Frequência e conteúdo dos relatórios da pandemia mostram que Instituto Superior Técnico quis manipular políticos

Afinal, os 51 relatórios do Instituto Superior Técnico (IST) sobre a evolução da pandemia da covid-19 existiam. Ou, pelo menos, passaram a existir – e foram, finalmente, enviados, em papel, para o advogado do PÁGINA UM, depois de um kafkiano processo no Tribunal Administrativo. O envio apenas ocorreu após um pedido de execução da sentença, com solicitação de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do IST, Rogério Colaço, uma vez que a instituição universitária pública não cumpriu os prazos estabelecidos pelo acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, emitido em Dezembro passado.
Dura lex sed lex. E pese embora o caso ainda não estar encerrado, porque o IST expurgou indevidamente dados dos relatórios – há já questões pertinentes a revelar. Uma análise, ainda que superficial, aos 52 relatórios – que a própria instituição chegou a designar como “esboços embrionários que consubstanciam meros ensaios para eventuais relatórios” – revela, de forma inequívoca, que alguns não foram produzidos com o propósito de fazer ciência, mas sim de fazer política e gerar alarme público, sem sequer apresentar a metodologia ou os dados utilizados.

Essa instrumentalização nota-se particularmente na frequência com que o IST produziu os relatórios, que, a partir de Julho de 2021, passaram a contar com o dedo da Ordem dos Médicos – e, em particular, do então bastonário e actual vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, e do pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações comerciais à indústria farmacêutica.
Com efeito, numa primeira fase, os chamados Relatórios Rápidos tiveram uma frequência quase diária. O primeiro foi produzido a 19 de Março de 2021 – embora, estranhamente, a capa indique 19 de Maio de 2021 – e, até ao final desse mês, foram elaborados nove documentos. Em dois meses, até finais de Abril de 2021, o IST tinha já feito 23 relatórios rápidos. Em Maio, foram apenas elaborados quatro, e em Junho, cinco.
Nessa altura, os relatórios tinham apenas uma circulação restrita, entre académicos – até porque a intenção inicial era modelar um índice pandémico usando diversos indicadores epidemiológicos. Isso fica evidente logo no primeiro relatório, no qual os autores do IST escreveram, em Março de 2021: “Estamos disponíveis para responder a qualquer solicitação possível na análise dos dados disponíveis da pandemia”. Uma frase irónica à luz do processo que se seguiu: o PÁGINA UM teve de percorrer um calvário de 31 meses, através de uma intimação no Tribunal Administrativo, para obter aquilo que, afinal, os investigadores diziam estar disponíveis a dar, se solicitado.
Certo é que se torna evidente que foi a partir de Julho de 2021 que os relatórios se politizaram, com a entrada em jogo da Ordem dos Médicos. Através de uma parceria nunca oficializada documentalmente – mas apresentada numa conferência de imprensa –, a Ordem começou a divulgar esparsamente os relatórios, conforme as conveniências.

O primeiro Relatório Rápido também com a chancela da Ordem dos Médicos foi publicado a 19 de Julho de 2021 e recebeu o número 35. Nesse mês, de baixa incidência da covid-19, foi apenas publicado outro, o número 36. Seguiu-se então um hiato de quase dois meses: somente a 17 de Setembro foi publicado o relatório 37. E quase dois meses mais tarde, a 15 de Novembro, surgiu um novo relatório – coincidindo com o aparecimento da variante Ómicron e com a desejada (pela Ordem dos Médicos) vacinação de adolescentes e crianças. A partir desse momento, os relatórios rápidos voltaram a aumentar de frequência, quase sempre com um tom alarmista e com fraca base estatística a sustentá-los.
Assim, entre 15 de Novembro e as vésperas do Natal de 2021, a equipa do IST / Ordem dos Médicos produziu cinco relatórios. Com a entrada em 2022, os relatórios foram cirurgicamente publicados, surgindo acompanhados de notícias que tinham o claro objectivo de influenciar as diversas medidas restritivas ainda em vigor.
Por exemplo, o Relatório Rápido número 46 foi produzido a 15 de Fevereiro de 2022 para coincidir com reuniões informais no Infarmed. O IST deixou escapar o relatório para a agência Lusa, onde, sem qualquer sustentabilidade científica e estatística, se afirmava que “ainda existe a possibilidade da introdução de novas mutações” do coronavírus SARS-CoV-2, sendo “muito recomendável“ uma vigilância por amostragem dos viajantes vindos de zonas de maior risco epidemiológico.
O relatório seguinte, número 47, serviu novamente para fazer política, pois, mais uma vez, foi deixado escapar para a Lusa – mas nunca divulgado publicamente –, avançando a tese de que se estaria a ver “o desenho de uma sexta vaga de forma muito clara“. Acrescentava-se ainda que “o risco pandémico ainda não é muito elevado, mas é necessário perceber como vai continuar a evolução dos números”.

