Nuno Markl, o heróico bobo pandémico

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Brás Cubas|16/03/2025

A História, essa ilustre cronista de enganos, tem um curioso passatempo: pega na vaidade dos homens e converte-a num espelho côncavo, onde eles, distorcidos, se observam, ora ampliados na presunção, ora reduzidos ao grotesco. E nunca nos últimos anos, desde o afamado dilúvio universal, quando um tal Noé, presunçoso e abstémio, salvou, entre toda a caterva de animais e plantas, até um par de pulgas da catástrofe — como se a sarna fosse essencial ao futuro da humanidade —, se viu tanto homem sério em tão solene comédia.

Confesso que observei do meu túmulo, comodamente deitado sobre as tábuas de mogno onde jaz este meu esqueleto ilustrado, e lustrado pelos vermes, os acontecimentos que na vossa época deram em chamar pandemia. E não fosse a indisposição do meu ânimo e o desconforto de já ter abandonado a carne, teria gargalhado até desgastar os ossos. Porque vi, senhores e senhoras, uma plêiade de criaturas convictas de que seriam os novos Prometeus; roubariam o fogo da Ciência — por vezes já em cinzas — e, com ele, iluminariam as cavernas das gentes.

E que fizeram? Acenderam um fósforo e puseram-se a gritar: “Eis a luz do mundo!”

A História, volto a dizê-lo, minhas venerandas leitoras – porque homens não lêem, apenas comentam –, não passa, de igual modo, de um imenso armário repleto de ossadas e ridículos. Nas suas poeirentas prateleiras, entre um Carlos Magno e um Egas Moniz – não aquele que ficou com a mão entalada na porta, mas o outro, que tratou maleitas da alma extirpando pedaços de cérebro como quem arranca dentes cariados –, jazem esqueletos menos ilustres, mas não menos instrutivos. Uns pereceram por valentia, outros por estupidez, e há aqueles que, não morrendo logo, vegetaram confortavelmente na soberba de se julgarem importantes. Desses últimos gosto mais: são os tolos que se crêem faróis.

Ora, se houve figura que nestes recentes tempos se agigantou pela sublime tolice, foi o homem tomado pelo pânico. Esfarrapando-se na taciturna angústia da morte, alegremente esqueceu-se de viver; e querendo salvar-se, condenou entusiasticamente os outros. E a História — essa arquivista impiedosa — registará que o século XXI inventou um novo flagelo: o opinador higiénico, criatura devota ao gel, à máscara e, sobretudo, ao imperativo categórico de não parecer tolo, ainda que o seja irremediavelmente. Na Antiguidade, tais criaturas se chamavam sátiros; nestes tempos de plástico, chamam-se influencers – embora os sátiros tivessem ao menos a decência de embebedar-se em honra de Baco, enquanto estes se inebriaram em álcool-gel por mor da higienização pública.

Nuno Markl no seu depoimento ao Público.

Esses sacerdotes da nova liturgia sanitária, que deambularam por praças e vogaram no éter durante os anos da pandemia, tomaram para si a tarefa grandiosa de evitar a extinção da Humanidade. Suponho que algum ímpeto divino os tenha visitado e tocado; talvez Mercúrio — deus dos logros e das comunicações ligeiras — lhes tenha sussurrado ao ouvido.

Certo é que, dentre tais heróis de pacotilha, sobressaiu, ao menos pela abundância das palavras e pela parcimónia das ideias, um cavaleiro chamado Nuno Markl. Sem cavalo, sem espada e sem causa, nem tendo nascido em Atenas para merecer a toga de Demóstenes, acabou trajando, em Lisboa, a casaca de bobo pandémico, não resistindo sequer a ganhar uns cobres com campanhas patrocinadas pela indústria farmacêutica para a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Digo bobo, aliás, com respeito: os bobos antigos sabiam rir-se de si próprios; Markl, como tantos da sua estirpe, ri-se dos outros sem perceber que os outros riem dele.

