Gouveia e Melo, e as ‘duas tábuas’ de perigosa trivialidade

Author avatar
Brás Cubas|22/02/2025

Se há uma verdade insofismável na História do Pensamento Universal, é que toda a filosofia, desde Heráclito até Kant, e desde Hegel até Foucault, andou às voltas com o conceito de Poder. Sofismas, paradoxos e exegeses, laboriosamente decantados ao longo das centúrias, serviram ora para sustentar a sua legitimidade vinda dos Céus, ora para justificar a sua necessidade terrena, ora para denunciar os seus abusos despóticos. O Poder foi, de Platão a Maquiavel, o eixo em torno do qual se construíram utopias e se ergueram impérios, se redigiram tratados e se travaram batalhas.

Mas eis que, após tanta especulação metafísica, depois de tantos volumes encadernados em couro a tentar deslindar a natureza do mando e da obediência, emerge, qual novo arquétipo do engenho humano, um espírito singular que resolve, de um só golpe, a questão que atormentou as mentes mais argutas da Humanidade: Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, nado em terras de Quelimane, e que nadou pelos mares durante décadas em esquifes profundos, apenas para agora se firmar como timoneiro de terra firme, sem mar, sem navios e, ao que parece, sem bússola.

Falo-vos do conhecido Almirante dos Sete Egoceanos, que, através de duas singelas páginas do Expresso – essa prestigiada gazeta de respeitável antiguidade, onde agora se cultiva o jornalismo com a delicadeza de um florista a vender cravos murchos ao preço de orquídeas raras – vos explica, ensina, elucida e, por fim, esclarece, que a arte de governar é, afinal, um mero e esmerado exercício de equidistância entre tudo e nada, entre a firmeza e a vacuidade, entre a ordem e o flutuante acaso das marés.

Lendo a sua bula iluminada, onde o truísmo se veste de revelação – e onde aquilo que mais se destaca é um S garrafal da revista do Expresso, com honras de manchete –, eis que o Almirante dos Sete Egoceanos “explica pela primeira vez o seu entendimento sobre a Constituição e as funções que julga serem da competência do Presidente da República”.

Eu, por mim, que morto estou, muito me diverte a prosápia de quem, num raro assomo de artificial humildade, julga que o seu entendimento sobre as coisas rivaliza com o de Deus ao esculpir, com fogo e trovões, as tábuas da Lei para Moisés. Porque sim, o Almirante Gouveia e Melo, sempre avesso a protagonismos, não se limita a interpretar a Constituição – ele desce do Monte Sinai mediático, envolto numa nuvem de luz e autoconvencimento, para vos revelar, a vós, mortais, a palavra definitiva sobre os destinos da República Portuguesa.

Revelações, ou o que quiserdes chamar, de Henrique Gouveia e Melo nas páginas do Expresso.

E vós, simples viventes, só podeis tremer perante tamanha iluminação, gratos por serdes dignos de assistir ao momento em que um oficial de Marinha, recém-chegado ao território seco das ideias políticas, decide, magnanimamente, explicar-vos como deve funcionar um Estado. Eu, que já não padeço dessas tribulações mundanas, observo tudo com a leveza de quem, desde a eternidade, já viu profetas mais ambiciosos e charlatães mais convincentes.

Com a leitura das suas duas tábuas de revelação – tantas quantas as páginas que o generoso Expresso lhe ofertou –, Gouveia e Melo concede a todos os que nelas pousarem os olhos a oportunidade rara de uma iluminação súbita: a epifania de que a governança assume finalmente o seu formato mais puro, destilado, quintessencial – ou seja, uma enxurrada de platitudes embalada na majestosa certeza de que a democracia precisa de democracia, a liberdade de liberdade e o equilíbrio de equilíbrio.

Para quê, então, as tribulações de um John Stuart Mill, os labirintos de um Tocqueville, os sofismas de um Weber? Tudo se resolve com a estonteante simplicidade de uma linguagem naval: navegamos pelo mar proceloso da incerteza, mas avistamos o farol da unidade nacional, e que ninguém ouse contestar o Capitão da Nau!

