A coisa mais tremenda que eu já vi nesse banhado

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Lourenço Cazarré|09/03/2025

E como chegou, atropelou-a, agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna entre as dela, forcejando por derrubá-la, respirando duro, furioso, desembestado… mais mordendo que beijando o pescoço amorenado… e garboso…

No manantial, João Simões Lopes Neto


Está vendo aquele prédio verde mais alto, ali, à direita? É, o sobrado. Na parte de baixo funciona uma padaria. E lá, à esquerda, aquela casinha rosa bem na esquina? Imagine só: de um lado a outro, isso era só barraco. Um coladinho no outro, sem muro nem pátio. Uma amontoação que descia banhado dentro, quatro, cinco quadras. Ia mais ou menos até aquele poste lá na curva. Isso, onde a avenida dobra. Era muita gente que morava aqui.

Faz mais de trinta anos, se não me engano. Eu era pequeno de uns nove anos quando chegamos aqui. A família toda: o pai, a mãe, a mana e eu.

Não, não sei o ano direito, só sei que foi depois de uma enchente. A gente morava do outro lado da cidade, na Cerquinha. Perdemos quase tudo no aguaceiro.

A vila surgiu num tapa. De repente, tinha aquele monte de barracos. O pai trouxe de charrete as madeiras da casa antiga, que a água tinha arrebentado. A gente veio de noite. De dia já me acordei morando na Vila dos Agachados.

Ficamos sem colégio aquele resto de ano. Foi bom. A gente se metia pelo banhado: jogando bola, pescando, nadando e matando passarinho. A gente comia passarinho, claro. Pomba era melhor.

Para todos os lados que se olhasse, só se via bandos e bandos de guris de canelas embarradas.

No verão, a gente ia nadar num poço grande que tinha bem mais para a frente, depois dum matinho. O nome era Redondo, porque tinha o formato de uma roda mesmo. A gurizada passava o dia nadando. Só os machinhos, claro. As gurias não desciam das casas.

O Redondo? Era como um açude, mas feito pela natureza mesmo. Fundo, sim. Bem no meião a água tampava a cabeça do indivíduo.

Foi na beira desse tal Redondo que se deu a coisa mais tremenda que eu já vi nesse banhado aí.

A senhora tem tempo? Tem mesmo? Olha que é história enrolada!

Foi assim. Eu morava bem no meio da vila. Quero dizer, a minha casa ficava mais ou menos na metade da rua, a única rua, a que cortava de cima a baixo. Mais para lá, uns três barracos depois, morava o Magro. Era um bem mais alto do que eu, mas leviano de peso, cara fina. Parece que se chamava Nadir, não sei direito. Vivia só ele e mais o pai dele, um senhor emburrado, caladão. Tinham vindo da campanha e parece que o pai dele vivia de biscate.

Mais adiante, bem no finzinho da rua, morava a Marianita. Era uma mulata sarará, de olho verde. O cabelo era bem loiro, mas ruim. Quando chegou na vila, ela era uma guria sem graça, gordinha, meio corcunda, com a carapinha sempre enfiada num lenço.

A idade do Magro? Acho que tinha uns treze quando veio para cá. Mas o caso que eu vou lhe contar se deu depois, uns dois anos e pico depois. Então, a senhora faça os cálculos. É isso mesmo: o Magro tinha uns quinze e a guria devia andar pelos quatorze…

Ah, tem mais uma pessoa nessa história: o Negãozinho. O nome dele era engraçado, nunca esqueci: Dionvaine. Ele morava perto da Marianita, mais na banda de lá. Era uma penca de filhos, uns sete. Tudo guri. O Negãozinho era o mais velho. De idade ele regulava com o Magro, mas era muito maior, ombrudo. O Negãozinho só entrava dobrado, de cabeça gacha, no barraco da família dele.

Como eu lhe disse, a gurizada passava o dia no banhado. Na parte mais de cá a gente jogava bola. Num arroiozinho que tinha mais para lá se pescava. A gente caçava passarinho no mato que tinha perto do Redondo. Mas também se fazia guerra de bodoque com bolinha de barro. Teve um até que ficou caolho, um gordo foguinho.

Eu gostava mesmo era do Redondo. Dava para fazer corrida de nado. Tinha prova de mergulho, para ver quem ficava mais tempo afundado. Até campeonato de ponta-cabeça fizemos, para ver quem é que saltava mais longe.