De facto, Markl — que se propôs outrora fazer rir os tristes e acabou por entristecer os alegres — regressou agora para dizer de sua justiça sobre a pandemia, após pelo menos duas públicas acamações, sem aclamações, apesar das inúmeras ‘jardas’ que injectou. E veio como um dos ‘heróis pandémicos’, num vídeo evocativo do jornal Público, com ares de filósofo da decadência, para explicar o inexplicável. E fê-lo, segundo o cânone dos penitentes sem culpa, com uma frase digna de um Dom Quixote que perdeu Rocinante e adquiriu o cavalo de Tróia: “Eu próprio achei que ia ficar tudo bem.”

Oh, excelsa esperança! Esse mesmíssimo homem que passou pelo menos dois anos a insuflar o medo como quem sopra um balão de festa — até este rebentar-lhe em lágrimas — anuncia agora, pesaroso, que tudo piorou. E não apenas uma vez; piorou por duas vezes, Markl dixit. Não por sua culpa, claro. Jamais! A culpa foi dos outros. Dele não, nunca! Lavou as mãos, ora essa!

Não vos recorda Pilatos? A mim sim, embora com uma ligeira diferença: Pôncio Pilatos, ao menos, sabia exactamente que Cristo tinha diante de si; já Markl lavava as mãos, cumprimentando com o cotovelo, e excomungava desalinhados sem sequer saber se sacrificava judeus, gregos ou romanos no seu fervoroso rito de ablução.

Markl, que agora se denomina iludido bondoso, esclarece-nos que depositou demasiada esperança no ser humano – como quem deposita um cheque sem cobertura e depois se espanta com a falta de fundos. E lamenta que “na verdade, tudo piorou, tudo piorou”. Seria cómico, se não fosse tragicamente verdadeiro. Markl e muitos outros formaram uma assembleia de faunos que, antes da festa, se perfumavam com gel hidroalcoólico, esfregando mãos e consciência, certos de que cada gota de desinfectante absolvia pecados próprios e alheios.

Olharam para a covid-19 tal como outrora os atenienses contemplavam a peste que lhes desfalcava a pólis: com temor reverencial e resignação supersticiosa. Disseram sim a todas as loucuras impostas pelos sacerdotes modernos da ciência higiénica: confinavam-se, purificavam-se e isolavam-se com zelo digno de anacoretas.

Enquanto isso, os velhos eram privados das consultas que lhes permitiriam morrer mais tarde e de forma mais cómoda; os doentes oncológicos ficavam entregues à sorte e à metástase, poupando assim incómodos aos serviços de saúde; as mães pariam sem maridos, talvez para que a criança nascesse já preparada para a solidão futura; os moribundos iam-se embora discretamente, sem uma mão amiga a perturbar-lhes a paz terminal; os filhos, pobres deles, eram poupados ao drama do último adeus ao caixão, essa morada eterna das tristezas derradeiras; os netos sabiam da partida dos avós sem aquele beijo final que os infectologistas consideraram uma evitável transmissão de germes; as crianças, enfim, ficavam sem escola, mas com máscara, ganhando desse modo em prudência o que perdiam em inteligência; os desempregados, esses, viam multiplicar-se os seus números com rapidez viral, em nome do zelo sanitário que considerou a ruína financeira um mero dano colateral; pequenas e médias empresas sucumbiam silenciosamente à pandemia do medo, deixando às futuras gerações o legado de portas fechadas e cofres vazios; e, por fim, para coroar tão virtuoso zelo higiénico, germinou alegremente a inflação, não já moderada como convém a economias civilizadas, mas hipertrófica, exuberante, digna dos tempos em que moedas valiam menos que papel higiénico, talvez numa subtil homenagem à higiene que tão cegamente se idolatrara.

E tudo isto sem que o ilustríssimo comediante perdesse sequer um minuto do seu precioso sono — talvez por dormir o sono tranquilo e virtuoso daqueles que, convencidos da sua santidade higiénica, julgam ter adquirido imunidade não apenas ao vírus, mas também à consciência.

