Uma estória dos ditadores, segundo o populista Gouveia ‘Hermano Saraiva’ e Melo

Minhas ilustres leitoras, ornamento dos salões e das boas letras – sempre justas nas opiniões e, dizem, ainda mais nas silhuetas –, e meus esclarecidos leitores, esses decantados campeões do bom senso e da gravidade – ao menos quando não se deixam trair pelo apetite ou pela política de café –, escutai-me por um momento. Sabei que, quanto maior aparenta ser a severidade do verbo que assiste a um homem, tanto mais elástica se revela, por regra infalível – e permiti-me que o diga, confiado no vosso tino sagaz –, a natureza do seu acto. Eis o homem que, com a mão esquerda, aponta o dedo da moral aos astros, erguido em gesto solene, enquanto, com a direita, alarga a corda para melhor ajeitar o laço que lhe serve a própria conveniência. A moral, nestes casos, quando se ostenta de espada em riste e sob a farda alva da rectidão, costuma dobrar-se, lesta e flexuosa, como junco à beira do charco ao primeiro sopro do interesse.
Por isso, desconfiem sempre daqueles que, à semelhança dos antigos censores romanos, prezam tanto a austeridade das palavras que, ao proferi-las, parecem comandar uma trirreme em pleno mar de salvação, chicoteando galeotes com o zelo digno de um Catão. Ainda que, passada a tormenta e dada a folga, se lhes ache mansamente ao leme de um bote a vapor, confortável e sem pressas, onde remos e chicotes já ninguém os vê… salvo talvez o barqueiro Caronte, se o acaso lhes indicar a última travessia. Não me acusem de má-fé, que não padeço de tal moléstia. Recomendo-me antes ao vosso juízo como quem apenas observa com o olho desencantado de quem já percorreu este e aquele mundo — e vos confesso que, no fundo, são ambos feitos da mesma matéria corruptível.

Desta sorte, sempre que me deparo com um marechal da pureza (não no posto, mas na pose), bradando às massas com a prosápia de quem leva a reboque um esquadrão de princípios imaculados, ocorre-me sempre Frei Tomás: homem de missa à dominica e traficante de bulas à segunda-feira. Em rigor, não se trata apenas de fazer o que Frei Tomás diz e depois imitar o que Frei Tomás faz; trata-se antes de seguir-lhe as palavras enquanto há quem as escute — e, logo que o pano desce, executar aquilo que só Deus, os santos da casa e a cozinheira escutam entre um lavar de pratos e um mexer de tachos. Ora, e como reza o rifão, santo da casa não faz milagre. Por isso, acautelai-vos dos homens de verbo severo: onde a língua é chicote, o corpo costuma ser serpente.
A História é fértil em exemplos desses senhores que, da tribuna, apregoam virtudes republicanas com tamanho fervor que seria de supor terem sido Cícero reencarnado, ou pelo menos afilhado de Brutus — só para, na primeira esquina escura do foro, venderem a alma. E não por trinta dinheiros, que seria preço de apóstolo, mas por um vintém ou um bastão de comando. Contudo, nem vale o peso de um compêndio de calígrafos bizantinos ou de um breviário de doutores escolásticos a buscar tais espécimes em bibliotecas bolorentas, quando os podeis encontrar por aí… a cada esquina e a cada discurso.
Encontrei um espécime destes, por estes dias, no lançamento de um livro titulado Os políticos são todos iguais, da lavra de um ‘fact-chicote’ que responde por Gustavo Sampaio — desses que vergasteiam a realidade com tanto afinco que, coitada, acaba exausta, a confessar ser surreal, quando não se rende já à fantasia do inquisidor. Não, não me refiro ao escriba nem tampouco ao seu objecto de estudo — esse André Ventura, douto vendedor de políticas pomadas milagrosas que se apresenta em feira franca, bradando, gesticulando, prometendo curas sociais e económicas para todos os males, enquanto vende banha de cobra em frascos de ouro de pechisbeque. Nenhum desses. Falo-vos do apresentador do missal sobre populismos: Gouveia e Melo.

É certo que o Almirante já não se apresenta de dragonas, nem de farda branca de veraneio, nem de colete táctico de campanha; mas enfarda-se agora, em superciliosa empáfia, com verbo de gala: lustroso, aprumado, carregado de medalhas. Fala grosso, e pensa-se, quem o escute, estar ali um Ájax tecelão de justiça e coragem. O bom do povo, crédulo como sempre, ao vê-lo tão hirto e vociferante, acreditará que não há neste homem nem sombra de torcedura — quando, talvez, a torcedura esteja toda nele, bem escondida sob a casaca de Almirante.
No seu discurso, o Almirante – a quem reconheço a arte do teatro e a gravidade do tom –, abdicando da patente de oficial para se fazer tribuno, num rasgo de zelo constitucional, resolveu dar lições de democracia e liberdade, filosofando como se Atena tivesse por capacete um barrete de marinheiro. Julgou, pois ele, por decente afirmar, com um ar de quem revela um segredo de Estado, que “a maior parte dos ditadores autocráticos da História não era militar, nem ex-militar”. Pasmei. Com o que me resta das mandíbulas, pasmei.
E perdoe-se-me a franqueza de defunto: não há maior martelo da razão do que o martelo do ridículo. E a afirmação do senhor Almirante cheira a improviso de taberna mais que a lição de historiador. Examinemos o caso, com a paciência de um estudioso e a malícia de quem já não teme retaliações mundanas. Deixai-me, doces donzelas e corteses cavalheiros, que vos leve a passear, de candeia na mão, pelas cavernas do poder autocrático, onde os galões e as espadas sempre tiveram mais préstimo que a pena e o tratado.
Comecemos pelo princípio — ou quase —, onde a autocracia nunca brotou democratas, e muito menos humanistas de excelsa sensibilidade. Alexandre, dito o Grande, que o foi mais pelo tamanho dos massacres que pelo das virtudes cívicas, era rei e também general, mestre do assalto e do cerco. Dizem-me que deixou atrás de si cidades arrasadas e pilhas de cadáveres para corar os mais modestos carniceiros. César, que cruzou o Rubicão não para trazer paz a Roma, mas para forjar a primeira ditadura militar da história clássica, envergou uma armadura e não a toga quando se fez senhor da República.