Ora, mas todo o grande pensador necessita de uma introdução sobre o seu pensamento ideológico. E que prodígio de equilíbrio, que sublime demonstração de ginástica intelectual! Gouveia e Melo, homem de proas firmes e lemes resolutos, não se limita a navegar os mares revoltos da política – ele flutua, lépido e tépido, entre duas margens, sem nunca molhar os pés.

Situo-me politicamente entre o socialismo e a social-democracia“, escreveu ele – ou alguém por ele. Brilhante!

Um posicionamento tão inovador e arriscado quanto afirmar que a água é húmida, que o vento sopra ou que um pão de forma é, de facto, um pão com forma. O Almirante, esse visionário, descobriu o meio-termo entre dois conceitos que, no fundo, são já uma variação um do outro, com a ousadia de quem anuncia ao mundo que acaba de descobrir um arquipélago… entre duas ilhas que já existiam no mapa e figuravam há décadas nas brochuras turísticas locais.

E, claro, defende ele, uma “democracia liberal como regime político” – porque nada como reafirmar o óbvio com solenidade de estadista. Eis uma revelação grandiosa: Gouveia e Melo, vivente em democracia nos últimos 51 anos da sua vida de 64, não defende a autocracia, nem a teocracia, nem um sistema baseado no sorteio dos cargos em rifas de feira. Não! Ufa! Ele defende a democracia liberal!

Um verdadeiro farol de lucidez, portanto. E mais: um bastião do pensamento político, um cruzador da evidência que, sem arriscar o naufrágio do comprometimento real, segue seguro pelo profundo oceano das generalidades, sem um só vagalhão de dúvida ou sequer uma brisa de originalidade a perturbar-lhe o curso. Tivesse sido eu a substituir o seu amanuense e acrescentar-lhe-ia na boca: “Encontro-me politicamente entre o vago e o redundante, defendendo que é preciso liderar com liderança e governar com governo.

Ao longo da sua epístola de obviedades, como acrobata de conceitos, o Almirante nunca arrisca quedas: ele equilibra-se sempre na corda mais segura, no discurso mais inatacável, no território onde nada é verdadeiramente dito, mas tudo soa impecável.

Por exemplo, qual Aristóteles de casaca e galões, eis uma epifania política com um axioma de vibrante originalidade: os partidos políticos são fundamentais, garante ele. Eis um postulado tão revolucionário que não duvido que Platão, se reencarnado fosse, repensasse todo o seu ‘A República’ e, envergonhado, substituísse o governo dos filósofos pelo governo dos partidos – ou, melhor ainda, pelo governo dos não-partidos, aqueles seres incorruptíveis e elevados que o Almirante sugere como alternativa.

Mas não nos apressemos! A ciência política moderna, segundo esta nova escola de pensamento naval, desenvolve-se com algumas inovações paradigmáticas, autênticos axiomas paradoxais – ou seja, princípios autoevidentes que se contradizem, mas que, ditos com solenidade, adquirem o brilho de verdades inatacáveis. Se quiserem um nome mais técnico, chamemo-los de “teoremas de elasticidade política” – aqueles que servem para tudo e para nada, conforme a conveniência do momento.

No primeiro teorema, defende Gouveia e Melo que a democracia deve ser tolerante, mas com mão de ferro contra aqueles que, na sua visão iluminada, ousam abusar dessa tolerância – mesmo que tal implique podar, com o rigor de um cirurgião inquisitorial, liberdades fundamentais como a de informação, de expressão e de contestação. Eis um ensinamento digno de figurar nas academias de filosofia política, talvez sob o título “A Democracia expurgada dos seus excessos”!

Coitado do Karl Popper, ingénuo que era: escreveu longo ensaio sobre o paradoxo da tolerância, e vem agora o Almirante dos Sete Egoceanos esquartejar-lhe a tese com a destreza de um açougueiro doutrinário, destilando-a num raciocínio primário. Para Gouveia e Melo, a verdadeira tolerância, na sua forma mais pura e sublime, reside precisamente em excluir quem diverge, garantindo assim um campo de discussão livre… mas apenas dentro dos limites devidamente autorizados e supervisionados pelo novo Guardião do Pensamento Justo.

