O Tesla do Manzarra e a Virtude

Nunca me queixei, como bem sabeis, de ter morrido sem filhos; antes, considerei mérito não legar a ninguém as misérias do mundo. Mas creio que me queixaria, e com razão, se o destino, com a minha morte, me houvesse privado do singular prazer de assistir ao triunfo supremo da hipocrisia sobre a virtude — espectáculo tão notável que ouso chamá-lo de verdadeira Escola da Conveniência. Sim, a conveniência: essa divindade moderna que veste a virtude segundo a estação do ano, como um chapéu novo ou um slogan reciclado de uma campanha esquecida.
Na verdade, para a virtude e a ética já não se exige nem sacrifício nem vergonha, se é que alguma vez tais predicados lhes assistiram. Basta, para os tempos que correm, manter o tom adequado de indignação e escolher o filtro de luz apropriado para a fotografia. Nada mais cómodo do que parecer justo sem o incómodo de sê-lo.

Em tempos remotos, a Virtude — coloquemos maiúscula para lhe emprestar a dignidade que outrora lhe atribuíram — era senhora vestida de burel, ar severo e sandálias rotas, como as do velho Diógenes, que calcorreava as ruas com um candeeiro aceso em pleno dia à procura de um homem honesto, encontrando, no máximo, um vendedor de ilusões. Os homens, vendo-a descalça, davam-lhe esmolas de aplauso ou de desprezo, pois não lhes convinha seguir-lhe os passos, que eram ásperos e cheios de calhaus. Mas havia quem nela cresse, como quem crê nas assombrações: sem ver, mas temendo.
Vieram depois os romanos, que tomaram a Virtude pela força bruta e lhe deram o nome de Virtus, com pose de couraça e gládio de fio curto — porque, diziam eles, não havia moral mais elevada do que reduzir Cartago a cinzas, ainda que fosse preciso obrigar Aníbal a jantar lagosta em Roma, de sorriso nos lábios e um punhal cravado no rim. Desde então, a Virtude passou a comandar legiões e a pregar bons costumes à ponta da espada, como um cobrador de impostos que ensina ética ao devedor enquanto lhe confisca o último par de sandálias e dá graças aos deuses pelo dever cumprido.
Na Idade Média, a Virtude transformou-se em frade gordo e complacente, e trancou-se no claustro, rezando ladainhas e distribuindo indulgências ao peso, como se fosse carne seca vendida na feira. Foi tempo em que a Ética se pesava em maravedis, e um pecador diligente ganhava o Céu à força de missas pagas, bandeiras hasteadas e procissões bem remuneradas, de preferência com damas de boas posses e maus maridos. A Virtude, neste caso, vestia-se de cilício por cima de um gibão de veludo, mais para impressionar do que para redimir.

No Renascimento, pintou-se a Virtude com tintas florentinas, e estudava latim e grego, escrevia tratados sobre a dignidade do Homem, enquanto encomendava envenenamentos discretos no boticário da esquina. Era sábia, a moça, e sabia manter a pose de Apolo mesmo quando contratava um Bruto para se livrar de um rival.
Por sua vez, o Iluminismo, sempre convencido da sua luz, vestiu-lhe uma máscara de cera, igual à das óperas de Paris, e ali andava ela: à sua sombra discutia-se a liberdade dos povos com um escravo a segurar o tinteiro e a soprar o chá. E a sua companheira, a Ética, tornou-se coisa de mesa de botequim e de cadeira de salão, onde perucas falavam de fraternidade enquanto contavam o lucro do tráfico negreiro.
Passemos, sem mais melancolia, de coche e trem pelos meus tempos, e aceleremos — agora sim — em quatro rodas, sem carta de moralidade nem inspecção em dia, até aos dias hodiernos. E eis que aqui me detenho, não sem um certo assombro, ao contemplar a Virtude — outrora de rosto austero e olhar elevado — agora reduzida a vendedora de feira franca, de avental singelo e banca improvisada, mercadejando-se ao preço que dita a ocasião. Cada qual aliena a sua Virtude com ligeireza e logo a recompra, debitando pontos de fidelidade, exibindo certificados de pureza verde e colhendo um aplauso digital que dura o breve instante de um story… ou até que a rede o permita.

