sem título passado pela CCPJ, que no seu caso não é necessário – e mais duas pessoas na redacção: André Salgado e Mary Rodrigues, esta última jornalista acreditada.

Quanto ao Povo Livre, semanário do PSD, não surge uma ficha técnica específica no site, mas a edição imprensa ostenta apenas o nome da sua directora, a ex-deputada Emília Santos. Ou seja, sem mais qualquer cargo de direcção.

Contactada para esclarecer a legalidade da situação da Folha Nacional, a ERC – que costuma até fiscalizar a desconformidade dos logotipos, ameaçando com multas –, alega que  “nas publicação periódicas de natureza não jornalística não são exigíveis para os cargos de directores-adjuntos e subdirectores o cumprimento dos requisitos”, ou seja, a existência de uma redacção com mais de cinco jornalistas.

Patrícia Carvalho é deputada do Chega e assume-se como directora-adjunta da Folha Nacional. A Lei da Imprensa não petmite.

Contudo, na verdade – e apesar do regulador dos media, liderado agora por Helena Sousa, ser useiro e vezeiro em interpretações jurídicas rocambolescas –, a Lei da Imprensa é muito clara, ao explicitar que “nas publicações [independentemente de serem informativas ou doutrinárias] com mais de cinco jornalistas o director pode ser coadjuvado por um ou mais directores-adjuntos ou subdirectores, que o substituem nas suas ausências ou impedimentos”. E apenas remete para uma outra norma (artigo 19º) para dispensar a audição do conselho de redacção se os dirigentes de um periódico doutrinário mudarem ou indicarem o director e eventuais adjuntos. Convém dizer que a Folha Nacional não tem conselho de redacção, exactamente porque é uma publicação periódica com menos de seis jornalistas.

Além disso, uma empresa ou entidade com uma publicação doutrinária é sempre jornalística se for periódica, como estipula claramente a Lei da Imprensa. Só não será jornalística se se tratar de uma publicação não periódica, classificando-se, nesse caso, a empresa como editorial. A única coisa que distingue as publicações doutrinárias (como a Folha Nacional e as dos outros partidos) das publicações informativas é o conteúdo e abordagem. No grupo das publicações doutrinárias, o objectivo predominante passa pela divulgação de uma ideologia ou credo religioso. Ou seja, podem fazer artigos jornalísticos – como fazem, claramente, o Avante e o Esquerda.net – ou divulgar as notícias da Lusa, como insistentemente faz a Folha Nacional.

O PÁGINA UM consultou dois advogados que destacaram ser “absurda” a interpretação da ERC, que “baralha conceitos” da própria Lei da Imprensa. Isto porque “embora doutrinária a Folha Nacional é uma publicação periódica, logo jornalística, e assim, não tendo mais de cinco jornalistas, não pode ter directores adjuntos”, salienta um dos causídicos. “A classificação das empresas enquanto jornalísticas ou não é conferida pela periodicidade, e não por ‘achismos’”, acrescenta.

Regulador dos media ‘baralha’ conceitos da Lei da Imprensa para ‘legalizar’ Folha Nacional.

Outro dos juristas contactados pelo PÁGINA UM também salienta que, embora publicações doutrinárias possam funcionar sem jornalistas, isso “automaticamente impede-as de ter directores-adjuntos”, uma vez que nunca conseguirão cumprir o requisito do número mínimo de jornalistas para haver ‘ajudantes’ do director”.

O PÁGINA UM insistiu junto da ERC para que fosse indicada em concreto a norma jurídica que permitia a Folha Nacional cumular cargos de direcção editorial, em violação da Lei da Imprensa, mas o regulador não respondeu ainda. O PÁGINA UM também decidiu, ao abrigo do seu direito editorial de obter comentários, colocar questões ao director da Folha Nacional, mas não obteve resposta.

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