Haing S. Ngor: o não-actor acidental

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Ruy Otero|25/02/2025

1. TERRA SANGRENTA

Em temporada de Óscares, quero escrever sobre um “actor” que levou para casa uma dessas estatuetas douradas. E, justamente no dia em que esta crónica é publicada, assinalam-se 29 anos desde que Haing S. Ngor ‘deixou’ Hollywood. Mais precisamente, a 25 de fevereiro.

Mas para bom entendedor, meia notícia basta.

E então comecemos pelo filme Killing Fields, que em português tem o titulo de Terra Sangrenta.  Foi produzido em 1984 e é pelo qual o protagonista deste texto é conhecido. A obra venceu vários Óscares e recebeu muitos elogios da crítica.

Vejamos a sinopse:

Sydney Schanberg (Sam Waterston), repórter do The New York Times, vai cobrir a guerra civil do Camboja. Lá torna-se grande amigo de Dith Pran (Haing S. Ngor), tradutor e também jornalista.

Juntos testemunham atrocidades, tragédia, loucura e esperança.

Schanberg volta para casa e ganha um importante prémio de jornalismo pela cobertura que ambos fizeram, enquanto o seu amigo Dith Pran encara um triste destino no país agora comandado pelos Khmer vermelhos: torna-se prisioneiro dos campos de morte, após não ter ido com a equipa para os Estados Unidos. Mas Shanberg faz tudo para voltar a vê-lo…

Este filme era aparentemente difícil de vender e de filmar, não sendo óbvio os estúdios aceitarem a priori.

Mas havia algo de inevitável nele. Um argumento realista, uma história na qual o horror não era fabricado, mas sim reflectido num espelho sujo de sangue.

Bruce Robinson, o argumentista entregou-o ao produtor David Puttnam, que percebeu imediatamente que tinha algo valioso nas mãos, mas não seria fácil encontrar um realizador adequado para o filme.

Vários foram equacionados, entre eles Costa-Gavras, mestre e veterano do thriller político, que parecia a escolha óbvia.

Dizem que Stanley Kubrick mostrou interesse na história, mas depois desistiu. Não porque fosse impossível, mas porque a brutalidade dos factos dispensava qualquer artifício cinematográfico para o autor.

Era preciso alguém que compreendesse que esta não era apenas uma história sobre guerra, mas também sobre amizade e sobrevivência no inferno dos campos de trabalho, já que tinha os ingredientes principais para a culinária de que é feito o cinema americano.

E então apareceu Roland Joffé, realizador pouco conhecido na altura, que vinha do mundo da televisão.

Joffé não queria apenas fazer um filme de guerra, com uma denúncia política. Seria, acima de tudo, um retrato da amizade entre dois homens de dois mundos distintos, ligados pela paixão à verdade, indo assim ao encontro das ideias do argumentista.

Mas Hollywood queria nomes sonantes.

Roy Scheider, Alan Arkin e Dustin Hoffman mostraram interesse, mas constava que Puttnam e Joffé já tinham Sam Waterson em mente.

Os estúdios ainda pressionaram, desconfiados da escolha, mas o produtor e o realizador responderam deixando um aviso de que as filmagens seriam perigosas e não seriam para qualquer um.

Se Waterston já era uma aposta arriscada, Haing S. Ngor seria uma loucura arrojada, no entanto os estúdios aceitaram.

A Tailândia serviu de cenário para o filme, já que tem muitas semelhanças territoriais. O peso da história ainda se fazia sentir ali, e as autoridades tailandesas compreenderam a importância de se fazer um filme como aquele.

Viram essa acção como um testemunho, uma forma de garantir que o mundo não esquecia aquela guerrilha.

Coisas da política.

Foi um filme caro. A cena da evacuação de Phnom Penh, por exemplo, precisou de 3.000 pessoas que não eram apenas figurantes. Muitos deles, eram sobreviventes da tragédia.

A película ainda ardia por aquelas bandas.

Puttnam, que produziu The Killing Fields, nunca teve dúvidas. Considera-o o seu melhor filme.

O público e a crítica concordaram, tendo gerado uma receita assinalável.

O final é inesquecível.

The Killing Fields distingue-se ainda pelo seu uso consciente de técnicas cinematográficas que amplificam o realismo e o impacto emocional. A fotografia de Chris Menges, vencedor do Óscar, utilizou luz natural e cores terrosas, criando uma atmosfera densa, parecendo até um pouco televisiva para os padrões da altura, quase documental.

Mas Joffé vinha da televisão, para o bem e para o mal. 

Na cena em que os jornalistas esperam ajuda americana, os longos planos-sequência permitem que o espectador experimente uma certa ansiedade inabitual, sentindo o peso dos momentos sem cortes artificiais. Essa adrenalina também se faz sentir nas cenas em que Dith Pran tenta sobreviver aos campos de trabalho, não sucumbindo — como muitas vezes acontece em filmes deste género — ao lado mais espectacular do entretenimento.