Agora, meia década volvida, eis que Nuno Markl reaparece, erguendo uma vez mais a cabeça grisalha, ajustando os óculos que lhe emolduram a douta miopia e ostentando o nariz — generoso nariz! — digno herdeiro da tradição nasal de Cícero ou Cyrano. E ali está ele, sorridente e alarve, afirmando, com a inocência peculiar dos culpados sem consciência, que não foi ele quem falhou, mas os outros. Como um Saturno pós-moderno, devorou os filhos da dúvida e da ponderação, poupando somente os filhos da obediência e da credulidade. Todos os erros foram alheios; ele não passou de um laborioso Sísifo, empenhado em empurrar a pedra da salvação pública, ignorando, na sua olímpica cegueira, que a sua pedra esmagava já os cadáveres esquecidos de causas mais dignas e urgentes.

Confesso, com a modéstia de quem jamais errou em vida (excepto uma ou duas vezes por semana), que muito aprecio a arte singular e subtil de transformar um falhanço, ademais civilizacional, em autobiografia de boa vontade. Markl encarna o homem moderno, sem escrúpulos, que deseja o perdão sem reconhecer o pecado, porque foi o carrasco e não a vítima. Pede compreensão pelo que fez, sem reconhecer o que fez. E isto quando tudo fez com o alarde e entusiasmo de um Torquemada, apenas trocando as fogueiras pela luz azul das redes sociais.

Markl e os seus pares criaram uma religião: a seita dos puros. Ele, e outros como ele, afirmaram que foi a maldade alheia — sempre alheia! — a impedir o paraíso profiláctico da Humanidade. Que enquanto eles alisavam as máscaras, outros não usavam. Que enquanto eles dobravam a cerviz perante a Ciência (ou algo parecido que lhes venderam como tal), outros ousavam perguntar. Assim, declararam guerra aos maus, esquecendo que, na cegueira, todos se tornaram maus.

Eles eram os cândidos salvos, enquanto os que hesitavam ou pensavam eram os negros hereges. Uns eram “do bem”, outros eram “os maus”, como nas histórias que se lêem às crianças para adormecerem sem chorar. E quando o castelo caiu, quando o mundo pós-pânico revelou ser um pântano, eis que surgem — como generais da derrota certa — dizendo: “Fomos traídos pelos bárbaros!”

Não, Markl: foste traído por ti próprio. Traído pela ânsia insaciável de seres virtuoso aos olhos dos teus amos e pares; traído pela vã ilusão de que a História absolve aqueles que lavam as mãos quando deveriam lavar a alma. Repito, pois, a máxima que, não tendo escrito em vida, deixo agora aos vindouros: o homem que, ufano e presunçoso, se julga em tempos de crise mais responsável que os demais, torna-se primeiro ridículo; depois irresponsável; e, finalmente, debate-se como peixe fora de água, em esforços desesperados para convencer o mundo de que ainda respira sabedoria, quando já não é mais que um cadáver ictiológico convencido de possuir as virtudes proféticas de um oráculo.

Mas não estás só, Nuno Markl. A História guarda, em generosas gavetas, inúmeros exemplares da tua espécie: médicos da alma que prescrevem medo como panaceia universal; cientistas que trocaram a humilde incerteza pela arrogante certeza dogmática; curandeiros da opinião oferecendo soluções milagrosas em formato de bolso; e bobos que, tendo perdido o riso e a graça, tentam desesperadamente salvar a face, recolhendo fragmentos quebrados de porcelana que colam com saliva, jurando depois, com solenidade burlesca, que é ouro o que era caco.

Eis aqui, portanto, a ironia suprema, digna de um epitáfio: julgaste-te arauto da bondade colectiva e sentinela máxima da saúde pública, e terminaste reduzido à comovente resignação. “No que toca a coisas positivas, aprendi a lavar as mãos e a andar sempre com desinfectante. Acho que não se perde nada com isso” – dizes no patético vídeo do Público, onde te colocam como um dos “heróis pandémicos” (ou pindéricos), ao lado da antiga ministra da Saúde Marta Temido e da reformada directora-geral da Saúde Graça Freitas. Não perdeste nada, realmente — excepto, talvez, a vergonha, o senso crítico, a coragem, a honestidade intelectual e, acima de tudo, a capacidade de reconhecer que, por muito álcool que se use nas mãos, certas nódoas da alma não saem com gel.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

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