Assim, estamos assados…

A ignorância é um verme insidioso que corrói a cultura de um povo com maior avidez do que os vermes das carnes – asseguro-vos eu, que, desde que me tornei um defunto autor, passei a conhecer intimamente ambos os espécimes. Porém, ao contrário dos vermes das carnes, que, chegando ao osso, se dão por satisfeitos e cessam a ceia, a ignorância alastra sem pudor nem limites: penetra o tutano, envenena o espírito e, não raro, apodera-se da alma inteira. E o mais espantoso – ou trágico, se assim preferirdes – é que, enquanto os vermes comuns anunciam o seu labor com fétido odor, a ignorância exala, aos olhos do mundo, um perfume de virtude e sapiência.
Deste meu cómodo além-túmulo, livre das peias terrenas e sem o incómodo das paixões humanas (que, confesso, em vida tanto me distraíam), observo as cenas de ignorância com a lente da ironia e um travo de melancolia… por não poder aplaudir com as mãos, nem assobiar com os lábios. Em todo o caso, nenhum espectáculo humano me diverte, espanta e desconcerta tanto quanto a ufana exibição da ignorância, essa senhora loquaz, presunçosa e impudente, que desfila pelas praças e academias com ar de douta erudição, quando não passa de uma criatura mal letrada, rotunda e cega.

Vivemos – eu, defunto, ainda me incluo por nostalgia e vício – numa era em que a confiança ruidosa suplanta o saber silencioso; em que muitos bradam opiniões quais estandartes tremulando ao vento, sem reparar que, às vezes, empunham bandeiras ao contrário… ou, pior ainda, empunham trapos sem cor. Que saudades do velho Sócrates, o grego, que ao menos sabia que nada sabia – ao passo que hoje tantos nada sabem, e julgam, com peito inchado e voz tonitruante, saber tudo. Mas que quereis? A ignorância, quando adornada com lauréis de vaidade, faz mais estragos do que uma peste e mata mais do que uma guerra.
Lembro-me dos meus tempos do Império: discutia-se política nos cafés, conspirava-se nos bailes, e um sujeito precisava de fingir erudição até para opinar sobre latim ou francês. Hoje, na res publica digital, todos têm voz – o que seria uma beleza, não fosse o efeito colateral de amplificar tolices. Outrora, poetas e estadistas debatiam ideias; agora, influencers e celebridades, em redes sociais e podcasts, arvoram-se em catedráticos sobre aquilo que mal conhecem. Não condeno a democratização – também prefiro a praça viva e ruidosa à aristocracia mofada – mas arrisco o comentário: amiúde se troca a tirania dos doutos pela república dos ignorantes, e não sei qual das duas é mais risível.
Uma conferência sobre a língua portuguesa, no trigésimo quinto aniversário do jornal Público, ilustra a desventura. Em palco, prolongando podcast “Assim ou Assado”, que me dizem ser deveras popular, logo reencarnado na forma de simpósio performático, surgiram duas ilustres personagens: um músico popular, Sam The Kid – cujo nome artístico inglês já anuncia a nova informalidade campeando na língua de Camões – e um professor universitário, o doutor Marco Neves, presumível guardião do vernáculo lusitano da douta Universidade Nova de Lisboa. A plateia, julgo, esperaria uma conversa instrutiva e divertida, em louvor da língua de Camões e do meu Machado.

Mas qual o quê! Nada. Nanja. Em vez de iluminação, veio a treva cómica em redor da expressão “passou-bem”. Ora, “passou-bem” – que deliciosa velharia! Para todos, desde as velhas tias, menos para o bom do Sam The Kid, “um curioso da língua portuguesa”, que, com a confiança dos incultos, afirmou ser a expressão “não muito vista na escrita”. E assim, como para ele “é mais da oralidade”, sentiu-se com a desavergonhada liberdade defender o uso de “possou-bem“. Tudo isto em pleno auditório, enquanto o seu interlocutor, talvez por diplomacia, não o corrigiu – e, ademais, até aditou que, em tempos pensava que “papo seco” se dizia “pape-seco”.
Como anda a língua lusitana a levar sopapos nestas eras de mediatismo! Confesso que naquele momento experimentei um misto de riso e desalento. Riso pela cena – digna de um folhetim satírico, com o rapper a disparatar e o lente a anuir timidamente –; desalento porque, se até os supostos guardiões (ou guardiães) do idioma vacilam, que será dos demais? E daqui do lado, Quincas Borba gritou-me: “Ao vencedor, as batatas! E aos ignorantes, as cascas!”
Mas vejamos: o que mais me custa nem são as alarvidades do Sam The Kid, certamente um bom rapaz, apesar da idade para ter juízo, mas a fleuma do douto lente, que tinha obrigação, com doçura e firmeza, de mostrar à plateia que o “passou-bem” é expressão comezinha, que surgiu da cortesia, daquela civilidade que hoje reputam de opressiva, mas que fazia os homens polir os sapatos e aprender latim. O “passar bem” de antanho é o fare well dos ingleses, o passez bien dos franceses, o pase bien dos castelhanos.

