EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

O pedantismo cientifista de David Marçal, sacerdote da Verdade Absoluta

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Pedro Almeida Vieira|07/03/2025

Sempre que leio no Público as crónicas de David Marçal, vejo ali um cruzado da Ciência, um paladino da racionalidade contra as hordas de bárbaros negacionistas. No entanto, ao contrário do que prega, Frei Marçal não combate o obscurantismo com argumentos rigorosos nem com método científico, mas com enviesamento ideológico e um irritante pedantismo que roça a arrogância e a boçalidade, temperado com um desdém dogmático que faz lembrar os inquisidores do Santo Ofício.

No seu texto de hoje, glosa sobre um surto de sarampo nos Estados Unidos, parafraseando, de forma acérrima, o lema trumpista. “Tornar o sarampo grande outra vez” – o título do artigo de opinião – serve de mote para David Marçal culpabilizar R.F.K. Jr. por tudo e um par de botas. De facto, encontra-se em curso um surto de sarampo em 12 jurisdições norte-americanas: Alasca, Califórnia, Flórida, Geórgia, Kentucky, Nova Jérsia, Novo México, Nova Iorque, Pensilvânia, Rhode Island, Texas e Washington. Houve já uma morte confirmada e outra em investigação. As mortes não são normais, independentemente de estatisticamente serem irrelevantes, mas estaremos perante algo incontrolável? Uma crise de saúde pública causada pelo simples facto de Trump e R.F.K. Jr. terem assumido o poder nos Estados Unidos há menos de dois meses?

Vejamos. O Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – que mantém a mesmíssima abordagem e acompanhamento sobre os perigos do sarampo e sobre a vacinação – aponta este ano para 222 casos desde 1 de Janeiro até ontem, dos quais 38 resultaram em hospitalizações. Podemos ver isto em duas perspectivas. Em termos relativos, estes 222 casos nos Estados Unidos corresponderiam a 7 casos em Portugal, considerando a diferença populacional. A nossa Direcção-Geral da Saúde não costuma revelar informação detalhada da monitorização de sarampo em Portugal, mas posso adiantar que, há um ano, entre 1 de Janeiro e 5 de Maio, tinham sido contabilizados 27 casos. Ajustando para a população das terras do Tio Sam, estes 27 casos nacionais equivalem a 860 casos nos Estados Unidos. Não me recordo de ter lido David Marçal a escrever sobre os surtos de sarampo em Portugal em 2024.

Além disso, convém referir que o sarampo é, cada vez mais – e em virtude também da vacinação –, uma doença benigna em países mais modernizadas, embora ainda longe de estar erradicada. E nos Estados Unidos, onde os diversos Governos estaduais têm um papel determinante, a ocorrência de surtos depende de muitos factores, sendo evidente que os mais vulneráveis são as pessoas não vacinadas. Se olharmos para o site do CDC, essa evidência é ali exposta para o ano de 2025, com R.F.K. Jr., tal como nos tempos de Biden e no primeiro mandato de Trump.

Aliás, é curioso reparar que o número de casos de sarampo este ano ainda é inferior aos de 2024 – e não é certo que seja ultrapassado – e muitíssimo inferior aos valores de 2014 (667 casos, no segundo mandato de Barack Obama) e de 2019 (1274 casos, no primeiro mandato de Trump). Convém referir que, tanto num período como no outro, o responsável máximo do National Institutes of Health (NIH) era Anthony Fauci. Parece-me que apenas estes simples dados desmontam, e estragam, o tão jeitoso título de David Marçal.

Casos de sarampo por ano nos Estados Unidos desde 2000. Fonte: CDC.

Porém, onde Marçal melhor regurgita o seu ‘ódio’ quase irracional a R.F.K. Jr. – que há duas dezenas de anos era considerado um ídolo das correntes ambientalistas pela sua tenaz luta como advogado – é na tese de ser ele “um teórico da conspiração antivacinas”. E para tal, conta Marçal um episódio de um surto de sarampo em Samoa após erros na administração de vacinas terem causado mortes. Esquecendo, ou querendo esquecer, Marçal, que a Farmacopeia não é uma história imaculada, o paladino da Ciência chega a culpar R.F.K. Jr. de ser co-responsável por 83 mortes naquele país da Polinésia, por uma doença que a OMS diz ser fatal, por ano, para mais de 100 mil pessoas. Em 2023, foram 107.550 pessoas, praticamente todas em países subdesenvolvidos.

Mas é na forma como David Marçal resume uma carta de R.F.K. Jr., em Novembro de 2019, ao primeiro-ministro de Samoa que se mostra o tipo de cientista que é – ou, melhor, que não é. Diz David Marçal que o actual secretário de Estado da Saúde norte-americano “culpa as vacinas pelas mortes por sarampo” e que a “carta de quatro páginas é um absoluto delírio” – contudo, o delírio está do seu lado.

Lendo a carta de R.F.K. Jr., haveria espaço para rebater factualmente alguns dos seus argumentos – algo que um verdadeiro defensor da Ciência deveria fazer. Mas isso não é coisa para David Marçal – e outros que, durante a pandemia, ‘arrotaram’ certezas insofismáveis –, que enveredou pelo caminho da deturpação e do achincalhamento, reduzindo tudo a um “absoluto delírio” e a um “chorrilho de argumentos pseudocientíficos”.

