ERC institucionaliza ‘taxa de promiscuidade’ nos media

Na aparência é uma condenação, mas serve ‘para inglês ver’ – e pior, vai servir para perpetuar esquemas de promiscuidade entre empresas de media e entidades públicas e privadas. Uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), aprovada no início deste mês e divulgada esta semana, aplicou uma coima à Impresa Publishing, dona do Expresso, pelo facto de o jornal ter publicado um artigo publicitário, assinado por uma jornalista com carteira profissional, sem fazer referência de se tratar de publicidade contratualizada.
Mas, apesar desta condenação parecer, à primeira vista, um sinal de que o regulador dos media está, finalmente, a punir actos de promiscuidade por violação da Lei da Imprensa e de comercialização da actividade jornalística, os factos mostram o oposto. A deliberação serve como sinal de que o ‘crime’ compensa e até dá dicas para contornar futuras sanções. Isto porque a coima aplicada (2.000 euros) foi muito inferior aos proveitos obtidos pelo Expresso por essa violação da Lei da Imprensa.
Ou seja, a ERC aplicou, na verdade, uma espécie de ‘taxa de promiscuidade’, que pode muito bem passar a ser encaixada em futuras parcerias comerciais entre media e entidades públicas e privadas, na eventualidade do regulador os voltar a incomodar. E tem incomodado pouco, diga-se, até porque este processo de contra-ordenação demorou mais de dois anos a ser concluído e envolve actividades que ocorreram em 2021.

Na base da condenação da Impresa Publishing está uma notícia publicada pelo semanário, no dia 28 de Junho de 2021, com o título “Taxa de abandono escolar precoce caiu 10% desde 2013“, na rubrica ‘Projectos Expresso’. Trata-se de uma notícia elaborada no âmbito de um contrato de 29 mil euros efectuado entre a Secretaria-Geral de Educação e Ciência e a Impresa Publishing, para a aquisição de serviços para organização, cobertura e promoção de evento para o Programa Operacional Capital Humano (POCH), em 9 de março de 2022. Este contrato foi um dos 56 contratos identificados pelo PÁGINA UM numa investigação sobre promiscuidade nos media, publicado em Maio de 2022. Cinco destes contratos envolviam o Expresso. Cerca de um ano mais tarde, a ERC anunciou a abertura de processos de contra-ordenação a sete empresas de media.
A ERC acaba apenas por sancionar um dos cinco contratos -havendo mais outro que foi analisado, referente ao Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), também revelado pelo PÁGINA UM em Maio de 2022, mas sem quaisquer consequências.
Nesse contrato, que visou promover o POCH, esteve em ‘discussão’ se um artigo ambíguo publicado na secção ‘ Projectos Expresso’ era notícia ou publicidade. Esse artigo foi escrito pela então jornalista Fátima Ferrão, que neste momento não tem carteira profissional, até porque tem vindo a acumular a profissão de jornalista com a de coordenadora de uma empresa que faz conteúdos empresariais, a Mad Brain. Em todo o caso, Fátima Ferrão continua a assinar notícias em meios de comunicação social e a apresentar-se como jornalista, colaboradora do Expresso e coordenadora da Mad Brain, o que constitui uma acumulação de irregularidades.
No decurso do processo de contra-ordenação, a ERC concluiu que, embora assinada por um jornalista e com um formato de um texto jornalístico, não evidenciava, aos olhos dos leitores, tratar-se de conteúdos publicitários. Isto porque a formatação do texto era similar às das notícias jornalísticas, com o mesmo tipo, cor e tamanho de letra e fundo. Porém, estava associado a um contrato para a sua elaboração, ou seja, era um compromisso assumido previamente pela Impresa Publishing perante o pagador, a Secretaria-Geral de Educação e Ciência.

Para a ‘condenação’ da Impresa Publishing contribuiu, no entanto, apenas o facto de o contrato com a SGEC contemplar, para além da organização de um evento, “a cobertura jornalística […] no jornal Expresso”. A ERC nem sequer considera grave que um evento pago tenha tido a presença de directores e jornalistas do Expresso, cuja participação era exigida também no contrato. Ou seja, o regulador ignora, na decisão final, que um director e um jornalista do Expresso tem mesmo de estar ao serviço de uma entidade externa, neste caso do Governo, para cumprir um contrato. E também realizar entrevistas aos oradores do evento e “cobrir a conferência no caderno de Economia”, e logo na primeira página, como está no contrato. E foi cumprido,
Isto tudo apesar da ERC concluir que, “o jornal Expresso não cobriu a referida conferência porque viu nela interesse jornalístico, mas [sim] porque a sua entidade proprietária se comprometeu a fazer a promoção e cobertura jornalística desse evento num contrato que celebrou” com o Governo de António Costa..