Foi neste cenário, tão próprio do vosso século apressado, que me chegou, através de uma tertúlia de espectros ociosos e bem informados, a notícia de um vivo chamado João Manzarra — desses que, em vida, sorriem com mais denodo do que filosofam com gravidade — o qual decidiu abdicar do seu automóvel, não por falta de conforto, mas por excesso de escrúpulo moral. Tratava-se de um Tesla Model Y Long Range — não um simples veículo, mas antes um altar rodante da consciência ecológica.
Confessou o virtuoso Manzarra que já não podia suportar a presença invisível de Elon Musk, industrial de reputação duvidosa e amicíssimo do satânico Trump, sentando-se-lhe como um espectro no banco traseiro e sussurrando-lhe impropérios ideológicos ao ouvido. Assim, resolveu desfazer-se do artefacto por trinta e sete mil e quinhentos euros e, em gesto que se quis magnânimo, prometeu doar dez por cento à Sunrise Movement, seita moderna consagrada à salvação do planeta — empresa que, ao que parece, se conduz à custa de slogans biodegradáveis, tendas em festivais e chapéus de palha com certificação ética.
Não me espanta. A Virtude do homem contemporâneo circula sobre quatro rodas, desde que com etiqueta eco e painel solar no tejadilho. O automóvel não é já um transporte; antes, um púlpito a pregar à boa consciência. E foi precisamente no volante — ou melhor, na venda — que Manzarra encontrou redenção: libertou-se do peso simbólico do Tesla, renegando Musk e desfazendo-se de um pecado de estimação com o plantio de uma árvore imaginária no bosque virtual da boa reputação.

Concedamos, pois, que um Tesla possa ser tido como objecto de desconforto ético — tão imaculado em superfície, tão carregado de culpa nas suas entranhas. Mas se, como afirmava Manzarra, ou Santo Agostinho, “não há verdadeira justiça senão na cidade de Deus”, que juízo caberá aos restantes veículos que sulcam, em passo apressado ou eléctrico, as estradas tortuosas desta civitas terrena, onde reina mais a concupiscência do que a razão? Perguntar-me-eis se há pureza possível nas obras dos homens, e respondo com Pascal: “Quem se exalta será humilhado.” Moveu-me, pois, aquela curiosidade inquieta, própria de quem suspeita da Virtude alheia exibida em praça pública, e dei por mim a folhear o almanaque das genealogias automóveis — uma verdadeira crónica das duas cidades, onde o engenho humano e a soberba competem pela primazia.
A Volkswagen, mãe do pequeno Carocha, foi criada sob a égide de Adolf Hitler. O “carro do povo” destinava-se à mobilidade das arianas massas, e as suas fábricas empregaram prisioneiros de campos de concentração. A BMW, essa que hoje brilha nos semáforos das avenidas, forneceu motores para a Luftwaffe e cresceu na desgraça alheia. A Mercedes-Benz, que transporta banqueiros e ministros, engordou com contratos militares que sustentaram a Wehrmacht e os seus camiões de sombra sinistra.
E o que dizer da Audi, esse estandarte de status moderno, que poucos sabem ter sido um dos pilares do esforço de guerra nazi? A Auto Union, predecessora directa da Audi, colaborou activamente com o regime nacional-socialista, beneficiou do uso de trabalho escravo e forneceu veículos e tecnologia para a maquinaria militar de Hitler. Bem sei que, depois da guerra, se apagaram registos, como quem queima arquivos comprometedores, mas a História, minhas esbeltas donzelas e galantes cavalheiros, não se desfaz com polimentos de capot.

Viajemos para Itália. Ah, Itália! Pátria de poetas, de santos e navegadores — e, porque não dizê-lo, de industriais de mão firme e consciência maleável. A Fiat, império erguido por Giovanni Agnelli, floresceu à sombra de Mussolini, vendendo tanques, aviões e camiões à máquina de guerra fascista com a mesma elegância com que vendia automóveis aos burgueses de Turim. O velho Agnelli, homem de gravata impecável e dedos cobertos de pólvora e dividendos, entendeu cedo que as rodas do poder giram melhor se lubrificadas pelo óleo da conveniência.
Mas não esteve sozinho no festim bélico. A Alfa Romeo, orgulho da engenharia italiana, foi propriedade do Estado fascista e converteu as suas linhas de montagem na forja de motores de aviões, carros de combate e outros prodígios mecânicos que serviram a causa imperial de Mussolini. Dizia-se que as suas máquinas rugiam com o fervor de uma legião romana, levando o made in Italy às planícies de África e aos céus da guerra europeia.
E não vos esqueçais da Lancia. Tão discreta nas crónicas do poder quanto eficaz no fabrico de veículos militares, esta casa de Turim forneceu camiões e blindados ao exército italiano, garantindo que as tropas de Il Duce marchassem com logística de primeira classe. Se os soldados por vezes fraquejavam, estas máquinas sempre se mostraram fiéis — dizia-se que os motores Lancia aguentavam o calor africano melhor do que os próprios legionários.

