A viúva 

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Sílvia Quinteiro|15/02/2025

Estudar em Lisboa e partilhar quarto com uma estranha poderia ter sido uma experiência horrível. Mas não foi. Conheci a Luz, uma miúda como eu, oriunda da província. Ela do Norte, eu do Sul. Rapidamente nos tornámos inseparáveis. Mesmo quando vinha de fim de semana ao Algarve, era frequente a Luz viajar comigo.
Amorosa, de conversa fácil e sorriso luminoso, toda a gente a adorava, e ela correspondia com longos abraços e palavras doces.

A naturalidade com que se integrou na nossa rotina, rapidamente a tornou uma de nós, parecendo que sempre fizera parte do nosso mundo. E isso levou a que me questionasse sobre o silêncio em torno da sua família: os telefonemas e idas a casa eram raríssimos. Viajava apenas duas vezes por ano e, ainda assim, percebia-se o esforço hercúleo que fazia. Obviamente, nunca me atrevi a tocar no assunto.

Foi, por isso, com enorme espanto que um dia recebi o convite para ir passar uns dias com ela:

— Vou a casa no fim de semana prolongado. Queres vir comigo? — perguntou.

Achava que eu ia gostar da aldeia. Falou-me de pessoas calorosas, de um rio com um lugar perfeito para nadar, dos amigos de infância que lá viviam, das broas de milho que a mãe fazia como ninguém. Repentinamente, fez uma pausa. Explicou-me que com a mãe eu teria de ter muita paciência.

— É muito complicada, muito difícil. Especialmente depois da morte do meu pai… está impossível. — declarou, mantendo o tom de voz, mas não conseguindo disfarçar uma irritabilidade que lhe percebi pela primeira vez.

De súbito, começou a falar de uns livros que tinha de ir devolver à biblioteca. O assunto da mãe estava encerrado.

Os dias seguintes passaram num ápice. Havia muito a fazer: aulas, trabalhos para entregar, e compras, muitas compras. A Luz fazia questão de levar um visual novo para cada dia. Eu achava-lhe graça, porque em Lisboa e no Algarve nunca se preocupava com o que vestia e muito menos em maquilhar-se. Dizia-lhe que parecia os emigrantes em agosto. Ela encolhia os ombros, sorria e passava os modelos para eu dar opinião.

Chegou, finalmente, o grande dia. Mochilas prontas, um café no Galeto para despertar, e rumámos ao Saldanha para apanhar o expresso. Partimos em direção à autoestrada. Eu, animadíssima, a reparar em todas as placas: Vila Franca, Santarém, Torres Novas, Fátima, Coimbra, Aveiro, Estarreja, Porto. Ela, nem tanto.

Chegadas à Invicta, aguardámos a boleia da Telma, uma amiga da Luz que estudava na FLUP. Atirámos as mochilas para a bagageira e entrámos à pressa no carro parado em segunda fila, frente ao terminal.

Enquanto as velhas amigas punham a conversa em dia, eu, refastelada no banco de trás, deixava-me encantar pelo verde intenso, pela água abundante, pelas cameleiras dos jardins, pelas terreolas embutidas nas encostas e pelas pequenas hortas em socalcos. Habituada ao azul do mar e à maresia, deslumbrava-me o verde interminável e o cheiro a eucalipto.

A Telma deixou-nos à porta de casa. Marcou-se encontro para a tarde do dia seguinte. O Rui fazia 19 anos e ia dar uma festa na garagem. Toda a aldeia estava convidada.

— Foi por isso que viemos. — explicou a Luz, com uma piscadela de olho.

Não reconheci a minha amiga. Incomodou-me que me tivesse ocultado a festa. Ia preparada para fazer caminhadas, andar de bicicleta, nadar. Nem roupa adequada, nem presente. Perguntei-me porque teria agido daquela forma, mas optei por não a confrontar.

Despedidas feitas, eis que surge a mãe da Luz. Vestida de preto da cabeça aos pés, um ar pesado e um sorriso que quase não o era, a contrastar com a pele e os olhos muito azuis, brilhantes e joviais.
A Luz dirigiu-se lentamente em direção à mãe, deu-lhe um beijo esquivo, sussurrou um olá frio, e apresentou-nos. A viúva dirigiu-me um olhar desconfiado, que me atravessou. Murmurou umas palavras incompreensíveis e não consentiu que me aproximasse demasiado. Nesse preciso momento, tive a estranha sensação de que aquela viagem tinha sido uma péssima ideia.

