Afinal, até Hugo Soares e Aguiar-Branco têm empresas do sector imobiliário

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Pedro Almeida Vieira|22/02/2025

Num cenário onde a credibilidade política se tem esvaído ao sabor dos conflitos de interesse e promiscuidades em redor da alteração da Lei dos Solos – com a possibilidade arbitrária de se transformar terrenos rurais pouco valorizados em áreas urbanizáveis de elevado valor, criando-se mais-valias de um dia para o outro –, ontem aplicou-se, durante o debate da moção de censura do Chega, um adágio: “fala o roto do nu”.

Hugo Soares defendeu Luís Montenegro e acusou deputados do Chega de ter imobiliárias. Afinal, com a sua mulher, também detém uma consultora que também compra e vende imobiliário.

Com efeito, depois de o secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, Hernâni Dias, se ter demitido após se saber que criara duas empresas imobiliárias; depois da revelação da existência de uma empresa familiar de consultadoria (a Spinumviva) de Luís Montenegro e dos seus terrenos rurais; depois de o ministro da Coesão Territorial ter confessado que vendera recentemente a sua quota de uma empresa imobiliária; e depois de a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, e da ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, também terem entrado no lote de “governantes imobiliários”, eis que surgiu o contra-ataque: afinal, até no Chega havia deputados “promíscuos”. E logo quatro.

Na verdade, eram três – como mais tarde se corrigiu –, porque a empresa do deputado Pedro Pessanha (a PP Gest) foi entretanto dissolvida. E a empresa de José Dias Fernandes estará sedeada em França – portanto, sem benefícios directos na Lei dos Solos. Mas duas sempre são duas, claramente na área do imobiliário. Mas esse nem é o maior “problema” descoberto pelo PÁGINA UM.

No caso da empresa unipessoal do deputado Filipe Melo, foi criada em Braga no final de 2016, com um capital de 5.000 euros, e no seu objecto social incluem-se “actividades de consultoria para os negócios e a gestão; realização de créditos [dentro de limites legais]; promoção imobiliária; e compra e venda de imóveis”.

Aguiar-Branco tem uma participação de quase 40% de uma empresa do sector imobiliário.

Mas as actividades desta empresa – formalmente denominada António Filipe Dias Melo Peixoto, Unipessoal, Lda. – são completamente desconhecidas. O deputado do Chega não entregou a Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023 – são oito anos de actividade “fantasma”, que lhe poderão custar multas e vistorias da Autoridade Tributária.

Quanto à empresa de Felicidade Vital, denominada LXDomi, foi criada também em 2016, tendo a deputada do Chega quotas de 75% com o seu marido, e tem “apenas” um ano de atraso na entrega do IES. Em todo o caso, nas demonstrações financeiras de 2022 consultadas pelo PÁGINA UM, a LXDomi registou uma actividade residual, com prestação de serviços de 18.300 euros, e até está em falência técnica, com capitais próprios negativos de 6.655 euros.

Mas se o partido de André Ventura não sai nada bem na “fotografia” deste RusticGate, pior fica o denunciador das “promiscuidades imobiliárias” do Chega: Hugo Soares, o líder parlamentar dos sociais-democratas que ontem solicitou ao presidente do Parlamento, Aguiar-Branco, a divulgação dos interesses empresariais de Filipe Melo, Pedro Pessanha, Felicidade Vital e José Dias Fernandes.

E porquê?

Alteração da Lei dos Solos do Governo Montenegro está férida de morte com tantas polémicas, mas o RusticGate revela sobretudo negócios de ‘part time’ pouco transparentes dos políticos.

Porque, e parecendo uma triste anedota, tanto Hugo Soares como José Pedro Aguiar-Branco são de empresas com actividade no sector imobiliário. Com efeito, Hugo Soares, bastante próximo de Luís Montenegro, criou em 2020 a Capítulo Universal com a sua mulher, Patrícia Lopes Mendes. Com um capital social de 5.000 euros, a empresa começou por estar sedeada em Caminha, mas mudou-se entretanto para Braga. E tem um objecto social quase decalcado da Spinumviva: além de actividades de consultoria, surge a inevitável “gestão e comércio de bens imóveis próprios ou de terceiros, incluindo a compra para revenda”.

A empresa de Hugo Soares não tem facturado tanto como a de Luís Montenegro, mas aparenta ser um bom “pé-de-meia”. Nas últimas contas apresentadas, a Capítulo Universal facturou 164.000 euros – nem um cêntimo a mais nem a menos – e um lucro de quase 69 mil euros, tendo Hugo Soares declarado que recebeu 19 mil euros como gerente. Sem distribuição de lucros – para não haver aplicação de impostos –, o presidente do grupo parlamentar do PSD tem lucros acumulados de cerca de 285 mil euros, um pecúlio de quatro anos bastante razoável para quem investiu cinco mil euros.

Quanto a Aguiar-Branco, conhecido pela sua actividade de advogado, também mete o dedo no imobiliário. De entre as três empresas em que declara participações, uma delas – a Portocovi – tem actividade no sector imobiliário. Com uma participação minoritária do social-democrata (38,97%), a Portocovi tem sede em Lisboa, um capital próprio de 29 mil euros e no seu objecto social está “a compra e venda de bens móveis e imóveis, arrendamento, gestão e administração de bens próprios ou alheios e prestação de serviços”.

Extracto do registo da Capítulo Universal, detida por Hugo Soares e a sua mulher, onde consta a “gestão e comércio de bem imóveis próprios ou de terceiros”.

Na análise às demonstrações financeiras feita pelo PÁGINA UM, esta empresa não tem uma elevada facturação (63.200 euros em 2023), mas acumula lucros de quase 195 mil euros. Na aparência, tendo em conta que lhe foi entretanto “associado” um activo fixo tangível de 631 mil euros (um imóvel) com o correspondente empréstimo bancário de 391 mil euros, a Portocovi servirá sobretudo para obter benefícios fiscais, por via das depreciações e gastos com juros. Este tem sido, aliás, um expediente legal de muitos políticos e empresários, pelos benefícios fiscais que incorpora, mas também constitui um risco se houver falência.

Seja como for, a ‘colecção’ de políticos de quase todos os quadrantes com interesses imobiliários coloca a alteração da Lei dos Solos a caminho de uma ‘morte certa’, excepto, claro, se a impunidade política já estiver bem enraizada numa sociedade passiva e dócil. Até porque, na verdade, os bons negócios não são os que se fizeram antes da alteração da Lei dos Solos, mas sim aqueles que se preparam agora. No urbanismo, não se enriquece demasiado construindo onde antes se podia construir, mas sim construindo onde antes não se podia construir.

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