No primeiro verão, todo mundo nadava. O Magro, o Negãozinho e eu. O Negãozinho era dose. Gostava de afogar os menores. Pegava pela nuca e empurrava para o fundo. Ele se prevalecia porque tinha muita força. O Negãozinho roubava na corrida. Puxava os outros pelo pé. Nadava mal, chegava atrasado e tinha a cara de pau de dizer que tinha ganhado. Todo mundo se arrolhava para ele, menos o Magro. Que era um peixe nadando.

 – Tu pode dizer o que tu quisé, Negãozinho, mas eu te ganhei – dizia o Magro. – E nadando de camisa!

Ah, tinha isso também: o Magro não tirava a camisa nem para nadar, nunca. Dizia que tinha uma queimadura no peito que era uma coisa feia de se olhar. Nadava com camisa de botão por cima e com camiseta por baixo.

Depois de perder uma carreira de nado para o Magro, o Negãozinho ficava buzina e ia embora, pateando. Ele podia, se quisesse, dar uma tunda no Magro, mas nunca saiu no pau.

Por que isso? Eu lhe digo: o Magro era o mais esperto de todos. Era um piá estranho. Falava pouco. Acho que era por causa da voz dele, que era fina, meio fanhosa. Não fazia questão de mandar, mas a gente obedecia tudo que ele mandava. No futebol, ele dividia os times. E nunca deixava ninguém brigar. Se um se esquentava, ele mandava baixar a bola. O Magro jogava no golo. Era corajoso, se metia nos pés dos outros. Uma vez levou um baita bolaço no peito e caiu desmaiado. Na caça, ele era o melhor de pontaria. Mas não deixava ninguém matar só de maldade.

– A gente só mata o que vai comer – ele dizia.

O Negãozinho ficava fulo, chiava, mas acabava se michando.

O Magro tinha uns tiques de nervoso. Se sacudia assim: girava a cabeça bem ligeiro e depois dava um coice para o lado.

Um dia, a gente estava só os dois, e eu perguntei o porquê daqueles tirões com o pescoço e o pataço. O Magro me olhou, pensou um pouco e disse:

– É a minha alma que quer se livrar do meu corpo.

Fiquei arrepiado, me benzi e tudo.

Um carroceiro, que também tinha vindo da campanha, disse uma vez no boteco da vila que a mãe do Magro tinha aparecido enforcada num galho de umbu.

Então, eu achava que os tiques dele eram de recalque.

No segundo verão, o Magro não foi mais nadar. Ficava em casa ouvindo radinho de pilha. Parou de brincar com a gente e, aí, a coisa complicou. O Negãozinho ficou de chefe. Eu era dos menores e tinha que obedecer. Um dia inauguraram o supermercado e o Negãozinho me mandou roubar cinco rolos de cordão para a pandorga dele. Roubei me borrando de medo, mas roubei. Então a gente começou a ir em bando para o centro da cidade e os guris do colégio dos padres trocavam de calçada quando viam a gente.

Uma vez, anoitecendo, uns brigadas nos cercaram quando a gente vinha voltando pelo canalete. E, sem conversa, baixaram a borracha no nosso lombo. O Negãozinho foi o que tomou mais pau, mas não chorou. Um brigadiano disse:

– Fiquem naquela vila de merda e não saiam de lá! Se aparecerem de novo por aqui, vai ter para vocês, maloqueiros!

O tempo foi passando.

Eu só sei que um dia os guris mais velhos estavam todos loucos pela Marianita. Foi de repente. Era feiosa, mas, de uma hora para outra, botou corpo. Um corpaço. Ajeitou o cabelo numa trança, comprou sapato de salto e começou a se pintar.

Sempre fui um piá observador. Era menor que os outros, ainda nem dava bola para gurias, mas notei que o Magro foi o que mais se engraçou para o lado da Marianita. Ele ia até o fim da vila, passava na frente do barraco dela e voltava. Era um passeio sem fundamento porque não tinha nada para ver lá. Se entrava no banhado, e só entrava sozinho, o Magro sempre voltava trazendo uma coisa que dava um jeito de deixar com a Marianita. Era flor, era plantinha, era passarinho: cardeais e canários da terra. Uma vez pegou um ninho inteiro com filhotes de caturrita.

Depois, começaram a conversar na porta do barraco dela. A Marianita toda arrumadinha de saia curta. O Magro sempre ficava de cabeça baixa, meio que rindo sem jeito, cavando o chão com a ponta do chinelo.

