O silêncio de Gouveia e Melo

Depois de presente no palco mediático quase diariamente ao longo de quatro anos, Gouveia e Melo (GM) anda recolhido este ano. GM invocou férias e também falta de liberdade. Mesmo quem não notou que andou no palco mediático desde 2021 acha que ele está em silêncio, só interrompido por um artigo no Expresso e uma fugaz aparição com um banal e inócuo comentário sobre estabilidade política. Este silêncio parece artificial; será uma tática para o protocandidato a Presidente da Republica (PR) evitar ser questionado. Mas pode ser mais do que tática. Dadas as exibidas vaidade e necessidade de vedetismo e aplauso será um silêncio que lhe custará aguentar.
Poucos dias após deixar o comando da Armada, revelaram-se nos media alguns apoiantes. Primeiro, foram dois destacados maçons, logo desautorizados, sem GM dar a cara, talvez visando mostrar-se independente da maçonaria. Seguiram-se Ângelo Correia e Isaltino Morais, que não foram desautorizados, e que merecem uma observação mais incisiva.

Esperava o apoio de Isaltino Morais, desde que GM o condecorou com a medalha de “Vasco da Gama” (por despacho, quando o decreto-lei 49052 atribui a competência a ministro e por portaria). O Correio da Manhã destacou o facto, uma e outra vez. Ninguém reagiu a este uso de recursos públicos; só o PÁGINA UM e o jornal que dá mais palco mediático há anos a GM notaram o facto – que interessa a todos os cidadãos, pois contraria a alegada probidade do protocandidato. Está muito bem escrutinar políticos; e não interessa saber como GM gastou recursos públicos, por exemplo, em condecorações? Ou em ajustes diretos?
Isaltino Morais também ganhará circunstancialmente com este apoio, pois chateará o PS e o PSD, e quiçá sobretudo Luís Marques Mendes. Como o voto é secreto, duvido que se venha a saber se Isaltino Morais concretizou no voto este apoio verbal a GM.
O apoio de Ângelo Correia pede mais atenção. Também em entrevista televisiva, pareceu ser um mentor mais do que só um apoiante. Parece que gosta de ser mentor; mas não lhe vejo sucesso. Com o estilo habitual que aparenta conhecimento e segurança sobre o que está a dizer, mas basicamente retórico, disse que distribuir vacinas foi um “ato político”, indiciando a origem da frase de GM de que “não era qualquer militar que fazia aquilo”, e parecendo revelar a ideia que sustentará a sua campanha – afinal é político… Disse que o conhece “há muitos anos”: e quer dizer o quê? Disse que a candidatura “não é contra os partidos, é para fortalecer os próprios partidos políticos”, que GM “sabe criar poderes compartilhados”, ou promover consensos: só me faz rir! Será que conhece GM além da “guerra do croquete”?

Além de revelar a vulgar superficialidade sobre a interpretação de sondagens, destaco uma frase favorita dos populistas: GM “vai apoiar-se no povo, não vai apoiar-se nas elites” – como se GM visasse uma mole de pessoas manipuláveis e sem instrução. Mas escolheu o Expresso para apresentar o seu manifesto político…
Mas o que é “o povo”? Há quem defenda “GM a presidente e Ventura a primeiro-ministro”; há quem queira votar em José Sócrates; há quem queira “algo diferente”. Todos se queixam dos “maus políticos”. Mas não percebem a superficialidade da sua conduta: é por escolherem com base na imagem e na propaganda – que exaltam a diferença – e não na conduta e na substância do passado dos candidatos, que são eleitos “maus políticos”. A superficialidade confirma-se no facto de os mesmos insistirem em não aprender com as más escolhas.
Os referidos apoiantes de GM pouco disseram de objetivo nos media, mesmo sobre vacinas. Parece que é assim que acham que chegam ao “povo”. Nenhum referiu, por exemplo, que GM foi acusado por um tribunal superior por crime praticado em serviço, ou que o Tribunal de Contas o acusou de excesso de ajustes diretos. O que nem um apoiante de GM consegue explicar é: como pode alguém com um perfil executivo e sem formação nem experiência política exercer bem o cargo menos executivo e mais político do regime? Instados a explicar, ouvem-se castelos no ar ou um ensurdecedor silêncio – acham que assim convencem mais do que as dezenas de convencidos que alimentam as sondagens? Aliás, que fariam sem estas sondagens?