Estranhamente, apesar de se tratarem de casos similares, envolvendo a secção ‘Projectos Especiais’, a ERC entendeu que não existiam provas de que as notícias associadas aos outros cinco contratos tenham violado também a Lei da Imprensa e estavam feridas de promiscuidade. E por uma simples razão: a instituição liderada por Helena Sousa, mesmo com todos os poderes de um regulador, não mexeu uma palha para obter sequer os cadernos de encargos, mesmo não estando no Portal Base.
Assim, a ERC deixou escapar, ou quis deixar escapar, as ‘notícias’ promocionais efectuadas no âmbito de outros contratos, designadamente aquele que foi assinado em Maio de 2022 com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), no valor de 19.500 euros, para a aquisição de serviços de apoio, organização e promoção de eventos associados à iniciativa Missão Natureza 2022. E isto porque não teve acesso ao caderno de encargos. Curiosamente, o PÁGINA UM teve, bastando um pedido ao ICNF. Está aqui.
Sem qualquer sanção ficou também a cobertura ‘noticiosa’ feita pelo Expresso na sequência de um contrato celebrado com a Secretaria-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (SGTSSS) em Dezembro de 2020, no valor de 19.800 euros, para a aquisição de serviços diversos para apoio à realização do evento anual do Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego – POISE.

A ERC considerou que não tinha provas de que as seguintes notícias feitas na sequência dos dois contratos efectuados com o ICNF e a SGTSSS, estivessem inseridas nos serviços prestados pela Impresa: “Duarte Cordeiro: ‘Esta é a hora de reforçar as ações de proteção da biodiversidade’“; “Mulheres duplamente penalizadas com a crise“; e “Conquistas no emprego e igualdade de género poderão ‘regredir’ com a pandemia“.
Mas o facto é que a ERC assume que, no concerne aos “factos considerados não provados, tal ficou a dever-se à circunstância de, quanto a eles, não ter sido produzida qualquer prova suficientemente consistente”. Melhor dizendo, o regulador não se deu ao trabalho de a produzir, porque nem sequer mostra que pediu às entidades públicas os respectivos cadernos de encargos. Bastaria, talvez, um e-mail.
A ERC teve a ousadia de dizer, na sua deliberação, que não encontrou provas de que a publicação do artigo “Duarte Cordeiro: ‘Esta é a hora de reforçar as ações de proteção da biodiversidade’” “estivesse prevista no contrato celebrado entre o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, I.P. e a Impresa Publishing, S.A., para aquisição de serviços de apoio, organização e promoção de eventos associados à iniciativa Missão Natureza 2022, celebrado em 20 de maio de 2022”.

Porém, consultando o caderno de encargos deste contrato, estão claramente descritos os serviços a prestar no âmbito da realização de três conferências, designadamente: “Divulgação do evento num jornal de referência nacional (1 página)”; “Elaboração do resumo das principais conclusões”; e “apresentação das conferências, com recurso a uma personalidade reconhecida de um canal de televisão nacional com elevado número de telespetadores”. A ERC usa o argumento ‘in dubio pro reo‘ para não condenar a Impresa, mas, na verdade, verifica-se que se aplicou a máxima pouco ortodoxa ‘in ignavia iudicis, absolutio sequitur‘, ou seja, na preguiça do juiz, segue-se a absolvição.
O caderno de encargos tem, aliás, uma particularidade que mostra a promiscuidade destes contratos: o ICNF exigia contratualmente a cobertura noticiosa mas concedendo que o Expresso dispunha “de autonomia na prestação dos referidos serviços, designadamente no apoio técnico, streaming, promoção e cobertura dos eventos”. Ou seja, o Expresso podia fazer tudo o que lhe apetecesse, do ponto de vista editorial, desde que não pensasse sequer em ignorar a cobertura noticiosa do evento pago.

