Foi você que pediu o rearmamento europeu?

A Europa, essa entidade amorfa que oscila entre a tecnocracia despótica e a incompetência institucionalizada, decidiu, uma vez mais, sacrificar o cidadão comum no altar das suas ilusões megalómanas.
Recentemente, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que ninguém elegeu para coisa alguma, anunciou, com o fervor de uma sacerdotisa do destino europeu, que a União precisa de se rearmar urgentemente.
Se o tom não é de histeria, é pelo menos de um fervor messiânico, como outrora aconteceu quando a mesma burocracia exigiu que todos fossem inoculados a uma velocidade vertiginosa com uma substância experimental, sob a ameaça de segregação social e de perda de direitos fundamentais. Agora, a urgência não é uma suposta pandemia, mas uma guerra que, como todas as tragédias europeias, tem as suas raízes na incompetência crónica dos mesmos líderes que agora nos exigem sacrifícios.

Qual é, exactamente, a natureza desse novo imperativo existencial? Ao que parece, a Europa precisa de se defender de Putin e dos russos, que, depois de décadas a vender gás aos europeus, passaram a encarnar o mal absoluto. O mesmo continente que, até há poucos anos, celebrava efusivamente contratos de fornecimento energético com a Rússia, construía gasodutos, organizava campeonatos mundiais de futebol e estreitava laços comerciais, caiu agora numa amnésia conveniente e decidiu que a única solução é a guerra.
Para essa guerra, propõe-se assaltar-nos em 800 mil milhões de euros, canalizados para o rearmamento e para os bolsos da casta não eleita em Bruxelas, sem que se levantem grandes questões sobre o impacto deste endividamento colossal. Como se a União Europeia não estivesse já atolada em problemas económicos e sociais, nem enfrentasse, em simultâneo, uma invasão silenciosa vinda do terceiro mundo, promovida e incentivada pelos mesmos que agora exigem que se levantem exércitos para travar um inimigo externo.
A ironia é grotesca: enquanto se financia o caos dentro de casa, exige-se que os cidadãos paguem uma nova cruzada bélica que não lhes diz respeito. A incongruência atinge proporções quase teatrais quando se observa o súbito desinteresse pelas normas de responsabilidade orçamental que, até há pouco tempo, eram o evangelho inquestionável da União.

Durante anos, venderam-nos a austeridade como um dogma incontornável. Cortaram na saúde, na educação, nas pensões, no investimento público, tudo para garantir que os orçamentos se mantinham alinhados com os preceitos sagrados de Bruxelas. Claro está que, para um libertário, toda esta retórica era uma falácia, um mero eufemismo para justificar a pilhagem fiscal e o desvio dos recursos da população para os bolsos de burocratas e plutocratas.
Ironicamente, nem sequer mantêm a coerência desse discurso: passaram da austeridade pregada em tom de sermão à mais descarada orgia de despesa pública, onde o dinheiro corre como água em direcção à indústria de armamento e às engrenagens do Estado belicista.
Os que, há três anos, impunham prisões domiciliárias e encerravam negócios em nome da protecção de vidas humanas, são agora os mesmos que falam com frieza burocrática sobre a necessidade de enviar jovens para a carnificina de um campo de batalha na Ucrânia.

Aqueles que nos disseram que deveríamos viver trancados em casa porque poderíamos matar os velhinhos ao transmitir-lhes o vírus invisível, são agora os que dizem que vale a pena sacrificar gerações inteiras para manter o sonho delirante de um império europeu armado até aos dentes. A dicotomia é tão absurda que não pode ser explicada sem uma referência à hipocrisia estrutural da elite política europeia, que ora se veste de humanitarismo tecnocrático, ora se assume como máquina de guerra sem escrúpulos.
Nada disto estaria completo sem um toque de ironia ecológica. Durante anos, disseram-nos que o CO2 era o grande inimigo da civilização, que era urgente transformar as nossas vidas num exercício permanente de penitência ambiental.
Fomos proibidos de usar carros a combustíveis fósseis, obrigados a comprar veículos eléctricos, sujeitos a restrições energéticas para salvar o planeta. Agora, essa mesma elite que nos impôs estas limitações vem exigir uma corrida armamentista que, por um capricho técnico, não será feita com tanques eléctricos nem com caças movidos a energia solar. Não, o exército europeu de Ursula von der Leyen continuará, sem dúvida, a operar com os mesmos combustíveis fósseis que foram interditos aos cidadãos comuns.

As preocupações ambientais evaporam-se quando se trata de mobilizar frotas de navios de guerra ou de despejar bombas sobre cidades distantes. A preservação do planeta é um fardo exclusivamente nosso, os otários de sempre, enquanto os militares, os fabricantes de armamento e a quadrilha que orquestra este teatro continuam a “poluir” impunemente.
A justificação para esta nova corrida armamentista baseia-se numa narrativa cuidadosamente construída sobre a suposta ameaça russa. Aqui, surge outro detalhe que mereceria um prémio de cinismo: durante décadas, os líderes europeus não só negociaram alegremente com Putin como fizeram da Europa um refém energético da Rússia. Foram eles que financiaram os gasodutos, que construíram infraestruturas para garantir o fluxo de gás barato, que promoveram acordos comerciais estratégicos com Moscovo.
Agora, esses mesmos líderes afirmam estar surpreendidos com as acções do Kremlin, como se nada do que aconteceu nos últimos anos tivesse sido previsível. A guerra, longe de ser uma fatalidade inevitável, foi alimentada por anos de irresponsabilidade geopolítica e arrogância ocidental. A solução proposta é a escalada, em vez da negociação. O diálogo, que noutros tempos era considerado um pilar da diplomacia europeia, foi descartado em favor de uma retórica belicista que só beneficia as indústrias que lucram com a destruição.

/ Foto: D.R.
O que nos resta então? A factura será paga por todos aqueles que, à semelhança do que aconteceu durante a putativa pandemia, acreditam que os sacrifícios impostos pelos governantes são sempre necessários e justificados. O cidadão comum, que já viu o seu poder de compra dizimado pela inflação, que já enfrenta um custo de vida insustentável, terá agora de suportar uma nova onda de inflação – tudo será pago com a impressora do Banco Central Europeu (BCE) –, impostos e de perda de liberdade em nome da segurança colectiva.
Tal como aconteceu durante a suposta crise sanitária, qualquer resistência será tratada com desprezo e hostilidade. Os que questionaram a narrativa da pandemia foram apelidados de negacionistas, perigosos para a sociedade. Agora, os que se opõem à escalada militarista serão inevitavelmente rotulados como agentes do Kremlin, putinistas, traidores da democracia, alvos a abater no grande jogo da propaganda política.
O ciclo repete-se com um cinismo avassalador. O mesmo cidadão europeu que aceitou ser coagido a receber injecções experimentais, que aceitou ser trancado em casa e impedido de trabalhar, que aceitou a destruição da economia em nome da protecção da saúde pública, aceitará agora mais esta impostura.

Aceitará pagar a factura da guerra, aceitará a militarização da sociedade, aceitará ser um peão descartável num jogo de poder que não compreende e que em nada o beneficia. Tudo porque, no final, continua a acreditar nas mesmas elites e na sua propaganda que o desprezam e que, sem qualquer vergonha, conduzem o continente à ruína enquanto garantem para si próprios um futuro confortável entre os corredores de Bruxelas e os conselhos de administração das empresas de armamento.
Bem-vindos à nova normalidade. O circo prossegue, os holofotes brilham, a música toca. Como sempre, os palhaços somos nós.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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