No fim, Ângelo Correia falou mais de si próprio do que de GM (alguém se surpreendeu?); mostrou o que ele acha, mas não mostrou que GM é um moderado e menos ainda que é um moderador, conhecedor e cumpridor da Constituição (CRP). Como pode ser um moderador, em especial dos partidos, se busca e tem mais apoios entre quem despreza os partidos, como se vê nas redes sociais? Quiçá “mentor” e protocandidato sonham com o apoio de um ou mais dos grandes partidos. Apesar dos esforços, até para lhe darem um CV académico, Chega e CDS não dão sinal de apoiar GM; talvez percebam que é contranatura.
Acho que não foi por acaso que surgiu nos media o mito de que nada se conhece sobre o pensamento político de GM. Desde logo, Ângelo Correia contrariou esse mito, com a ideia de que distribuir vacinas foi um ato político… De facto, GM já tomou posições políticas, o que entendo que violou o dever de isenção, que vincula os militares no ativo; é só googlar e lá estão. Mas o esforço do apoiante foi demolido pelo protocandidato no artigo no Expresso, que mostrou com exuberância a falta de preparação política e as ambições despropositadas, pontos evidenciados por reputados especialistas, que o analisaram (por exemplo, António José Seguro, Henrique Monteiro, Vital Moreira, e Teresa de Melo Ribeiro).
Este mito parece ter sido plantado nos media pela agência de comunicação, informal ou formal, que guia GM, pois desvia a atenção da conduta e do passado ao longo de décadas – que revela a pessoa, que é o que importa num órgão político e unipessoal – para um cenário futuro que se pode construir, através da propaganda e da imagem. Se não houver agendas ocultas e a superficialidade mediática não prevalecer (concretizada em meia-dúzia de buscas no Google e de declarações de amigos), haverá jornalistas a escrutinar o passado de GM, com rigor e objetividade, e eleitores interessados em se informarem.

Sem querer ser exaustivo, nem ir muito atrás, é de recordar que GM recusou expressamente entrar na política, dizendo até “Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar”; e confirmou a posição um ano depois e dois anos depois. Em janeiro, recusou um jantar numa tertúlia em Alcochete, sendo citado sem desmentido com a declaração de “O meu nome não é para andar a vender bilhetes”. Porém, está marcado para março no Hotel Sheraton, um almoço do ICPT, cuja inscrição custa €52, contra os €30 da tertúlia. Então GM vai-se apoiar no povo e não nas elites… Mais graves são as suas contradições sobre a conscrição até pelo alarme social que causaram. Estão à vista a integridade e a preparação política de GM…
GM disse que era “impiedoso com os malandros”, revelando-se polícia, acusador e juiz num só. Creio que custará a Ângelo Correia ensinar a GM o que é “autoridade democrática”; que um democrata é tolerante à crítica; ou que usar os tribunais para perseguir quem diverge dele torna improvável que GM cumpra a CRP e o juramento presidencial. Aliás, a atitude autoritária, que evidenciou ao longo de 45 anos de vida militar, de não tolerar quem dele discorda aumenta o medo que Ângelo Correia diz hoje existir na sociedade portuguesa, medo que mata a democracia. E apoia quem alimenta tal medo, que mata a democracia…
E estará aqui a explicação do silêncio de GM: um mentor e um especialista de imagem têm de ensinar GM a “mudar de farda”; isto é, têm de ensinar-lhe muitas frases bem-sonantes, e técnicas de propaganda para afastar aquilo que eram “medalhas” do passado e que agora lhe dará jeito esquecer, para agarrar “o povo”. Pelo manifesto no Expresso, tem muito para aprender… Há quem diga que se ensina a CRP numa semana… já para debater com António Vitorino, nem Ângelo Correia mostrou estar convencido de poder correr bem a GM…

Uma das lições aprendidas com o mandato do atual PR, e que alguém ensinará a GM, é que o modelo de inconstitucionalidade de normas, estabelecido na nossa Constituição, confere ao PR um amplo espaço de atuação, no qual ele até pode violar o espírito, senão até em alguns casos a letra, da CRP, com impunidade. Penso que isso vai GM aprender depressa.
Como previ, GM é só a carranca da barca. Já se sabe quem lhe “leciona” a “Introdução à Política”. Falta saber quem o está a ensinar propaganda política e a fazer podcasts. E falta saber o que vão inventar para persuadir a maioria dos eleitores de que GM é moderado e vai ser o moderador a que a Constituição, e bem, vincula o Presidente da República.
Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.