A filha, ignorando a atitude da mãe, comunicou que iríamos subir para descansar. Logo à entrada, desculpou-se:

— Aqui cheira a cemitério, mas lá em cima não. Fica descansada. Ela enche a porcaria da mesa de velas.

A um canto, junto ao vão das escadas, uma mesa-redonda servia de altar. Imagens da Sagrada Família, da Virgem de Fátima, de santos e santinhos misturavam-se com jarras de flores de plástico, lamparinas vermelhas, restos da decoração de um Natal passado e fotografias de um homem que imaginei ser o pai da Luz.

Descemos apenas à hora do jantar. Pedi licença para usar o telefone e avisar a minha família de que tinha chegado bem. A chamada foi breve. Ainda assim, foi suficientemente longa para que, ao chegar à cozinha, encontrasse a Luz já entediada. A mãe falava, e ela suspirava. Quando entrei, calaram-se.

Quebrando o gelo, a senhora perguntou-me se os meus pais estavam bem. Respondi que sim, e, sem saber como, a conversa passou dos meus pais para o pai da Luz: que já lá estava, coitadinho; que muito sofrera com a doença; que tudo aguentara, sem proferir um ai; que trabalhara até perder as forças; que fora tão poupado; um homem sem vícios…

A filha interrompia-a. Dizia que não era conversa para ter à mesa. A mãe ignorava-a. Prosseguia, desfiando o rosário: minuto a minuto, consulta a consulta, cateter a cateter, escara a escara. A filha pedia que se calasse. Não era assunto para ter à hora da refeição. Indignada, a mãe olhava-a com ar de reprovação e retomava a ladainha: o último suspiro do seu homem; os gritos que ela dera; o caixão…

Não haviam decorrido trinta minutos, desde que me sentara à mesa, e já presenciava desavenças entre mãe e filha. — Vamos ao café! — ordenou-me a Luz, a meio do jantar.

Nunca a tinha visto alterada. Fiquei presa num limbo, constrangida, hesitante entre a descortesia de me ausentar, ofendendo a dona da casa, e a de abandonar a minha amiga.

Levantei-me, incomodada. Desculpei-me. A senhora olhou-me com desprezo. Senti pena dela. Pareceu-me muito só no mundo. Sem a filha por perto, mantinha-se fechada num casulo de silêncio. Desde que regressara de França, para onde emigrara com o marido, vivia entre quatro paredes. Encarei com normalidade a necessidade de falar que demonstrava. Acreditei perceber o sofrimento que ambas encobriam. A mãe precisava de verbalizar e lembrar; a filha, de silenciar e esquecer.

Quando desci para sair, a conversa havia subido de tom. Pelo caminho, esperei, em vão, que a Luz tocasse no assunto. Limitou-se a dizer que, depois do café, íamos para casa do Rui.

Mais uma vez, senti-me traída. Não me tinha arranjado para ir a uma festa. Lá chegada — botas de montanha, calças de ganga, camisolão de xadrez e bandolete a aguentar a melena selvagem —, recolhi-me a um canto, tentando passar despercebida, mas a Luz insistiu em levar-me até à pista de dança improvisada. Valeu-me a fraca iluminação e o fumo espesso dos cigarros. Já a Luz, dava nas vistas. Vestida e penteada de forma exuberante, e a mostrar os passes de dança aprendidos nas discotecas da capital, fazia o possível por ser o centro das atenções.

Regressámos tarde a casa. Disse-me que não me preocupasse com o barulho:

— A “santa” está acordada. Passa a noite a rezar.

No dia seguinte, acordámos tarde. A mãe saíra logo pela manhã. Tinha ido à missa, como todos os dias, explicou.

— Coitada — respondi —, deve sentir-se muito sozinha.

— Esquece. Foi sempre assim — respondeu, revirando os olhos.

— Mas… — tentei, acreditando que poderia ajudar a negociar uma trégua naquele campo de batalha.

— Mas, mas… Mas vamos é pôr-nos a andar, que temos programa para o dia inteiro. — atalhou.

Caminhámos pelas ruelas estreitas da aldeia, rodeadas por casinhas de pedra cinzenta. Todos a conheciam. Faziam-lhe perguntas sobre Lisboa, sobre os estudos. Queriam saber quem eu era. Perguntavam-me se estava a gostar da aldeia. Uns falavam com saudades de quando tinham vindo ao Algarve, outros de como sonhavam cá vir.