E, mais uma vez sem a prudência que a ciência exige – pois não existiam dados estatísticos para corroborar essas recomendações –, os investigadores do IST escreveram que “deve ser mantida a monitorização, todas as medidas em vigor devem ser mantidas sem relaxamento e deve ser indicado à população que é necessário tomar cuidados individuais”. Argumentaram, ainda, que o seu indicador de gravidade estava “em nível de alerta, com forte tendência de subida, e que a protecção imunitária estava, segundo a evidência recolhida, a descer”.
O grau de ingerência política por parte dos investigadores do IST, em colaboração com a Ordem dos Médicos, atingiu o seu apogeu a 28 de Julho de 2022, quando os relatórios 51 e 52 chegaram ao cúmulo de quantificar, sem qualquer base científica, o número de infecções (350 mil casos) que as festividades populares causariam. Para além disso, atribuíam mesmo um número concreto de mortes (790, das quais 330 associadas às festas populares de Junho), recorrendo a uma lógica contrafactual sem base científica, sustentada apenas no facto de não se ter mantido a testagem e o uso de máscaras.
Foi por sentir que a ciência estava a ultrapassar os limites da seriedade mínima – com atitudes indignas de uma instituição científica com o estatuto do IST – que o PÁGINA UM decidiu solicitar a totalidade dos relatórios. E perante a recusa, lutou nos tribunais até que um catedrático, Rogério Colaço, descesse do seu pedestal e se convencesse que Portugal não é a sua ‘sala de aula’ onde pode ser um tiranete sem consequências.

O processo demorou 32 meses, mas conseguiu-se. E conseguiu-se também que o IST deixasse de fazer mais “relatórios rápidos” deste quilate – o que também foi outra vitória do PÁGINA UM.
Nos próximos dias, dado ser necessário digitalizar quase quatro centenas de páginas dos 52 relatórios – o IST não quis enviar os documentos digitalizados -, o PÁGINA UM irá divulgar integralmente os documentos. E assim se poderá livremente expor e avaliar-se a qualidade da ciência portuguesa nos tempos em que investigadores da academia decidiram também fazer política. O relatório rápido 1 – com o curioso engano logo na data – pode já ser consultado AQUI.
N.D. Este longo caso, com uma sentença e um acórdão, levou 33 longos, com muito trabalho de um dos advogados do PÁGINA UM, Rui Amores, que foi inexcedível. Mas também se deveu muito aos leitores que, desde 2022, têm suportado os elevados custos dos processos administrativos, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM está a retomar mais processos de intimação, dois dos quais serão revelados ainda esta semana.
N.D. 2 – Desde já se declara que este artigo noticioso se baseia em factos, em análise preliminar dos relatórios e da interpretação dos factos e do contexto no espírito da liberdade de imprensa e de expressão defendida pela imprensa. Não existe, nem se justifica, o alegado direito ao contraditório sobretudo para uma entidade que nunca mostrou disponibilidade para disponibilizar os relatórios, contrariando os princípios da Ciência e mesmo aquilo que escreveu no relatório rápido. Em todo o caso, quem desejar, pode ler a interpretação de Rogério Colaço num texto de direito de resposta publicado AQUI.