Poema póstumo de Natália Correia ao Aguiar-Branco

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Brás Cubas|26/02/2025

Dizei-me, caríssimas leitoras e digníssimos leitores, se a morte não tem ironias de fino recorte. Aqui estou eu, Brás Cubas, livre da compostura dos vivos, mas atento às suas manobras, a assistir a um feito curioso: um tribuno de sólidas relações e escassas inquietações, de seu nome José Pedro Aguiar-Branco, maestro dos tribunos do Parlamento da República Portuguesa, evocou e invocou Natália Correia como musa protectora de políticos em apuros.

Afiançou ele que, se ela por cá andasse, zurziria sobre aqueles que ousassem fazer da sua “declaração de rendimentos manchete de jornal”. Ah, Aguiar, Aguiar, Aguiar… Eis um homem que se aproveita da ignorância alheia com a destreza de um alfaiate da retórica. Bem sei que tinhas 36 imberbes anos quando Natália se finou, mas talvez devesses saber que se saiu daí rica em valias literárias mas pobre em rendimentos. Os seus pares fecharam-lhe as portas, e o país que a venerava na teoria, na prática já não lhe comprava os livros nem lhe oferecia palco. Na verdade, julgo que Natália Correia nem se importaria que lhe metessem os rendimentos em papel de banca, em letras garrafais, para vergonha dos seus contemporâneos, pelo escândalo do teatro hipócrita de um país que celebra os seus grandes quando mortos, depois de em vivos os ter deixado definhar.

Lê, filho, lê.

E vens agora tu, Aguiar-Branco, homem de discursos bem alinhavados e interesses que te assentam ainda melhor, puxar a memória de Natália Correia para suavizar embaraços da política e da transparência? Como se a poetisa, que nunca poupou os medíocres e os dissimulados, pudesse servir de escudo para manobras de conveniência? Chamá-la para branquear conflitos de interesse é coisa para fazer rir os mortos — e, no caso dela, também para fazê-los rimar.

Eu até estava para deixar passar mais esta diatribe, mas eis que a Eternidade tem os seus caprichos. E, entre as brisas do além, surgiu-me um pergaminho nas mãos. Natália, que jamais se prestaria a servir de álibi a políticos de mão leve e discurso pesado, quis que fizesse de mensageiro de um recado seu, em versos.

Não me acuseis de embustes, pois nem a cova enterra a sátira.

Aqui está, pois, o poema póstumo que a musa quis lançado sem hesitação — e com a precisão de quem nunca escreveu para agradar aos salões do poder.

Branco a guiar sua suja mão

Invocar-me, ó cavalheiro,
para a tua absolvição,
é tramar, no ardil primeiro,
uma torpe encenação,
como quem se faz cordeiro
com o lobo na intenção.

Se tens prédios, se tens rendas,
se a escritura te convém,
não queiras, com frases brandas,
dar-me a pose de quem vem
proteger-te das oferendas
que te enchem o próprio bem.

Pois se eu vivesse, ai, que tombo!
Dar-te-ia uma bofetada,
que num hipócrita faz rombo,
nessa face desavergonhada.
Mas se a morte me deu chumbo
levas com a rima aqui laçada.

E te aviso, Aguiar: não me tomes por tua santa,
não me vistas de recato,
pois a moral que a turba canta
não se engana com o trato.
E se a justiça se alevanta,
nada te protegerá, nem o fato!

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

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