O dia passou depressa. Em casa, a mãe parecia de melhor humor. Tinha acabado de cozer broa. Sentámo-nos a comer. Perguntou-me se tinha namorado. Procurando arrancar uma gargalhada à minha amiga, decidi responder que sim, que ia casar no verão seguinte. Ela aguentou-se. Mas a verdadeira surpresa foi a reação da mãe. Pousou a caneca de café e a broa que tinha nas mãos e olhou-me fixamente.

— Não achas que és muito nova para isso? — perguntou de chofre.
Na dúvida, fui em frente. Contei-lhe que namorava havia muito tempo e que o rapaz era mais velho.

— Muito tempo? Eu namorei oito anos. — respondeu. — É um passo muito sério. Vocês têm a vida pela frente. Têm muito tempo para casar. Parece que estão fartas de estar bem.

Feita a advertência, acomodou-se na cadeira e mudou o tom. Seguiu-se a receita da broa, a lembrança do quanto o pai da Luz a apreciava e, claro, já que vinha a propósito, a repetição do relato feito ao jantar na noite anterior. Mais uma vez, a Luz, impaciente, pedia-lhe que parasse. Dizia-lhe que era mórbida. A mãe ignorava a irritação da filha, que me “convidou” novamente a abandonar a mesa. A situação repetiu-se várias vezes ao longo dos três dias.

Não foi preciso muito tempo nem particular perspicácia para perceber que na aldeia toda a gente conhecia a história daquela família. Todos perguntavam pela “santa”. A figura da viúva, longe de causar comiseração, era alvo de ironia. Pareceu-me errado e comentei com a Luz. Compreendia que a senhora fosse muito aborrecida, e que rezava o suficiente para mandar uma dúzia de alminhas para o Céu, que tinha alguma falta de noção, mas, caramba…. Nenhuma de nós podia avaliar o sofrimento de alguém que perde assim o companheiro de uma vida. Insisti para que fosse mais paciente e que se esforçasse por compreender a mãe.

Respondeu-me em forma de pergunta:

— Porque é que achas que ela reagiu daquela forma quando falaste em casamento? És muito nova para casar. Tens a vida à tua frente. Parece que estás farta de estar bem. Achas que é resposta de quem teve um casamento feliz?

Confidenciou-me que o pai era alcoólico e extremamente violento. Que levou alguns anos a associar as nódoas negras da mãe e as quedas quase diárias aos punhos do pai. Só percebeu quando chegou o momento em que começou a ter de explicar, na escola, os seus próprios desequilíbrios e tropeções.

Explicou-me como viviam ambas aterrorizadas. O pavor que sentiam quando ouviam ranger a porta. Disse-me que um vizinho chegou mesmo a dar-lhe “uns apertos”. Teve esperança, mas nada mudou.

A mãe, essa, defendeu-o sempre. Era um bom homem. Um bom pai. Nunca tinha deixado faltar nada em casa. A culpa era do vinho e das más companhias. Além disso, a roupa suja era para lavar em casa.

Talvez para sobreviver à dor, tinha inventado um marido que nunca existira e falava dele como se ninguém conhecesse a verdade. Os vizinhos, os amigos, os familiares não a contrariavam, apesar dos comentários sarcásticos que proferiam nas suas costas. Para a Luz, aquela hipocrisia era insuportável: as rezas sem fim, o luto, as visitas diárias ao cemitério, o ar de viúva sofrida, as lamúrias. Sentia-se aliviada e desejava muito que a mãe se libertasse do passado.

Partilhámos casa por mais dois anos. A “santa” deixou de ser tabu, apesar de estarem cada vez mais distantes. O Rui também passou a fazer parte das nossas conversas.

Terminámos o curso em 1992. Ela foi colocada no Minho, eu no Algarve. em breve, perderíamos o contacto.

Há dias, encontrei a Telma numa conferência. Perguntei-lhe pela Luz. Contou-me que a mãe tinha falecido havia meses. Quanto à Luz, casara com o Rui. Disse-me que tinham tido uma filha, a Estela, estudante de Arquitetura, e que viviam nos arredores do Porto, onde ambos tinham arranjado colocação.

— O Rui!? Que bom! Fico tão feliz por ela.

— Não fiques — respondeu.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

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