O som desempenha um papel crucial, com a banda sonora minimalista de Mike Oldfield a contrastar com o som diegético intenso — explosões, tiros, gritos — sublinhando a tensão constante. Foi uma escolha inesperada.

Em suma, o filme evita ritmos frenéticos, optando a edição  por cortes lentos que reforçam o impacto emocional, especialmente nas cenas de separação e sofrimento, privilegiando enquadramentos que isolam os personagens, simbolizando a solidão e o desespero, e planos austeros que evidenciam a desolação dos campos cambojanos.

A ausência de artifícios estilísticos confere autenticidade, equilibrando entre uma estética algo fria e uma narrativa profundamente humana, tornando-se um marco do cinema político e humanitário.

Nem parece um filme de Hollywood.

Fade.

2. O JORNALISMO

Agora baralhemos o jogo para ter mais piada.

Houve um tempo em que a palavra ‘genocídio’ era um corte — uma fissura no discurso que exigia pausas para respirar. Hoje, tornou-se um fragmento descartável, um artefacto linguístico que circula incessantemente, sem jamais se fixar. Uma palavra que fica bem e que, pelos vistos, não se percebe bem o que traduz. 

The Killing Fields retrata o horror dos Khmer vermelhos, mas a sua ressonância ultrapassa o tempo e o território: poderia ser qualquer fronteira, qualquer conflito ou arquivo digital em que o sofrimento é armazenado, etiquetado, diluído e, sobretudo, desrespeitado. 

A brutalidade de Pol Pot — que não aparece directamente mencionado, mas que está omnipresente no filme — não é uma relíquia: é o espelho deformado de uma contemporaneidade que, ao rejeitar aparentemente os extremos, os reproduz com uma nova sofisticação.

Aparentemente, a brutalidade hoje é mais descomprometida, mas só na aparência. Uma guerra é uma guerra.

Os Khmer vermelhos aboliram o indivíduo pelo excesso de controlo; hoje, e para fazer uma analogia, elimina-se pela saturação.

O conhecimento já não é extinto pela força, mas pela redundância.

No Camboja, bastava ostentar-se um par de óculos para se ser condenado à morte; hoje, basta um desvio do discurso predominante para se ser apagado, sobretudo quando a doença aperta.

Não por censura explícita, mas por dispersão — um desaparecimento elegante entre fluxos intermináveis de dados cada vez menos de tabuleiro, inseridos num xadrez cada vez mais complexo.

A terra que pertencia ao povo tornou-se, agora, o espaço simbólico que pertence à cloud, na qual o indivíduo é fragmentado, redistribuído e finalmente… Esquecido.

The Killing Fields é menos um retrato histórico do que um ensaio fílmico sobre a vulnerabilidade da memória. O jornalismo que Schanberg e Pran representam não é apenas um acto de coragem, mas de resistência ontológica, enfrentando o esquecimento como destino inevitável.

O filme recorda-nos que a verdade não desaparece apenas sob regimes totalitários; desaparece quando a sua velocidade de circulação a impede de ser compreendida. A informação, muitas vezes não rima com o humano. 

Hoje, o jornalista de um órgão mainstream já não desafia o poder; depende dele. Dorme na mesma cama cujos lençóis parecem estar à vista, onde os cobertores já não protegem a audiência, aquecendo-a.

O jornalista deixou de ser o observador incómodo para se tornar, muitas vezes, o marketeer cúmplice do poder, ou vítima da saturação de dados.

A narrativa jornalística deixou de ser uma construção lenta e dolorosa para se tornar um reflexo instantâneo, tão rápido que se desfaz no mesmo momento em que surge.

Não quer dizer que aquele mundo fosse melhor e que o jornalismo salvasse fosse o que fosse, mas a ética ganhava mais Óscares. É fundamental não se perder de vista a História, incluindo a do Cinema. Mesmo que tenha sido feita, como é normal, pelos vencedores e que até haja muitas Histórias para confrontar.

Um bom filme é sempre intemporal. E pode ultrapassar todas as condicionantes. Nunca se sabe.

Nos anos 70, para muitos profissionais, o jornalismo era uma arte lenta e meticulosa, movida pela obsessão com a verdade factual.

Repórteres como Schanberg, retratado em The Killing Fields, arriscavam a vida para documentar realidades que o poder preferia ocultar, sobretudo o estado-unidense que também aqui é posto em causa, mostrando uma realidade vulnerável e mentirosa.

A informação era escassa, preciosa, e a construção de uma notícia envolvia tempo, investigação rigorosa e confrontos com a censura e o silêncio.

Hoje, talvez o jornalismo seja mais um reflexo instantâneo, moldado pela velocidade e pelo volume. As redes sociais ditam a agenda, e o que outrora exigia dias de apuramento, agora dissolve-se em segundos, num ciclo contínuo de headlines efémeras.

Mas, paradoxalmente, e de acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), 2023 foi um dos anos mais mortíferos para jornalistas, com 99 profissionais mortos. É o número mais alto desde 2015. Em contraste, nos anos 70, o número de jornalistas mortos era significativamente menor, ainda que os dados dessa época sejam mais escassos e menos sistematizados.

