A Mensagem do Moedas

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Serafim|04/03/2025

Confesso que não sou dado a entusiasmos precipitados. Enquanto felino de elevada estirpe e instinto crítico, aprendi, ao longo das minhas dezasseis vidas – que já valem agora mais de 80 anos das vossas –, que a pressa é um atributo dos caninos e dos tolos. O verdadeiro entendimento das coisas requer o seu tempo entre um longo espreguiçar sobre a cómoda e um piscar de olhos estudado, incluindo, claro, um juízo certeiro e implacável.

Na minha prolongada convivência com os humanos, já nada me surpreende. Poucos resistem à tentação de um mimo fácil – e quem diz mimo, diz dinheiro, que sempre melhora o conforto, pois não há nada melhor do que uma ração abundante e regular. Confesso que eu, felino aristocrático e de espírito livre, se por vezes me deixo enganar pela lata de patê aberta, não deveria questionar as práticas dos jornalistas, esses seres bípedes de convicções. Mesmo daqueles espécimes que as fazem maleáveis, sempre prontos a ronronar perante a promessa de uma almofada quente.

Mas, enfim, não consigo evitar.

E, portanto, soube que a autarquia de Lisboa decidiu atribuir bolsas para jornalistas e fui esquadrinhar o método e critério. Pois bem, num esforço verdadeiramente inovador, o regulamento permite que a autarquia, através de um júri escolhido a preceito – e que até inclui a directora de marketing da Ernst & Young –, conheça antecipadamente os temas que os jornalistas candidatos iriam cobrir. Não é admirável? Evita-se assim o incómodo da dúvida, o risco do escrutínio desnecessário, a possibilidade de uma investigação inoportuna.

De facto, se há coisa que sempre me irritou nos cães, além do seu permanente entusiasmo idiota, é aquela mania de escavar a terra à procura de ossos. Sempre achei uma actividade imprópria de criaturas civilizadas. E, pelos vistos, a Câmara de Lisboa também.

De entre as muitas candidaturas submetidas a este generoso programa, houve uma entidade que se destacou: o jornal Mensagem de Lisboa, que, com um brilhantismo capaz de fazer corar qualquer artista de circo, conseguiu abocanhar logo cinco das dez bolsas disponíveis na categoria de jornalismo. Não satisfeito, ainda levou um sexto prémio noutra secção. Um feito notável!

A sua directora, Catarina Carvalho, numa prosa que combina a altivez do gato gordo que monopoliza o sofá com a alegria do cãozinho que abana o rabo para o dono, anunciou com entusiasmo a sua vitória: “A Mensagem é, de longe, o órgão de comunicação mais representado. […] Isto enche-nos de orgulho pelo que diz do nosso conhecimento e relação com a cidade de Lisboa.”

Ah, como eu a entendo! Até porque uma das bolsas, no valor de 10 mil euros, foi para ela escrever sobre restaurantes. Também eu me orgulho da relação com a casa onde habito, embora até tenha algumas queixas a fazer da comida – se calhar, deveria fazer crítica gastronómica para o PÁGINA UM. Conheço-lhe cada recanto, cada móvel, cada canto debaixo do qual já fiz desaparecer um brinquedo – e fiz outras coisas inconfessáveis, pois o meu dono insistiu em nunca me esterilizar e a velhice me faz esquecer, por vezes, as boas maneiras.

Sei perfeitamente onde está o aquecedor nos dias frios, a manta macia e, claro, o humano que melhor me coça o pescoço. Conhecer bem um território é essencial para nele se viver com conforto – e Carlos Moedas sabe disso, e usa as moedas do erário público para assegurar isso. Tanto assim que o juri, pela leitura da acta, fez figura de corpo presente. De facto, os dois membros da Equipa Executiva, funcionários da empresa municipal EGEAC, fizeram “aos membros do júri um resumo da lista das candidaturas ordenadas pela média aritmética”, deduzindo-se, assim, que o dito júri nem sequer viu as candidaturas em concreto. A ‘coisa’ resolveu-se numa hora, de acordo com a acta – nada melhor do que decisões de secretaria para evitar conflitos e horas perdidas.

E, neste cenário, a directora do Mensagem de Lisboa fez ainda questão de recordar que este é o único apoio estatal ao jornalismo em Portugal e saudou a iniciativa, o que já não a abona como jornalista porque mostra que ignora que uma autarquia não integra o Estado. Enfim, mas que importa isso? Na verdade, compreendo que a Catarina Carvalho saude este apoio financeiro, “sobretudo nos tempos conturbados que se vivem para o jornalismo” – e uma das causas desses “tempos conturbados” parece-me ser a falta de transparência; e uma outra, a promiscuidade com o poder.

Eu próprio, hélas, saudaria uma iniciativa que garantisse que o meu atum diário fosse subsidiado e entregue em casa pela Câmara Municipal de Lisboa. Poupava-se trabalho, evitava-se a necessidade de miar, eliminava-se o risco de morder a pata errada. Para quê o incómodo de saltar sobre a bancada da cozinha e esgatanhar algo para mordiscar, se a Câmara Municipal me entrega o atum para que eu não precise de caçar ratos?

E, assim, abre-se um novo modelo de jornalismo: não morde, não arranha, não ferra. Tal como um gato agradecido, terá um jornalismo que se enrosca no colo do poder, que se alimenta dos seus recursos e que, em troca, apenas pede para continuar a existir. Não investiga, não denuncia, não incomoda. Vive, plácido, nas boas graças do financiador.

É, em suma, um jornalismo de casa: domesticado, bem alimentado, castrado da sua natureza investigativa. Nada que me choque demasiado – tenho essa experiência na minha já longa vida, excepto na parte da castração.


Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

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