A mãe da Marianita era uma polaca que trabalhava de faxineira na Santa Casa. Tinha também três guris. Dizem que cada um era de um pai. A Marianita, apesar de clarinha, era filha de negro, aposto. Tinha as feições. Os três menores eram um ruço, um meio índio e um alemão melado.

Dizem que a mãe dela tinha descido do Morro Redondo ou do Monte Bonito para se virar na Tiradentes. Um dia, não se sabe como, arranjou o emprego de faxina e deixou a vida. Depois, ela e a filharada foram dar com os costados na vila.

Mas aí tem um detalhe que eu ia me esquecendo. Um dia a prefeitura cercou a favela com arame farpado. Não podia levantar mais barraco nenhum. Os empregados vieram numa camionete com alto-falante. Botaram as pessoas em fila e fizeram um levantamento. Disseram que iam regular a nossa situação. O meu pai até ficou meio desconfiando, mas acabou enchendo uma ficha para eles.

Tempo vai, tempo vem, a gente via uns sujeitos descendo pela nossa rua com umas fitas métricas compridonas e uns aparelhos de mirar. Começou a falaçada. Que iam nos jogar no banhado. As pessoas discutiam. Meu pai dizia:

– Por mim, está tudo bem. Podem me botar até nos quintos, mas tem que ser de papel passado em cartório.

Um dia, armaram um palanque na entrada da vila. A gente se chegou. Disseram que ia ter bandinha da Brigada, foguetório, churrasco, guaraná e até uns drinques. Depois apareceu um caminhão. Dele desceu o prefeito, que era um gordo, baixinho, de óculos. Ele foi para o palanque e começou o nhenhenhém. O bicho falava complicado, mas o caso era que iam mesmo nos dar uns lotes demarcados.

Foi durante a fala do prefeito que o Negãozinho se enfiou pela traseira do caminhão da prefeitura. Pegou só duas garrafas da cachaça, para os funcionários não desconfiarem muito, e se mandou banhado adentro. Fomos dois guris atrás dele: eu e o Perninha, um que era rengo.

O Negãozinho deu uma garrafa para nós e ficou com a outra para ele. Bebia e se gabava, dizendo que era homem e tal, que não ficava borracho nunca. O Perninha não falava nada, só bebia e careteava. Eu me fiz de sonso e não tomei quase. Aquilo me queimava as tripas.

Lá pelas tantas o Perninha se foi embora, mais manco que nunca, meio que se vomitando. Em seguida caiu a noite. O Negãozinho tinha tomado mais da metade e continuava se balaqueando. Eu nem escutava direito o que ele dizia.

Eu olhei para a vila e vi que as pessoas estavam acendendo as velas e os lampiões. Se acabou a festa, pensei.

– Vambora, Negãozinho – eu disse. – A mãe deve de tá me procurando.

– Eu vou é destampar a Marianita – disse ele e meteu o dedo no meu peito. – E tu vai olhá.

Senti que a coisa estava ficando feia, mas não falei nada. No fundo, eu queria ver como ele ia…

A senhora me entende?

Eu era gurizinho novo, só sabia daquilo de ouvir falar.

Além do mais, eu não tinha coragem de contrariar o Negãozinho. Ele era meu amigo. Não deixava os maiores me pegarem no futebol. Mas eu também gostava de ver o jeito como ele olhava para os brigadianos, assim de cima.

– Vem comigo, piá – disse o Negãozinho. – Mas fica meio de longe. Não te mete. Eu vou trazer ela para cá. Depois, ela se lava aí no Redondo.

Fomos. Era noite de lua cheia. Lembro de tudo, tintim por tintim. Lembro até do barulho dos bichos do banhado: era muito nhé de sapo e muito ruuu de coruja.

O Negãozinho bateu na porta do barraco. Quando a mãe da Marianita abriu a porta, de vela na mão, o Negãozinho mandou um soco nos queixos da mulher. Entrou no barraco, pegou a Marianita assim, na gravata, e se veio. Um dos guris correu de atrás, o menorzinho. O Negãozinho deu-lhe um pontapé que o coitadinho levantou no ar e depois caiu deitado.