E, claro, não faltarão mecanismos de reabilitação para os desafortunados que, por desatenção ou irreverência, ousem extraviar-se dos dogmas da moderação certificada. Prevejo, aliás, que tais desviantes sejam reintegrados com a ternura de um instrutor de ioga que, ao menor deslize na postura, corrige os alunos com descargas elécricas – um choque de realidade para que aprendam, enfim, a flexibilidade da obediência aos ditames do Almirante.

Eis, pois, a evolução da democracia liberal em versão almirantesca: tolerância para os toleráveis, censura esclarecida para os desviantes e uma liberdade rigorosamente regulamentada, para que ninguém se extravie no incómodo hábito de pensar pela própria cabeça. O Santo Ofício já tinha intuído algo semelhante – só faltava vesti-lo de linguagem moderna e embrulhá-lo num discurso sobre a defesa da democracia.

No segundo teorema, o Almirante dos Sete Egoceanos defende que o Estado não deve intervir na Economia, salvo quando for necessário intervir – uma variante do célebre “digo-te que fujas, mas mando que fiques”, um daqueles enunciados de precisão matemática flexível que, ao contrário do rigor newtoniano, não serve para descrever leis universais, mas sim para garantir que o enunciador tem sempre razão, independentemente do contexto.

O livre mercado deve ser livre, mas também deve ser regulado – não muito, nem pouco, mas na medida exacta, aquela que apenas Gouveia e Melo pode determinar com a régua invisível da moderação conveniente. Aqui reside um dogma maleável do intervencionismo selectivo, uma verdadeira doutrina quântica da governação, onde o Estado é simultaneamente presente e ausente, regulador e não-regulador, guiado por uma lógica insondável que apenas os iluminados conseguem interpretar.

Se há um nome para esta teoria, e evocando Adam Smith, chamemos-lhe “A Teoria da Mão Invisível do Almirante” – uma variante sofisticada do liberalismo intervencionista, onde o Estado não deve intervir, a menos que se decida que deve, e só nos momentos certos, que ninguém sabe exatamente quando são. Um prodígio de elasticidade doutrinária, um verdadeiro “laissez-faire dirigido”, onde o mercado navega livremente… até que o timoneiro decida que é tempo de agarrar no leme e ajustar o rumo.

Eis, pois, a evolução da política económica em versão Gouveia e Melo: um mercado livre; mas sob vigilância, uma Economia desregulada, mas controlada; um sistema em que a mão invisível opera, mas com supervisão militar! A arte de governar resume-se, assim, à precisão de um compasso de navegação etéreo, que ninguém sabe onde está – mas que o Almirante assegura possuir.

No terceiro teorema almirantesco, a Presidência da República deve ser independente e equilibrada, mas também deve convocar eleições antecipadas sempre que o Presidente considerar que o equilíbrio está desequilibrado. Uma neutralidade interventiva, um poder discreto mas decisivo, uma imparcialidade cirurgicamente orientada.

Como complemento, Gouveia e Melo defende que o Presidente deve pairar acima dos partidos, mas manter um olhar atento sobre as movimentações partidárias; deve evitar imiscuir-se, mas também deve intervir cirurgicamente, garantindo que tudo se mantém como ele deseja. Uma magistratura de influência, mas sem parecer influente; um garante da estabilidade, pronto a desestabilizar quando necessário.

Aqui está, pois, a reinvenção da física política: o movimento simultâneo na inércia, a acção que não age, a neutralidade que puxa cordelinhos. Uma democracia em equilíbrio dinâmico, onde o Chefe de Estado é ao mesmo tempo espectador e maestro, árbitro e jogador, presença e ausência.

Mas isto não parece mais uma democracia fantoche? Uma encenação política em que o equilíbrio é mantido pela constante ameaça de desequilíbrio, e a imparcialidade é apenas um nome mais elegante para o controlo estratégico?

Porém, não penseis que a ciência política do Almirante se limita a reflexões teóricas. Nada disso! Ele é um homem de acção, de comando, de orientação decisiva. Prova disso é a sua visão geopolítica totalizante: o perigo já não vem só do Leste, mas agora é de 360 graus, incluindo assim também o asteroide 2024, a Grande Mancha Vermelha de Júpiter e eventuais ataques de caranguejos revolucionários do Pacífico, mais virulentos do que os do Índico.