Contudo, por um destes caprichos da língua da terrinha, evoluiu para “passou-bem”, substantivo gracioso e distinto que, em Portugal, passou – e bem! – a designar o acto formal de cumprimentar apertando as mãos. Assim, nada se precisa de dizer, porque o gesto assim o faz, embora denote elegância, no momento do aperto, um “passou bem” vocal – tal como se pode afirmar “passe bem”, quando se cumprimenta na despedida.
Ou seja, o verbo conjugado no pretérito, “passou”, junto ao advérbio “bem”, criaram o nome do gesto. E note-se: com hífen, que isto não é feira de retalhos gramaticais. O lente Marco Neves não sabe? Ou teve vergonha de desbroncar o neófito rapsódico? Que estoiro! Temos um rapper como linguista e especialista em etimologia que, perante a sua própria ignorância – ou, para dizer com mais galhardia, perante o seu vazio filológico adornado de confiança tonitruante – decreta que o “passou-bem” passe a “possou-bem”. E isto numa expressão usada, e bem usada, desde os salões do século XVIII até aos cafés do século XX.
Camilo, que conhecia tanto a etiqueta quanto a desgraça, não se furtou a enfiar um “passou bem” no diálogo entre fidalgos e criadas. O meu Machado de Assis não deixou por menos. Por exemplo, em Esaú e Jacó, onde se lamentou a ausência deste ritual no final de uma visita de cerimónia. Sempre atento à pose da burguesia lisboeta, nem sei a razão para Eça não ter posto Carlos Eduardo a saudar Ega com um “passou bem?”, seguido de um aperto de mão digno de um contrato assinado no Grémio Literário. Mas isso são tempos idos – e livros não lidos por Sam The Kid. E, às tantas, também por Marco Neves.

Isso pouco importa. Agora, nos auditórios de celebrações públicas, a língua portuguesa é tratada como um instrumento de percussão barata: golpeiam-na até produzir som, sem se importunarem se o timbre é desafinado ou se o compasso anda errático. Sam The Kid, coitado, ignorava que “passou-bem” se escreve com hífen e que o advérbio “bem” não admite plural. Disse “possou-bem”, como quem manda no verbo e o conjuga a bel-prazer. E Marco Neves, o gramático de ocasião, manteve-se silente, quiçá com receio de parecer pedante ou antiquado.
Ai de vós, viventes, que temeis corrigir um erro, que tal é visto como afronta pessoal, preferindo assim que a ignorância seja promovida a virtude cidadã! O bom doutor, em vez de assumir o papel de mestre de cerimónias, preferiu a complacência do silêncio. Era como se viesse um maestro, testemunhando a orquestra a tocar em fá sustenido quando a partitura exige dó menor, e ao invés de erguer a batuta e emendar a nota, acenasse com um sorriso indulgente, como quem diz: “Cada um toca o que quer.”
Mas não vos enganeis: a etimologia de “passou-bem” não é matéria esotérica reservada aos iniciados. É coisa de ler num dicionário, como o Priberam, onde consta o vocábulo e se explica que se trata de um cumprimento formal, sinónimo de aperto de mão. É certo que o vosso cronista de saudades e idiossincrasias lusas, Miguel Esteves Cardoso, já lamentou que o “passou-bem” estivesse em desuso, comparando-o a um aperto de mão dos nossos avós – mas uma coisa é o desuso; outra, bem diversa, é a ignorância.

Confesso que, da próxima vez que Sam The Kid disser mais disparates sem ser corrigido por Marco Neves, vou soprar-lhes ao ouvido, como fazia Virgílio a Dante: “Filhos, estudai! Abri um romance do Camilo, uma crónica do Trindade Coelho, lede os diálogos do Machado – e não apenas as rimas e os riffs do vosso cancioneiro digital!”
Não deverá dar grandes resultados, porque agora a confiança ignara se pavoneia em auditórios e podcasts, e a erudição verdadeira se recolhe à sombra, talvez enfastiada de pregar a surdos. Quando o “possou-bem” triunfar sobre o “passou-bem”, só porque um rapper não lê, então a língua do zarolho Camões, o espelho da alma lusitana, estará irremediavelmente partido – e um espelho estilhaçado só reflecte fragmentos.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.