E na bela França? Ah, França! Onde os salões sempre exalaram perfume de jasmim, mesmo quando as fábricas cheiravam a pólvora. Na terra de filósofos e chansonniers, ergueu-se, volumoso e imponente, Louis Renault — o temido ogre de Billancourt, que fundou um império sobre chassis e cilindros, transformando o seu nome num sinónimo de mobilidade e de modernidade. Mas a modernidade, como a Virtude, tem muitas faces, e Louis Renault escolheu a que melhor pagava no tempo da ocupação alemã. Na Segunda Guerra Mundial, as fábricas da Renault, em Billancourt, produziram com zelo camiões para a Wehrmacht, motores para a maquinaria militar nazi e peças sobressalentes para blindados que percorriam as estradas da França humilhada.
Mas Renault não caminhou só por essa vereda. Também a Peugeot, herdeira dos velhos artesãos do Doubs, colaborou com o ocupante, produzindo veículos e componentes para o esforço de guerra nazi, embora com mais pudor e menos publicidade. E a Citroën, que hoje se exibe como campeã da inovação, não escapou a essa servidão industrial, ainda que se conte, talvez mais por consolo do que por verdade, que Pierre-Jules Boulanger terá saboteado discretamente os produtos entregues ao inimigo. Menos mal. Verdade ou mito, o resultado foi o mesmo: as fábricas laboraram, os motores rodaram, e os camiões seguiram o seu caminho — sempre carregados.
E no Japão? A Mitsubishi produziu aviões de guerra, incluindo o famoso caça Zero, símbolo do ataque a Pearl Harbor. E a Toyota, antes de ser sinónimo de híbridos e economia de combustível, fabricou camiões para o exército imperial japonês, contribuindo para o esforço de um regime que ocupou, pilhou e massacrou na Ásia Oriental com a meticulosidade de um engenheiro de precisão.

Deixemos a Guerra. Nos Estados Unidos, os Cadillac, os Lincoln e os Buick foram os tronos motorizados de Al Capone e Bugsy Siegel. Nenhum mafioso de respeito dispensava um carro blindado, com bancos em pele de primeira e espaço de sobra para malas de dinheiro ou cadáveres. O Cadillac de Al Capone, como a ironia manda, acabou por servir Roosevelt, que combateu o gangsterismo ao volante de um automóvel que cheirava a pólvora e whisky de contrabando.
E eis que agora chegam os chineses, com as suas novas carruagens eléctricas, imaculadas e reluzentes como se saídas de um templo taoísta, mas com uma pegada tão pesada quanto os exércitos de Qin Shi Huang. A BYD, a Geely, a Changan e a Great Wall Motors soam a promessas de futuro verde, mas em condições de trabalho que fariam corar de vergonha o velho Dickens. Há relatos abundantes de jornadas extenuantes, salários miseráveis, ausência de direitos laborais, e não vos esqueçais, claro, da cumplicidade com sistemas de vigilância social e repressão de minorias — um luxo que nenhum veículo chinês dispensa. Os automóveis chegam ao Ocidente com autonomia invejável, mas à custa da liberdade de quem os monta.
Pergunto-te, pois, Manzarra: que automóvel sobra no teu parque de estacionamento da Virtude? Talvez um carrinho de pedais, montado por monges veganos numa aldeia autossustentável do Tibete, sem parafusos que escravizem. E, ainda assim, convém saber se o bambu foi colhido de modo responsável.

Enfim, parece-me que nenhuma marca automóvel escapa à nódoa do pecado original. Além disso, as estradas são rios de petróleo e suor, e se olharmos com atenção, veremos que o telemóvel com que se anuncia a penitência foi montado por operários exaustos da Foxconn, e que a camisa orgânica que veste foi cosida por dedos infantis no Bangladesh. E a rede social onde proclama a Virtude? Um manicómio de algoritmos que vendem a alma ao melhor licitador.
Se verdadeira pureza de intenções movesse Manzarra, não teria ele vendido o Tesla como quem lava as mãos no mercado de escrúpulos alheios. Antes, tomaria uma marreta ou um martelo pneumático — ou, quem sabe, um simples escopro filosófico — e reduziria o altar rodante a um monte de sucata indistinta, onde os metais e os plásticos recicláveis, cuidadosamente separados em contentores certificados, renderiam talvez os tais dez por cento que prometeu doar à seita ecológica. E ainda lhe sobraria ferro-velho para fabricar, quem sabe, uma bicicleta sem mudanças, montada por artesãos neutros em carbono e castos em ideologia.

Mas não. A opção de Manzarra foi, como é costume nesta era, simbólica e higiénica: vende-se, transfere-se, passa-se adiante o pecado como quem revende uma má consciência com garantia ainda em vigor. Porque destruir seria um acto definitivo, e exigir-se-ia coragem — ou loucura — e isso, convenhamos, é mercadoria rara até nas feiras da Virtude reciclada.
Porém, não censureis demasiado o virtuoso Manzarra. Faz o que pode, ou o que o seu público lhe exige, mesmo se a sua Virtude pública esbarre sempre na sua incoerência privada. E quanto mais ele se exibe, e exibe a sua hipócrita Virtude, mais se vê que é verniz sobre verniz.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.