Meio correndo e trazendo a guria de arrasto, o Negãozinho passou pelo matinho e se foi até o Redondo. Eu fiquei por trás, meio escondido num pé de araçá, só bombeando. Ele jogou a Marianita no capim e ela não gritou nem nada. Se levantou, fez que ia ajeitar o vestido, mas voou no pescoço do Negãozinho e cravou as unhas nele. O Negãozinho urrou de dor e derrubou ela com uma rapada. Depois se jogou em cima, metendo a perna no meio das pernas dela. Os dois rosnavam como animais. Ela quebrava a corpo e ele forcejava em cima. Não tenho vergonha de confessar: era uma coisa bonita de se ver, embora fosse maldade.

Olha, vou dizer uma coisa – que Deus me perdoe, se eu estiver mentindo. Eu estava de olho bem aberto, vendo tudo. De repente, o Diabo me roncou nas tripas: achei que a Marianita estava gostando. Foi quando os corcoveios diminuíram e ela aceitou a boca dele.

Mas, bah, aquilo não durou um segundo.

Eu só vi um vulto branco – parecia uma assombração! – passar pela frente dos meus olhos. Um vulto que fez uns movimentos rápidos e aí eu escutei um grito. Um grito de dor.

Demorei a entender.

Era o seguinte: o vulto era o Magro. E ele tinha feito, de canivete, um xis nas costas do Negãozinho.

O Magro estava de calça branca e de camisa branca, bem como eu tinha visto ele no discurso do prefeito, no gargarejo do palanque, ao lado da Marianita.

– O que tu me fez, seu filho da puta? – perguntou o Negãozinho.

– Só te marquei na paleta – disse o Magro, naquela voz esganiçada.

– Eu vou te matar – disse o Negãozinho, e se levantou.

Então eles começaram a caminhar de lado, como que se toureando.

A lua brilhava no canivete do Magro.

A cada volta o Negãozinho se aproximava mais. Estava meio encolhido, como gato pronto para atacar um rato.

Então, com a mão esquerda o Magro começou a desabotoar a camisa. E perguntou:

– Tu gosta mesmo de mulher, Negãozinho?

Negãozinho não respondeu.

Aí, o Magro deu um jeito de corpo e se livrou da camisa. A lua batia bem nele. Ele estava com uma faixa de pano enrolada no peito.

Negãozinho parou de andar.

O Magro deu um puxão e a faixa se foi ao chão. Duas tetas saltaram no peito dele. Duas tetas de mulher.

O Negãozinho recuou um passo e ficou duro. O Magro abriu a cinta e deu um giro de bambolê na cintura, assim. E a calça dele caiu. O Negãozinho já tinha até abaixado os braços. O Magro meio que se agachou, arrastando a cueca com o dedão. Credo, que coisa! Ele deu um passo em frente, nu, e eu vi um corpo inteiro de mulher.

– Se tu gosta mesmo, hoje tu vai ter que comer duas.

Eu já nem respirava. O banhado estava em silêncio, como que estuporado pelo que estava se dando ali.

O Negãozinho estava de costas para mim, parado. Dava para ver a sangueira na camisa dele.

Então aquela mulher que tinha saído de dentro das roupas do Magro se encaminhou até onde estava a Marianita e deu a mão para ela. Sempre de canivete levantado, sem tirar os olhos do Negãozinho.

A Marianita, que estava assistindo aquilo sentada, se levantou. A primeira coisa que fez foi ajeitar o cabelo. Depois recolheu do chão as roupas do Magro.

Então as duas se foram, uma vestida, outra pelada, de mãos dadas, em direção ao casario.

Eu me chispei banhado acima, na pontinha dos cascos. Dei uma volta bárbara para chegar até os barracos. Não queria que o Negãozinho soubesse que eu havia assistido aquilo tudo de camarote. Ele ia ficar com medo que eu saísse contando.

Dias depois, houve a mudança da vila. Foi feita no rapidão porque todo mundo tinha pouca coisa. O pai ganhou um lote bem bom, naquela banda de lá. Em seguida, eu arrumei emprego de mandalete na cidade e comecei a trabalhar.

Bem, para encurtar. O Magro tomou chá de sumiço naquela noite mesmo. A Marianita logo depois saiu da vila. Falavam mal dela, diziam que tinha seguido a antiga profissão da mãe.

O Negãozinho só durou mais dois anos. Morreu de balaço pelas costas. Parece que foi um brigadiano.

Lourenço Cazarré é escritor

Texto originalmente integrado no livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza

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