O mais curioso é que a ERC na sua deliberação – e convém referir que existem propostas de deliberação elaboradas pelos seus serviços que podem ser alteradas pelo Conselho Regulador – reconhece ser “convicção do regulador que estes artigos também foram elaborados na sequência dos mencionados contratos, pois os mesmos promovem os eventos visados pelos contratos”.
Mas diz depois que, “dada a natureza híbrida destes conteúdos [‘Projectos Expresso’], que se assemelham a conteúdos jornalísticos, e considerando que os mesmos revestem certo interesse informativo, sem existirem nos contratos cláusulas específicas que prevejam a sua elaboração (que sejam do conhecimento do regulador), poder-se-á admitir que as peças em causa foram elaboradas por decisão da direção de informação do Expresso, dentro da sua liberdade editorial, que decidiu anunciar e descrever as conferências em causa, citando as declarações dos seus oradores”.
E até acrescenta então que se considera “pouco provável essa ocorrência” mas que, face à existência de dúvidas acerca de quem partiu a decisão para elaborar os conteúdos em causa (da direção de informação do Expresso ou se já estavam previstos nos contratos para a organização desses eventos) e da existência de um pagamento pela redação dos mesmos, convoca-se o princípio ‘in dubio pro reo‘ [na dúvida, decide-se a favor do réu], aplicável ao processo de contraordenação”. Dúvidas existenciais da ERC que teriam sido sanadas com a leitura do caderno de encargos, que no caso do ICNF, está aqui. E também na imagem em baixo.

Assim, não só a ERC deixou escapar estas notícias à aplicação de coimas, já que são em tudo similares à notícia que gerou a presente condenação da Impresa Publishing, como sugere uma dica preciosa aos media promíscuos: desde que as ‘notícias’ não estejam especificamente previstas nos contratos, escapam a coima do regulador e não serão tratadas como publicidade, apesar de o serem, mas não estarem identificadas como tal aos leitores.
Deste modo, além de aplicar apenas uma coima, e de valor baixo (2.000 euros para um contrato de 29.000 euros), a ERC ainda explica aos grupos de media como podem ‘fugir’ à Lei da Imprensa.
Acresce a demora na análise, porque este caso remonta a Maio de 2023, quando a ERC deliberou instaurar processos de contra-ordenação contra a Impresa Publishing relacionados com “conteúdos referentes aos cinco contratos celebrados entre entidades públicas e a empresa”, no período compreendido entre 26 de fevereiro de 2020 e 20 de maio de 2022.
De resto, essa deliberação inicial só surgiu após uma notícia do PÁGINA UM sobre promiscuidade nos media, que identificava que, desde 2020, tinham sido efectuados 56 contratos de ‘parceria comercial’ entre empresas de media e de entidades públicas.

Este é mais um caso em que a promiscuidade vence pela inacção e posterior lentidão de actuação do regulador, mas também pela reduzida coima aplicada e demais incentivos a que os grupos de media continuem a violar a Lei de Imprensa, publicando notícias que são, afinal, publicidade.
Recorde-se que, segundo a Lei da Imprensa, toda a publicidade “deve ser identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio, contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”. Mas grupos de media têm criado áreas como a de ‘Projectos Especiais’ do Expresso para publicar notícias que resultado de contratos comerciais.
Na base da presente condenação da Impresa Publishing pelo conselho regulador da ERC está também o argumento de que “os factos ocorreram porque a arguida não procedeu com o cuidado a que está obrigada e de que é capaz, já que não fez uma interpretação correta da Lei de Imprensa”.

A ERC frisa, na deliberação, que “a arguida tinha os meios necessários e a capacidade de compreender que uma peça que promova uma conferência por cuja organização recebeu uma contrapartida económica, estando prevista a sua redação no contrato de prestação de serviços, constitui um conteúdo publicitário, o qual tem de ser identificado expressamente”.
Considerou ainda que “a arguida não revela arrependimento, no sentido da interiorização do desvalor da sua conduta”.
O certo é que, após esta decisão e a coima aplicada pela ERC, fica aberto o caminho para que esta e outras empresas de media continuem a não interiorizar “o desvalor da sua conduta” quando publicam notícias ou entrevistas ou reportagens como se se tratasse de conteúdo informativo e não de publicidade encapotada.