Pena suspensa: Deus não dorme, mas…

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Rui Araújo|24/02/2025


 

a shadow of a hand on a wall
Foto: D.R.

— Deus? Para mim, não há Deus. Dizem que Deus está no Céu. Dizem que Deus não dorme. Para mim, está sempre a passar pelas brasas. Nunca me ajuda. Cada vez, pior… Eu a querer fazer de mim alguém e não consigo. Deve ser o Diabo que tem mais poder e está a fazer-me mal. — confessa Ana Paula.

Ana Paula, 31 anos — 16 de heroína —, perdeu a família, a casa e o emprego. A liberdade, perdeu-a esta manhã. “Tropeçou” numa caixa de bananas no Mercado da Ribeira e veio parar ao Tribunal de Polícia apesar dos soluços de indignação. Tentou provar a sua inocência, mas toda a gente torceu o nariz. Pobres a tropeçar na vida é coisa que já não surpreende ninguém.

FACTOS 1

— Por causa de me drogar é que eu perdi tudo. Perdi filha, perdi marido, perdi tudo.

— Quando é que começou a meter-se na droga?

— Há 16 anos.

— E parou?

— Parei… quero parar.

— Heroína?

— Sim. Não há mais nada para dizer. O que é que eu vou dizer mais? Estou desgraçada. Não tenho nada.

— Onde vive?

— Numa escada.

— Há quanto tempo?

— Seis meses.

— E vai sobrevivendo com os fretes que faz na Praça da Ribeira?

— É disso que eu vivo… Eu não sei roubar. Se soubesse roubar não tinha a miséria que tenho.

— E o que é que aconteceu hoje?

— Hoje, foi isso. Fui lá à Praça. Uma senhora mandou-me ir buscar a caixa das bananas para eu lhe ir levar ao táxi. E aquela outra senhora — não era aquela caixa, era outra — disse-me que eu estava a tirar a caixa sem ter pago.

the shadow of a bench on the ground

A realidade ou a conversa do costume. Pouco importa. A única certeza é que ninguém entendeu os sorrisos de inocência de Ana Paula. A começar pela vendedeira…

FACTOS 2

— Andou a apalpar as caixas vazias e naquilo entrou dentro do lugar e tirou outra. Aí, eu dei uma corrida — porque eu estava distante, mas estava a ver o que se passava — agarrei-a e perguntei-lhe para onde levava a caixa das bananas. Ela respondeu-me que a mandaram buscar. Mandaram buscar nada. Mandei-a meter a caixa ali, agarrei-a pelos colarinhos e não mais a larguei. Depois, mandei chamar o fiscal. Fomos para a administração e dali para a PSP. Ela não levou a caixa porque eu não a deixei. E ainda tentou fugir…

— Bateram nela?

— Não batemos. Agarrei-a pelos colarinhos. Se ela estiver magoada é pelo agarrão que lhe dei.

— Ela disse que levou uma sova…

— Devia levar, devia. Se ela voltar lá outra vez, vai ver. Então leva mesmo. Dou-lhe uma tareia que vai para o hospital. Antes do Natal levou-me 18 ananazes, mas uma senhora não a deixou levá-los. A outra semana, foi à minha colega. Já por outra vez levou outra caixa de bananas. Não pode ser! É assim constantemente. Ela tem de ser castigada…

VEREDICTO DO TRIBUNAL:

Houve delito de furto. Ana Paula foi condenada. Por não ter antecedentes criminais e estar numa débil situação económica o juiz suspendeu-lhe a pena por dois anos.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 30 de Julho de 1988.

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