Eis uma doutrina de defesa notável: ao contrário da banalidade dos que acreditavam que os inimigos vinham de um lado ou de outro, o Almirante percebeu a Verdade Superior – o perigo está em todo o lado, é omnipresente, como Deus.

E como responder a esta ameaça global, difusa e perpétua? O Almirante, na sua infinita clarividência estratégica, vos oferta a solução: “É tempo de ir além do óbvio e dos interesses imediatos, sem afunilamentos”. Perante tal fórmula mágica, resta apenas a dúvida cartesiana: como nunca ninguém pensou nisso antes? A Humanidade, perdida em debates estéreis sobre a organização política das sociedades, falhou em compreender que a solução era apenas… não se afunilar!

Concluo, neste momento, que o grande erro de Maquiavel, Rousseau e Montesquieu não foi a ilusão republicana ou a crença ingénua na separação de poderes; foi não perceberem que o verdadeiro inimigo da liberdade não era a tirania, mas sim… o afunilamento ideológico! Em todo o caso, se estais agora permanentemente cercados, sabei também que estareis permanentemente seguros – desde que tenhais em Belém um Gouveia e Melo a “cuidar, proteger e honrar a democracia”…

Mas, atenção! O Almirante já sabe que não agradará, em simultâneo, a gregos e a troianos, a liberais e a estatistas, a terráqueos e a marcianos. Ele assume, com a segurança de quem nunca se questiona, que o Presidente deve representar todos os portugueses sem, no entanto, ser de todos – e ainda bem, segundo a sua tese, pois, de contrário, comprometeria a sua isenção.

Este nobre paradoxo merece um estudo minucioso: a unidade nacional deve ser promovida, desde que o representante da unidade pertença a uma determinada não-facção, garantindo assim que representa todos sem estar, de facto, ligado a ninguém. Como convém a uma magistratura independente, mas estrategicamente interventiva; imparcial, mas atenta às dinâmicas partidárias; elevada, mas com os pés bem assentes nos corredores do seu poder.

Em suma, com Gouveia e Melo, tereis um Presidente omnipresente na neutralidade, invisível na acção, uma figura que se moverá com a leveza de uma sombra e a firmeza de um decreto – e que, por um milagre da engenharia política, conseguirá ser simultaneamente árbitro e jogador, ausente mas vigilante, passivo mas decisivo. Um verdadeiro Yin e Yang presidencial de soma zero – uma dramática nulidade.

Eis, pois, em súmula, o novo modelo de liderança presidencial à la Almirante, destilado pela fina ciência do pensamento naval: a democracia a ser salva da democracia; a liberdade a precisar de ser restringida para ser mantida; o Presidente a ser independente, mas activo; a política a não poder ser partidária, salvo quando o Presidente decide que pode.

A conclusão inevitável: em duas tábuas do Expresso, tendes a pureza dos grandes tratados filosóficos, a clareza dos manuais de navegação e a força das frases esculpidas em bronze, tudo isto em concentrado. Nos próximos meses, nos anos seguintes e nas décadas e séculos vindouros, se o deixarem à solta e sem acompanhamento psiquiátrico, os ensinamentos do Almirante dos Sete Egoceanos serão entoados com a reverência de máximas imortais, repetidas com solenidade e acolhidas com o fervor reservado aos dogmas supremos, como versículos inquestionáveis das Scripturae Sanctae da Razão Impecável.

Estátuas serão erguidas, cátedras serão inauguradas, e talvez – se o zelo for suficiente – ainda testemunhareis em vida o primeiro evangelho apócrifo da Nova Ordem Estratégica Naval, onde, entre parábolas de tempestades e calmarias, o Almirante revelará o Quarto Segredo de Fátima.

Depois do Almirante – isto é, d.A. –, a retórica jamais precisará de ideias; a erudição medir-se-á em clichés; e a profundidade política será tão rasa quanto um lago de três palmos. A grande lição do Almirante Gouveia e Melo, durante a próxima campanha presidencial, será demonstrar aos eleitores que nada é mais eficaz na política do que o solene e pomposo uso do perigoso nada.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.