Maria Teresa Horta

Author avatar
Clara Pinto Correia|16/02/2025

Eu tinha vinte anos e os gajos lá do JORNAL riam-se com uma maldade muito fininha quando falavam nela, e sussurravam “e depois ela disse, pois então eu escrevo com o útero!”. Muito tempo mais tarde, fiquei a saber que aquilo era mentira – o que a Maria Teresa Horta escrevera[1] era que escrevia com o corpo. E o fenómeno de escrever com o corpo é que fenómeno quase sagrado que marca o trabalho de todos os escritores. Não sabemos de onde vêm as ideias, não sabemos de onde vêm todas aquelas frases com todas aquelas palavras, não sabemos como é que o nosso corpo faz andar os nossos braços sobre o teclado e carregar com os dedos nas teclas até que, de repente, acabámos por formar um parágrafo em que nunca tínhamos pensado. Esse milagre fantástico da escrita, um milagre empolgante e incompreensível que nos acontece a todos, é o milagre que sai diretamente do nosso corpo para o monitor, como dantes saía de dentro de nós diretamente para o papel, usando-nos apenas como intermediários. Nenhum de nós fala muito disso, porque nenhum de nós gosta de parecer meio aluado perante os seus leitores. Mas a Maria Teresa Horta, que era uma mulher corajosa, disse-o com todas as letras: escrevo com o meu corpo. O machismo dominante dos anos 80 podia sentir logo um grande frémito de gozo só de ouvir uma mulher pronunciar a palavra corpo, mas essa mesma mulher não estava a pronunciar a palavra útero. Nessa altura os homens do JORNAL divertiam-se a fazer dela o pior que podiam, mas ela recusou-se a descer ao seu nível e comentar as suas parvoíces, sempre de queixo erguido. Demoraram todos muito tempo a perceber que estavam perante uma grande senhora – e uma grande, grande escritora.


Maria Teresa Horta não deve ter sentido qualquer razão para gostar de mim quando eu comecei a aparecer na Comunicação Social. Vinda de uma geração já completamente diferente da dela, eu não sentia qualquer necessidade de um movimento organizado de mulheres que me protegesse dos machistas. Se algum deles tentasse chegar a vias de facto comigo, espetava-lhe um bom par de murros, ou um boa joelhada nos tomates, e não pensava mais nisso. A contragosto com as sobreviventes do salazarismo, eu ria muito, com uma alegria que não era minimamente fingida. Além disso usava muitos palavrões na minha linguagem, e todas as histórias assustadoras e verdadeiras que contava[2] não pareciam ter-me deixado qualquer espécie de trauma. Insistia sempre que nunca me sentira prejudicada no meu trabalho por ser mulher, porque se dissesse o contrário estaria a mentir. Da maneira como me vestia, nunca teria sido preciso queimar sutiãs. E, no Verão, quando entrava na redacção de top e shortinhos e umbigo de fora, completamente torrada da praia, devia parecer-lhe ponto por ponto a imagem acabada daquilo a que então se chamava, no tom mais derrogatório possível, uma “mulher-objecto[3]”.

Maria Teresa Horta quando jovem.

            O pecado mais grave que eu cometi aos seus olhos por essa altura foi um artigo chamado ORFÃOS DE FILHOS: OS PAIS DE DOMINGO, com entrevistas a vários homens que fiz por ocasião do Dia do Pai. Nenhum deles quis que eu revelasse o seu nome com medo de retaliações das ex-mulheres, ou com vergonha da situação em que se tinham encontrado a viver depois do divórcio. Mas todos falavam dos mesmos dramas – só verem os filhos de quinze em quinze dias, não terem um espaço condigno para estar com eles, terem vivido muito mal até começarem a namorar uma nova mulher bastante mais rica, as gritarias ao telefone porque os meninos chegavam a casa sujos ou molhados, e sempre, sempre, sempre, o pesadelo das pensões alimentares. A Maria Teresa Horta, indignada, escreveu para a revista MULHERES uma crítica impiedosa ao meu trabalho, intitulada A JORNALISTA MAIS MACHISTA.

            Mas a Maria Teresa Horta era uma senhora. Três anos mais tarde, quando saiu o meu primeiro romance, AGRIÃO!, a mesma revista MULHERES atribuiu-lhe o seu prémio de literatura. O texto que apresentava o livro também vinha assinado por ela, saudando a descrição da dureza da vida das mulheres que viviam numa terreola chamada Pintado, e mencionando o meu nome como se eu nunca tivesse sido a jornalista mais machista.

            Alguns anos mais tarde fui para Buffalo, e estes dares e tomares da vida lisboeta esbateram-se no fundo das minhas memórias. Publiquei muitos livros, uns mais queridos e outros mais difíceis. De entre os mais difíceis, lá para os meus trinta e muitos anos, publiquei um romance fragmentado em que todas as pessoas se desencontravam, com todas as possibilidades sempre em aberto, chamado MAIS MARÉS QUE MARINHEIROS. Quando cheguei a Lisboa, o meu editor telefonou-me a dizer que a Maria Teresa Horta queria entrevistar-me para o Diário de Notícias.

            Mais ninguém me tinha pedido uma entrevista, nem ninguém tinha escrito nada sobre aquele romance.

Maria Teresa Horta

            Eu nem sabia o que é que havia de pensar.

            Cheguei à sala onde tínhamos marcado encontro, falámo-nos de beijinho, sentámo-nos uma diante da outra, ela fez-me um sorriso enigmático, e começou por dizer:

            – Sabe… Fiquei mesmo surpreendida. Não fazia a menor ideia de que você era assim tão cruel.

            – Pois – disse eu, retribuindo o sorriso – A maior parte das pessoas não sabe. Aliás, a maior parte das vezes nem eu sei.

            Aquela mulher não me conhecia de lado nenhum. Apaixonou-se por um dos meus livros mais difíceis de ler. Descobriu imediatamente em mim um traço de personalidade que eu própria tendo a esquecer-me de que transporto comigo. Depois fez-me uma entrevista interessantíssima, passou-a para o papel com imenso encanto, e escreveu duas ou três coisas sobre a forma como eu mexia as mãos ou fixava os meus olhos nos seus enquanto falava de quem esteve a prestar uma atenção de ave de rapina a toda a conversa.

            A Maria Teresa Horta fez-nos bem, e agora vai fazer-nos falta.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] e não propriamente que dissera, sendo que são duas actividades muito diferentes.

[2] Contratempos com camionistas quando fazia sozinha longas viagens à boleia, por exemplo.

[3] Mas seria preciso uma grande dose de má vontade. Uma mulher-objecto penteia-se, maquilha-se, e arranja as unhas. Pelo menos. Nada disto se aplicava a mim.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.