A táctica de David Marçal é sempre a mesma: simplifica-se ao extremo a posição do ‘adversário’, amputando-lhe qualquer nuance ou legitimidade, para depois a ridicularizar como se fosse produto de uma mente lunática. “Dois dias depois, R.F.K. Jr. escreveu ao primeiro-ministro de Samoa, na sua qualidade de presidente da Children’s Health Defense, culpando as vacinas pelas mortes por sarampo no país”, escreveu Marçal. A afirmação é uma mentira objectiva. Na sua carta, Kennedy nunca culpa as vacinas pelas mortes.

A carta não é um panfleto antivacinação, não incita ao medo irracional das vacinas, nem exorta os samoanos a rejeitarem a imunização. Aquilo que R.F.K. Jr. faz é levantar questões sobre a relação entre a vacina MMR da Merck e a crise sanitária em Samoa, propondo hipóteses que deveriam ser cientificamente avaliadas. Ele sugeriu que se investigasse a imunidade materna conferida pela vacina, que se determinasse se a vacina estava a cobrir todas as estirpes do sarampo circulantes e que se examinasse se a vacinação em massa poderia ter desencadeado infecções por estirpes vacinais.

Estes são argumentos que podem ou não ter mérito científico – e é assim que se deve tratar a Ciência, como um debate aberto, e não como um dogma imutável –, mas em nenhum ponto R.F.K. Jr. se opõe à vacinação per se. Aquilo que ele sugere é precisamente uma abordagem científica: estudar os dados, sequenciar geneticamente os vírus, identificar as variantes em circulação, analisar a eficácia das vacinas num contexto complexo, não assumindo que sejam consideradas sacrossantas.

David Marçal

Se David Marçal fosse um cientista a sério – e não um propagandista travestido de divulgador –, responderia a todos os argumentos de R.F.K. Jr. com números, estudos e dados. Mas nada disso faz – às tantas, dirá que tem mais que fazer. E assim, em vez disso, opta pelo caminho mais fácil: a caricatura.

Este modus operandi de ataque ao ‘inimigo’ é recorrente – e viu-se bem na pandemia da covid-19. David Marçal nunca debate – destrói. Nunca argumenta – desqualifica. Nunca analisa – ridiculariza. Para ele, não há espaço para dúvidas ou para a revisão de conceitos. O palco é-lhe oferecido sem contestação – e ele ergue-se convencido da vitória e da razão.

Para Frei Marçal, a Ciência é um santuário de verdades absolutas – como eram, por exemplo, os verhonhosos relatórios epidemiológicos do Instituto Superior Técnico –, e ele, um Sumo Sacerdote que pode decretar quem é herege e quem é iluminado. O problema é que esta postura não tem nada de científica. A Ciência verdadeira não se faz com certezas dogmáticas, mas com questionamento constante, com hipóteses que devem ser testadas, refutadas ou confirmadas pela experiência e pelos dados.

A ironia disto tudo: se há alguém realmente a praticar a pseudociência, é David Marçal. A pseudociência não é apenas acreditar em teorias da conspiração e negar evidências – é também a recusa do debate, o uso de argumentos de autoridade em vez de evidências, a manipulação retórica para eliminar opositores sem os confrontar directamente. R.F.K. até poderia estar a fazer pseudociência, mas Marçal quer impor-nos a anti-Ciência, quer transformar a Ciência em dogma. Aquilo que ele pratica não é divulgação científica – é uma propaganda científica enviesada, onde o nome da Ciência é usada, e abusada, não para esclarecer, mas para justificar dogmas e atacar dissidências.

E o efeito deste cientificismo autoritário é exactamente o contrário daquilo que ele quer fazer passar. David Marçal acredita que, ao ridicularizar os críticos, está a proteger a Ciência do obscurantismo. Mas, na verdade, está a afastar as pessoas da Ciência.

Quando a Ciência se apresenta como um dogma inquestionável, as pessoas começam a desconfiar dela. Quando os defensores da ciência se comportam como inquisidores, as pessoas começam a procurar alternativas. Quando o debate é substituído pela arrogância, a credibilidade científica é corroída.

Sejamos claros: a vacinação é uma das maiores conquistas da Medicina moderna, mas a confiança na vacinação não se impõe como se o hábito fizesse o monge; não se impõe com escárnio e insultos – conquista-se com transparência, com comunicação clara e honesta, com abertura ao debate. O problema de Marçal, e de tantos outros cruzados do cientificismo, é que não percebem que a confiança na Ciência não pode ser imposta à força; deve convencer, e não vencer; as pessoas devem ser conquistadas através do rigor, da humildade e da disponibilidade dos cientistas para responderem a todas as dúvidas – mesmo as que parecem incómodas ou possam ser obtusas.

Se R.F.K. está errado, então prove-se que está errado. Mas prová-lo exige mais do que epítetos e ridicularizações – exige Ciência a sério. E mal seria se, estando ele errado, não existissem (como acho que existem) mecanismos numa democracia para evitar que ele imponha a sua opinião errada a toda a sociedade. Marçal pensa que isso se faz com marketeers da Ciência com tiques de inquisidores. Na verdade, a Ciência não precisa de tipos como David Marçal com tiques de inquisidor; precisa apenas de cientistas, que errem por lapso e acertem por sabedoria, e que, na prudência, tenham a humildade de reconhecer que até os seus acertos podem, afinal, ser erros.

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