Barcelona 0.1

Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.
(estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.
Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.
Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.





No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…
(boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)
Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.
Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.
(para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)
Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

(pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)
E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.
Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.
(mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)
Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..
Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.
E eu a encher já chouriços…
Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.
(lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.
E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…