Os encarniçados

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Tiago Salazar|08/03/2025

O Sol é para todos, mas não o tapemos com uma peneira. O privilégio de estar aqui (a banhos), de charuto na mão esquerda, enquanto o indicador direito vos escreve, é, em boa parte, fruto do meu trabalho. Não os recebo, aos puros, dos meus amigos castristas. Volta e meia recebo um charuto de amigos que sabem ser este o meu prazer mais excelso, a par de celebrar o Amor carnal e espiritual.

Devo aos genes, a uma avó professora, ao acaso feliz, a amizades do Caminho, a conjugação de valorizar o empenho como forma de obter o justo retorno do que quer que seja e me apaixone. Não nasci em berço de ouro, mas nos verdes anos nunca faltou nada, a não ser a presença afectiva dos meus imberbes pais. Talvez essa carência prematura dite a minha busca de prazeres, como deve haver outra razão qualquer para padecer de uma curiosidade insaciável.

Tudo me interessa, da vida dos santos ao mais ínfimo detalhe da tola de bandidos. Faço um exercício diário de reflexão ao espelho e escrevo coisas assim:

ORDEM E PROGRESSO I A demanda e a debanda de brasileiros que se instalam em Portugal afina quase sempre pelo mesmo diapasão: escapar da violência e da corrupção. Os nossos patrícios de língua preferem a Pátria de Cabral à terra amaldiçoada do pau brasil. Juca Chaves determinou que o Brasil não ia para a frente por terem cortado o pau do índio. Os euros também contam na decisão, perante a fraqueza do real. Há brasileiros e brasileiros nesta demanda. Mas a maioria não traz doutoramento, a não ser na universidade da vida. Os crânios do Brasil mais depressa se instalam nos EUA ou na Austrália. Dá pena, um país tão sobredotado pela mãe Natureza ter pais tão medíocres. Não foi por impulso que D. Pedro escolheu o Brasil. Eu, se fosse parido lá, não o trocava. Fazia de Paraty ou da chapada dos Veadeiros a minha eterna morada. Deixava crescer a barba. Lia e escutava Machado de Assis, Clarice, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Vinícius, Jobim, Chico, João Gilberto, Betânia, Drummond de Andrade, Veríssimo, Amado… amava a minha pátria e agradecia ao Cabral.

SANTOS I O meu santo padroeiro é o Fernando de Bulhões, arrebanhado pelos italianos de Pádua e santificado como António. Devo-lhe a recuperação de todas as coisas perdidas. Oro com fé e nunca me falha. Só não lhe devo a felicidade conjugal perpétua com uma das três nubentes do meu currículo porque não me deu para lhe pedir o quesito. A felicidade, porém, depende do que faço por ela. Os santos ajudam na curva descendente. Tenho um lema: todos os dias arrancar um sorriso ou gargalhada da consorte. O humor não chegou para lavar e durar noutros enlaces porque não tinha que ser mais do que foi. Santo é quem abdica das suas paixões e dá a vida por uma causa ou causas. Sem lixar o próximo. O santo é por natureza um milagreiro. É um milagre ainda haver santos.

BANDIDOS I Eu gosto de bandidos que são bandidos porque há bandidos eleitos e venerados. Esses bandidos que são bandidos à margem das leis feitas por bandidos não aceitam que os tomem por lacaios e por parvos. Dillinger, Pancho Vila, Ernesto Guevara, Zapata, Makhno. Alguns a quem chamam de bandidos e assassinos são guerrilheiros imbuídos de ideais elevados que busca(ram) um mundo melhor, livre de bandidos como Nixon, Fulgêncio, Trump ou assim. Pinto da Costa foi um bandido e se eu fosse do FCP admirava-o. Teria um altar no WC. Faria parte da milícia pretoriana. Estou a exagerar. Mas gostaria dele. Há, houve e haverá bandidos em todos os lados, clubes, religiões, seitas, empresas. À solta, odiados e venerados. Para algumas mulheres eu sou um bandido arranca-corações. Onde é que isso já vai… Mas se calhar é por dizer estas coisas.

PROFECIAS I Os açorianos riem-se da cagufa dos alfacinhas quando a terra treme. Habituados a viver debaixo de provações e abalos, um sismo moderado, um vinho entornado, não é nada. Ontem, estava eu no mictório, quando se deu a sacudidela de 4.7 ou 4.2. para bater certo com a falsa notícia de que pela última vez o pintinho assustava os mouros de Lisboa. Não precisei de sacudir as miudezas. Foi divertido. Mais tarde ouvi o Moedas e o noticiário da quase catástrofe. Tal como o analista sismólogo a classificar o fenómeno de “interessante” e estabelecer um paralelo curioso com outros paradeiros sacudidos como Santorini fruto de partilharmos o globo terrestre. De facto, na partilha é que está o ganho. Se deixassem de haver competições e troféus na esfera terrestre como seria? Um tédio, certamente, para quem aprecia a agitação.

Estas pequenas coisas levam-me a pensar que sou um privilegiado. Nada me é dado de bandeja. Nem estas crónicas são feitas em troca de pilim. Recebo em géneros. É o meu género. Os encarniçados, descontentes, que só espumam e lamuriam, entediam-me.

Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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