Correntes 

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Sílvia Quinteiro|09/03/2025

Diziam-lhe os pais que casasse com o Eduardo. Era bom rapaz, tinha um bom emprego e era óbvio que lhe andava a arrastar a asa. Era jovem, mas tinha mais tino que muitos homens feitos. Bastava ver como tinha cuidado da família quando o pai morreu. Ser homem aos 16 anos não era para todos. Único sustento da casa, cuidou da mãe e ajudou-a a criar as gémeas. Saiu-lhe do corpo, mas fez delas umas senhoras. Andaram sempre nos eixos, sem espaço para deslizes. Não havia pai, mas era uma casa de respeito.

Inês ouvia e não respondia. Ficava a pensar. O Eduardo era bem parecido, mas tinha o semblante pesado de um ancião. Um homem sério, sem dúvida. Um sorriso tímido: um gesto de ternura que guardava só para ela. Passava duas vezes por dia debaixo da sua janela: mais certo que um relógio. Olhos postos na calçada. Apenas aquela janela… A vida era simples: casa, trabalho; trabalho, casa. Tão diferente dos outros rapazes do bairro. Passos pesados, firmes, seguros, redondos na rotina de uma vida já desenhada.

A mãe insistia:

– Olha que como este não encontras por aí muitos, Inês. É uma rocha, este rapaz! – exclamava, tentando arrancar da filha uma expressão ou uma palavra que demonstrassem interesse no pretendente.

Inês, muda e queda, percebeu finalmente o que a impedia de dar troco aos sorrisos do Eduardo. Ele era um homem-rocha, mas ela não tinha a mínima intenção de se transformar numa mulher-lapa. Não se imaginava colada a ele. A carne em chaga agarrada à superfície rugosa com medo das marés.

Inês ansiava pelo mar bravio. Pela turbulência das ondas. Pela força das águas que a levariam a ver o mundo. Por correntes incompatíveis com as que o prendiam às ruas do bairro.

O Eduardo passou, como todos os dias, na rua da Inês, mas hoje não teve a quem sorrir. Uma leve brisa trazia consigo o cheiro a sal e agitava as cortinas da janela vazia.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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