Boavista 3.0
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Deveria ser uma noite tranquila de futebol – e até foi – sem sobressaltos. Mas nunca é. O cronista que também é jornalista, que por sua vez é também director do próprio jornal, decidiu que merecia a ida ao Estádio da Luz ver o seu Benfica, escrevinhar a crónica e degustar o seu farnel.
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No entanto, o problema da multipersonalidade – que isto de dizer esquizofrenia já nem sei se se pode – impôs-se. Às oito da noite, quando a bola já rolava, o director entendeu que havia condições para cobrir, com urgência, a notícia explosiva sobre os negócios imobiliários de Hugo Soares que, no dia anterior, apontara o dedo ao Chega por interesses imobiliários, quando afinal tinha os seus próprios terrenos no jogo. E havia mais umas nuances. As empresas dos homens do Chega eram um hino à falta de cumprimento das regras de gestão; e até o presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, molhava o bico e tinha também a sua empresa imobiliária. E decidiu telepaticamente falar com o jornalista, que fez um bypass ao cronista.
O director insistia. “Notícia para o Página Um, tem de ser hoje ainda!” — ordenava. O jornalista suspirava. O cronista tentava ignorar. Mas o director é teimoso. Assim, com o olhar intercalando entre o relvado e a timeline de um documento de texto, a crónica do jogo teve de ser intercalada com mais um caso de ‘normalidade política lusitana’, ou seja, mais um escândalo.
Assim, enquanto à esquerda, Bruma – acho que era ele – lançava um sprint pela ala, à direita eu abria os registos empresariais de Hugo Soares. “Compra e venda de imóveis próprios ou alheios”. Pimba, mais um parágrafo. Cruzamento para a área, desvio de cabeça, defesa do guarda-redes. “Capital social de 5 mil euros transformado num pé-de-meia de 285 mil.” Será que o guarda-redes do Boavista, que fez defesas espectaculares – se calhar para impressionar o Preud’homme, velha estrela numa época em que o Benfica andou mal – também faz render assim os seus investimentos? Duvido.
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O Benfica marcou entretanto pelo italiano Belotti, mas a história mais dramática era a de Aguiar-Branco, que detém quase 40% de uma empresa do sector imobiliário. Para alguns, uma jogada legal. Para outros, um autogolo ético.
Ao intervalo, entre uma trinca na maçã e um gole de água, a notícia já estava a meio. A segunda parte começou. Um cartão vermelho para um jogador do Boavista ajudou o Benfica, mas não a mim. O jornalista corria contra o tempo, mas o cronista teimava em rever na televisão o pisão do Miguel Reisinho ao Kökçü com a mesma atenção aos detalhes que dava ao RusticGate. Porque sim, a política e o futebol não são assim tão diferentes: ambos têm os seus protagonistas, os seus falhanços clamorosos e, claro, as suas infracções. O problema é que, na política, o VAR está a dormir.
O segundo tempo caminhava para o fecho e a notícia precisava também de ser encerrada. Entre um contra-ataque perigoso e mais um remate defendido, surgiam os detalhes finais: a ligação entre os negócios imobiliários e os interesses políticos, os lucros que surgem do nada, os terrenos que mudam de valor por decisão legislativa. No ecrã do telemóvel, as últimas correcções. No campo, o Benfica tentava dilatar a vantagem. E eu? Eu tentava não perder o fio à meada.
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Foi então que o inevitável aconteceu. Golo! Pavlidis, vindo do banco, ampliava a vantagem para 2-0. E, no mesmo instante, o jornalista concluía o seu artigo: “No fim, todos ganham. Ou quase todos.” O director podia respirar aliviado. A manchete estava pronta. O cronista, por sua vez, olhava para o campo e pensava: “Mas será que algum dia eu vou poder simplesmente ver um jogo de futebol?”
No final do jogo, com o Benfica a atropelar o Boavista por 3-0, o jornalista enviava a notícia para publicação. O director, satisfeito, desligava as notificações. E o cronista, esse, ficava a matutar: “Mas afinal quem é que marcou os golos desta noite? O Benfica ou os negócios imobiliários da política portuguesa?”
Saí do estádio com essa dúvida a martelar na cabeça. No metro, olhei para os adeptos e ouvi as suas conversas. Alguns celebravam o resultado, outros lamentavam a falta de eficácia perante um checo que defendeu mais de 10 remates.
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Ninguém, obviamente, falava dos negócios imobiliários de Hugo Soares ou Aguiar-Branco. No país do futebol, os verdadeiros jogos jogam-se nos bastidores, com jogadas bem mais sofisticadas do que um contra-ataque bem desenhado.
Cheguei ao PÁGINA UM ainda a tempo de umas arrumações para receber uns amigos, para uma conversa sobre a vida, a inteligência artificial e ideias para este jornal. E a crónica desta A Varanda da Luz fica assim, hoje, algo esquisita. É a vida. Importante, sim, é que foi um dia triplamente ganho, não fosse o Benfica espetar 3-0 ao Boavista.
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