Sonata de Rui Moreira para papalvos em Lá Maior

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Brás Cubas|25/02/2025

A música, essa arte sublime que eleva os mortais aos domínios do indizível, sempre foi considerada um portal para o divino. Platão, em ‘A República’, advertia, e nem sequer usava o Spotify, sobre o poder moral das harmonias, embora defendesse já que tanto enobreciam o espírito como o corrompiam. Já Pitágoras, esse visionário e exímio matemático, vislumbrava na música uma expressão de ordem cósmica, dançando os planetas numa sinfonia celeste, inaudível para os ouvidos mundanos, mas presente no mais profundo do universo. Não será por acaso que os grandes teólogos e místicos sempre atribuíram à música uma conexão directa com Deus. Por exemplo, Santo Agostinho, arrebatado pelo canto gregoriano, sentia a alma desatar-se dos grilhões terrenos.

Poderia ficar por aqui, graciosas leitoras e harmoniosos leitores, mas não. A música merece ser celebrada como um oratório majestoso, cada nota ressoando como um eco do transcendente, cada acorde se elevando ao empíreo, cada pausa um sopro de eternidade.

Por isso, adito São João da Cruz, o místico carmelita, que sentia na música sacra não somente um ornamento litúrgico, mas sobretudo a fusão do espírito humano com o divino. Não posso calar a abadessa Hildegarda de Bingen, que dizia ser a música um reflexo da harmonia celeste, um eco da Criação, capaz de restaurar a alma à sua pureza primordial. E como esquecer Santa Cecília, a mártir melómana, cuja fé inquebrantável se entrelaçou para sempre com a própria essência da música? No momento do martírio, dizem, enquanto os verdugos empunhavam a lâmina, ela entoava cânticos na mais pura harmonia dos angélicos coros.

Mas a música, essa entidade dupla e caprichosa, também pode ser a arte da dissimulação. Se sublima os homens aos coros angélicos, também pode seduzi-los para os círculos infernais. Não foi por acaso que Goethe nos apresentou Mefistófeles a murmurar tentações em forma de melodia, ou que Mozart fez de Don Giovanni um maestro da devassidão, ou que Nietzsche, perdido nos abismos do eterno retorno, se rendeu ao fascínio hipnótico da valsa e do wagnerianismo.

A música pode bem ser sopro divino, mas também a fístula maldita do Flautista de Hamelin, atraindo os incautos para o precipício. Ou, se quisermos ser mais pragmáticos, será o violino bem tocado por políticos que pretendem adormecer a vigilância popular com suaves adagios de candura. E é aqui que chego ao senhor Rui Moreira, edil do Porto e exímio maestro na arte de tocar música para papalvos, persuadido de que rege uma sinfonia impecável, ainda que a orquestra desafine e o público, cada vez mais desperto, já não aplauda por reflexo.

Comecemos pela sua melodia nuclear, publicada no jornal Sol, à laia de defesa do honra do seu ‘convento’, leia-se, classe política, em sinfonia de uma só nota: “Sempre desconfiei dos desconfiados, porque, conhecendo-se a si próprios, temem que os outros sejam iguais.” Ah, que maravilha! Temos a retórica da inversão! Neste compasso de abertura, o senhor Moreira, bisneto de um armador da Marinha Mercante, navega em terrenos rudes e movediços, defendendo que a suspeita é atributo exclusivo dos canalhas, e que os vigilantes da res publica são, no fundo, apenas espelhos de corrupção ambulantes.

Não posso deixar de lembrar René Descartes, que no seu Discurso do Método proclamava a dúvida como princípio do conhecimento: “Que pour examiner la vérité il est besoin, une fois dans sa vie, de mettre toutes choses en doute autant qu’il se peut.” A suspeita, para o filósofo francês, não era sintoma de torpeza moral, mas sim a primeira etapa para se alcançar a verdade.

Porém, Moreira, fiel à sua partitura, prefere uma variação própria: a dúvida já não ilumina, mas denuncia o suspeitador, como se o próprio acto de desconfiar fosse prova de culpa. Se duvidais de um político, sereis seguramente pior do que ele. Coitado do francês: ensinou-nos a pensar para que viesse depois Moreira pensar que pode dar raspanetes que alguém ousa desconfiar. O respeitinho é muito bonito…

Estou a avançar em demasia para a coda, porque no interlúdio, em tom de andante cantabile, o edil da Foz do Douro recorda-nos que os sacrificados políticos lusitanos não são eremitas, que têm cônjuges, filhas e filhos, irmãs e irmãos, cunhadas e cunhados, sobrinhas e sobrinhos, pai e mãe, avós e avôs, netas e netos, talvez bisavós e tetravós, mas mortos como eu, tias e tios, primas e primos, genros e noras, sogros e sogras, enteados e enteadas, padrasto  e madrasta – e que não se pode exigir que sejam imaculados monges franciscanos.