Nunca nada é só uma coisa e a percepção engana.

Fade.

3. A REALIDADE

Haing S. Ngor não era um actor. Pelo menos, não no início. Nunca quis ser estrela de cinema. Nunca sonhou com Hollywood. Mas o destino colocou-o lá. E ele fez história.

Nasceu no Camboja, em 1940. Cresceu num país aparentemente tranquilo. Tornou-se obstetra. Salvava vidas e acreditava no futuro.

Em 1975, o regime de Pol Pot tomou o poder.

Quando os soldados dos Khmer vermelhos chegaram, Haing S. Ngor escondeu a sua historia. Se descobrissem que era médico, seria morto. Rasgou os diplomas e enterrou os instrumentos cirúrgicos. ‘Deixou’ então de ser médico e tornou-se prisioneiro do regime.

Foi enviado para os campos de trabalho. Lá viu o horror, a fome e a tortura. Perdeu a mulher que estava grávida e que morreu porque ele não podia ajudá-la; caso o fizesse, descobririam que sabia de medicina.

Morreu nos braços dele.

Ngor sobreviveu contra todas as probabilidades. Passou quatro anos no inferno, mas conseguiu fugir em 1979 para a Tailândia e depois para os Estados Unidos.

Tentou reconstruir a vida em Los Angeles.

Trabalhou como tradutor, mecânico, tudo o que aparecesse, até que foi parar a um casting de um filme sobre o seu país.

Roland Joffé, o realizador queria um sobrevivente. Alguém que conhecesse essa realidade e que não tivesse de fingir.

Haing S. Ngor fez o casting impressionando toda a gente e ganhou o papel de Dith Pran. A experiência do médico, não era muito diferente da do jornalista que iria encarnar, tendo até muitas coincidências.

A realidade é sempre o melhor actor da realidade.

Foi a primeira vez que ‘representou na vida’, mas a performance foi arrebatadora e quando o filme estreou, o mundo ficou em choque com a realidade anunciada e a credibilidade da obra. Sobretudo Ngor: fascinava pelos silêncios nada comuns para Hollywood.

Ganhou o Óscar de Melhor Actor Secundário em 1985 e foi o primeiro asiático a vencer nessa categoria. O segundo na história dos Óscares.

Mas o prémio não era só dele. Frisou-o bem. Subiu ao palco e dedicou a vitória à mulher e à filha que morreu antes de nascer.

Haing S. Ngor usou a fama repentinamente adquirida para denunciar o regime de Pol Pot que ainda se mantinha nesse período, embora  em guerrilhas com o Vietnam no seu próprio território.

Continuou sempre a falar sobre o massacre e escreveu um livro.

Hoje, essa tragédia é considerada a maior em número da História conhecida e documentada, tendo esse regime chacinado 25% da população.

Ngor criou várias fundações para ajudar refugiados e nunca deixou de se sentir um sobrevivente.

Ainda fez outros filmes pouco relevantes, mas nunca quis ser apenas actor.

Foi a voz dos seus compatriotas anónimos.  

O seu percurso — de obstetra a prisioneiro, de sobrevivente a estrela acidental — é a narrativa que o cinema contemporâneo raramente consegue recriar, uma que não precisa de artifícios para ser devastadora.

Talvez conheçamos melhor Dith Pran papel que ele ‘representa’ que o próprio Ngor.

O jornalista cambojano, como aparece numa nota no fim do filme, tornou-se fotógrafo do The New York Times. Uma recompensa armadilhada, se pensarmos na metamorfose que o jornalismo que Ngor acreditava veio a sofrer.

Fade.

4. THE END

Em 1996, a tragédia voltou à casa do médico.

 

Três homens aproximaram-se do seu carro e disseram que era um assalto, mas ele recusou-se a dar o fio de ouro que tinha ao pescoço, no qual guardava a imagem da mulher.

Deram-lhe um tiro na cabeça e morreu.

A polícia disse que foi um crime banal como muitos outros naquela época.

Mas muitos duvidaram.

Ngor tinha inimigos, continuava a denunciar os Khmer vermelhos. Sabia demasiado, tal como no Camboja, e isso podia ser fatal em qualquer circunstância. Algum tempo depois, os assassinos foram apanhados e presos sem mais detalhe.

Fim da história.

A sua morte, tão banal quanto suspeita, é o último plano de um filme que nunca chegou a ser rodado: a verdade, afinal, não é derrotada apenas pelo totalitarismo, mas também pela indiferença de uma outra que se multiplica tão depressa que já não consegue olhar para si mesma.

No entanto, algumas histórias não foram ‘feitas’ para caber num ecrã e muito menos num artigo de jornal. A realidade, ainda assim pode ser mágica, ainda mais que o cinema.

Arrisco eu, refém que sou dela.

Haing S. Ngor tinha 55 anos. Sobreviveu aos Khmer vermelhos, mas não sobreviveu à América.

Ironia.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações: Ruy Otero


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