Força Aérea faz contratos de 59 milhões com empresa condenada no ‘Cartel del Fuego’

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Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares|06/03/2025

A Força Aérea Portuguesa celebrou, na semana passada, três contratos de meios aéreos de combate aos incêndios rurais no valor de 59 milhões de euros com uma empresa de capitais espanhóis – a Agro-Montiar –, cuja ‘holding’ (Avialsa, hoje Titan) foi condenada em Fevereiro passado num mega-processo judicial envolvendo corrupção, prevaricação, peculato e falsificação.

O processo conhecido por ‘Cartel del Fuego’ teve o seu desfecho numa sentença do passado dia 5 de Fevereiro, que levou à condenação de doze réus – acusados ​​de formação de cartel em contratos públicos de combate a incêndios no sector de navegação aérea entre 2001 e 2018 – a penas de prisão entre dois anos e três meses e seis meses. De entre os condenados está o ex-delegado do Governo na Comunidade Valenciana, bem como dirigentes de diversas empresas aeronáuticas que concertavam preços.

Foto: D.R.

A sentença da Audiência Nacional confirma que, entre 1999 e 2018, um grupo de empresários do sector de navegação aérea de combate a incêndios rurais compartilharam geograficamente as licitações públicas abertas, e que “em colaboração com autoridades ou agentes públicos”, estabeleceram “acordos clandestinos prévios e com fins lucrativos”, impondo “às administrações contratantes preços superiores aos que resultariam de uma concorrência livre e transparente, por meio de repartição fraudulenta de mercado”.

Em concreto, de acordo com a sentença, a Avialsa – dona da Agro-Montier, através da Aviación Agricola de Levante – liderava uma rede de empresas que coordenavam ofertas em concursos públicos, garantindo que apenas uma delas apresentava proposta vencedora, enquanto as restantes faziam ofertas de cobertura para simular uma falsa concorrência. Além disso, o conluio incluiu falsificação de documentos, pagamento de subornos a funcionários públicos e contratos simulados entre as empresas envolvidas para inflacionar artificialmente os custos.

O tribunal determinou que o fundador e administrador da Avialsa, identificado na sentença como “D. Salvador”, teve um papel central na organização do esquema, assegurando que os contratos eram distribuídos entre as empresas do grupo. Esta pessoa será Salvador Alapuz, que se manteve sócio da empresa enquanto exercia como funcionário público.

Primeira página da sentença contra o ‘Cartel del Fueg’ pela Audiência Nacional em 5 de Fevereiro de 2025.

Foram ainda identificadas práticas de corrupção, incluindo a oferta de vantagens indevidas a responsáveis administrativos das Generalitat Valenciana e Generalitat Catalana para favorecer adjudicações.

A investigação, que levou à condenação dos responsáveis, foi impulsionada pelo testemunho de um ex-director-geral da Avialsa, que denunciou o esquema às autoridades, permitindo a recolha de provas cruciais. Este caso, considerado um dos maiores escândalos envolvendo contratos públicos em Espanha, ocorreu sobretudo nas Comunidades de Valência e Catalunha, os Ministérios da Agricultura e do Ambiente e, em menor grau, nas comunidades andaluza e castelhano-manchega.

De uma forma inédita, a Audiência Nacional sentenciou também que as as seis empresas envolvidas sofressem um período de inibição de estabelecer contratos públicos em Espanha durante nove meses. Uma penalidade que pode custar várias dezenas de milhões de euros de facturação e permitir a entrada de concorrentes, causando danos potencialmente irreparáveis. Neste lote de empresas abrangidas pela proibição de contratos estão, além da Avialsa (actual Titan), a Trabajos Aéreos Extremeños (TAEXSA), a Martínez Ridao Aviación, a Servicios Aéreos Europeos y Tratamientos Agrícolas (SAETA), a TA Trabajos Aéreos Espejo, Compañía de Extinción General de Incendios (CEGISA) e a Pegasus Aviacion. Estas empresas também foram condenadas a pagar uma indeminização de 234 mil euros à Administração Geral do Estado. O processo ainda é passível de recurso.

Foto: D.R.

Em 2017, uma possível ramificação do ‘Cartel del Fuego’ foi investigada em Portugal, sobretudo porque em 2014 a Avialsa comprou a empresa portuguesa Agro-Montiar, inicialmente com sede no Montijo e que se deslocou depois para Tondela. Logo nesse ano, a Agro-Montiar recebeu um ajuste directo de 1,8 milhões de euros para disponibilizar duas aeronaves à Autoridade Nacional de Protecção Civil. Em Maio do ano seguinte ganharia um concurso público no valor de quase 5 milhões de euros para fornecimento de duas aeronaves para combate aos incêndios rurais por um período de três anos, não sendo reveladas no Portal Base quais as empresas que concorreram.

Sobretudo a partir de 2018, através da Agro-Montiar, a Avialsa consolidou a sua presença no chorudo negócio do combate aéreos aos incêndios rurais. Nesse ano conseguiu ganhar dois contratos num valor global de 19 milhões de euros. Seria em 2020, porém, que chagariam os contratos mais avultados. O primeiro em Março, no valor de 43,4 milhões de euros, para quatro meios aéreos durante quatro anos, em que terá ‘derrotado’ nove concorrentes. E o segundo, no mesmo mês, no valor de 36,2 milhões de euros, em que ‘derrotou’ 10 concorrentes.

Porém, em 2022, soube-se que a Agro-Montiar alugou duas das quatro aeronaves a uma das concorrentes que derrotara, a CCB Serviços Aéreos, com capitais de um dos envolvidos na ‘Cartel del Fuego’, Ángel Martinez Ridao, que controla a SAETA e a Martínez Ridao Aviación. No entanto, em Portugal, apesar dos gastos milionários no uso de meios aéreos no combate aos incêndios, com fracos resultados, nunca as autoridades encontraram as mesmas evidências confirmadas em Espanha pela Audiência Nacional.

Foto: D.R.

Em 2023 e 2024, a Agro-Montiar obteve mais três contratos similares no valor total de 19,4 milhões de euros. Com os três agora assinados na semana passada com a Força Aérea Portuguesa, a empresa de capitais espanhóis, cuja ‘holding’ encabeçava o ‘Cartel del Fuego’, totaliza contratos públicos em Portugal no valor de quase 186 milhões de euros, que com IVA ultrapassa os 228 milhões de euros. Desde 2020, o valor da facturação foi de 158,3 milhões de euros, que com IVA aproxima-se dos 195 milhões de euros, todos com a Força Aérea.

O PÁGINA UM aguarda eventuais comentários do Ministério da Defesa sobre os contratos estabelecidos com a Agro-Montiar.

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