Pois claro! Quem haveria de supor que laços familiares no poder, alguma vez, conduziriam a favorecimentos? Quem, no pleno uso da razão, ousaria imaginar que os lexicógrafos cunharam a palavra nepotismo para descrever algo que realmente existia? Não! Nepotismo é somente, para Rui Moreira, um ornamento etimológico, uma curiosidade sem aplicação prática, seguramente um mero capricho linguístico, um conceito abstracto sem qualquer reflexo na realidade, tal como os unicórnios do seu homólogo Moedas ou as utopias incorruptíveis.

Enfim, o próprio Maquiavel, que bem conhecia os corredores do poder, já nos advertia em ‘O Príncipe’ que um governante deve evitar parecer corrupto, mais do que evitar a corrupção em si. Mas para Moreira, os políticos são sacrossantos, e toda esta conversa de transparência e ética em cargos públicos não passa de uma histeria, uma moda passageira, como os perucões empoados da corte de Luís XIV.

E eis que vai Moreira em crescendo até à cadenza para, em momento virtuoso, dar a ideia de que um “conflito de interesses” somente é uma fabricação de uma escabrosa indústria – a indústria da pseudotransparência.

Aqui, permito-me recordar uma lição clássica da Roma Antiga. Durante a República, Cícero bradava contra Catilina, acusando-o de conspirações para pilhar o Estado, cujos aliados ripostavam com argumentos familiares: Cícero era alarmista, um homem obcecado por suspeitas, buscando apenas palco para si próprio. Mas a verdade foi implacável: Catilina era, de facto, um conspirador. Dois mil anos depois, a estratégia não mudou – ridicularizar os que fiscalizam o poder, transformá-los em caricaturas, desacreditá-los para jamais exporem desvios e desvarios políticos.

Por isso, a grande apoteose da peça de Rui Moreira vem na forma de um ataque a João Paulo Batalha, identificado como o “grande guru da suspeita”, que faz “pela sua vidinha a vilipendiar políticos”. Tadinhos. Diz-nos Moreira anda Batalha a apontar dedos injustos a políticos íntegros, enquanto ele próprio gere uma organização que, imagine-se, vende serviços de formação e consultoria sobre transparência!

Esta indignação de Moreira revela um moralismo peculiar: um político – incluindo o primeiro-ministro, que alterou a Lei dos Solos – ter uma consultora com negócios imobiliários no objecto social, é bastante natural e mais que aceitável, mas um activista anti-corrupção que se sustenta com formação em transparência já é um ‘mercador da suspeição’. Sun Tzu, no seu ‘A Arte da Guerra’, ensinava este estratagema: se não podes enfrentar um exército mais forte, ataca a sua reputação.

E, finalmente, chegamos ao adagio finale de Rui Moreira: um apelo quase litúrgico à perseguição de suspeitas infundadas, conclui que levantar dúvidas é fácil e gratuito – e pior ainda, que certas denúncias são feitas por interesse ou de forma discriminatória.

Ah, os violinos! Como soam doces quando se pede ao povo que feche os olhos e confie na bondade dos governantes! Daqui, ouço ao fundo o eco de outras figuras que nos brindaram com discursos semelhantes: Danton, nos estertores da Revolução Francesa, clamava contra os que denunciavam os excessos do Terror, alegando que era tudo fruto de “calúnias e má-fé”. O resultado? Perdeu a cabeça para a guilhotina.

Eis-nos, pois, nesta Sonata para Papalvos em Lá Maior – uma composição que nos embala num leito de belas palavras e harmonias convincentes, escondendo dissonâncias sub-reptícias. Como escrevi nas minhas memórias – e se não escrevi, devia ter escrito –, “a vida é uma ópera bufa em que cada um canta a sua ária sem reparar na desafinação do coro.” É esse o destino de todos os músicos que, ao invés de compor para a verdade, decidem orquestrar ilusões e tocá-las para um auditório que desejam ser de surdos.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

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