E como esquecer Genghis Khan? Não há nome que baste à brutalidade metódica dos sanguinários exércitos mongóis. O bom do Khan não tinha títulos universitários, mas manejou a espada como ninguém – e construiu um império a cavalo, onde o maior mérito de um homem seria a perícia e rapidez em cortar cabeças. Avancemos um pouco. Os otomanos, senhores de um império fundado e mantido por militares, davam a chefia do Estado ao sultão, que era ao mesmo tempo chefe das forças armadas. Os janízaros, exército de elite, não só impunham a obediência interna como determinavam sucessões imperiais a seu gosto – matando, para o efeito, mais príncipes do que uma peste palaciana.
Querem reis militares da Idade Média? Do Renascimento? Do Barroco? Querem também papas de armas em punho? Chega-vos o velho Júlio II, Il Papa Terribile, que com a mão direita benzia e com a esquerda manejava o estandarte de batalha, e que fundou a Guarda Suíça não para rezar mas para pelejar. E que tal então Napoleão Bonaparte? Esse corso de baixa estatura, mas altas ambições, que foi general antes de ser imperador, que usou a guerra como argumento e o exército como meio de voto popular. Proclamou-se defensor das ideias revolucionárias e, num repente, estava a erguer o trono forrado a decretos imperiais que manteve a Europa em guerra durante uma década.
Aliás, o meu século é fértil em tiranos fardados. No México, Antonio López de Santa Anna – generalíssimo e ditador – governou como lhe apeteceu, vestindo tanto a farda como o casaco da tirania, dependendo apenas da meteorologia. No Paraguai, José Gaspar Rodríguez de Francia – o Supremo – foi ditador, mas o seu sucessor, Carlos Antonio López, militarizou o país e iniciou a senda que culminaria com o seu filho, Francisco Solano López, que conduziu o Paraguai à aniquilação total na Guerra da Tríplice Aliança, morrendo fardado e espada em punho.

Na árvore genealógica das tiranias, os ramos mais robustos mostram-se frequentemente de cepa militar. O senhor Gouveia e Melo, agora militar na reserva, parece querer ignorar que Franco era general, Pinochet era general, Videla era general, e que a América Latina — terras de minha infância tropical — se viu, no século XX, governada por uma plêiade de senhores de farda, bigode e punho de ferro. No meu Brasil, por exemplo, tivemos uma ditadura que durou mais de duas décadas, até 1985, sob o bastão firme de generais sucessivos, cada qual tão amante da Constituição quanto um açougueiro do boi que estripa.
O argumento do Almirante, se me permitis a imagem, é como um navio que parte sem leme e se crê guiado pela força das ondas: chega, mas ao fundo do mar, a fazer companhia aos galeões de prata, às esperanças afogadas e aos tubarões do costume, que lá em baixo votam sempre a favor da corrente. Esqueceu-se Sua Excelência de que mesmo aqueles ditadores que não envergaram fardas de serviço se armaram de aparato militar e simbologia castrense para consolidar e exibir o poder. Hitler foi apenas cabo da I Guerra Mundial, é certo, mas criou para si mesmo uma farda e insígnias de Feldmarschall. Já Mussolini, um jornalista em origens, deu-se o gosto de se apresentar como comandante das massas, com uniformes que fariam inveja ao guarda-roupa de Júlio César.
Na verdade, não há tirania sem aparato militar; não há autocracia sem aparato repressivo; não há ditador que não precise de soldados, de generais, de polícias com culatra armada. A política é, afinal, a continuação da guerra por outros meios, como bem disse o prussiano Carl von Clausewitz; mas há quem inverta a sentença e torne a guerra a continuação da política, com sabre, baioneta e discurso constitucional. Nem Portugal fugiu a esta genealogia belicista. O Estado Novo emergiu não da penumbra das assembleias populares, mas do clarão de um golpe militar. A vossa Primeira República foi uma sucessão de pronunciamentos e quarteladas, com mais generais a dar posse a governos do que padres a dar bênçãos aos noivos. Salazar, a quem se atribui o título de professor, só governou porque o general de artilharia Óscar Carmona, o general da aeronáutica Craveiro Lopes e o almirante Américo Tomás lhes asseguraram, décadas a fio, o respaldo das baionetas e a obediência das armas.

Mas voltemos ao nosso Almirante – não ao Tomás mas ao Melo –, para as suas meditações sobre o populismo. Disse ele ainda que consultou o livro de Gustavo Sampaio para verificar se cumpria ou não os “itens da checklist” de um populista, “para não ficar preocupado”. Ah! Aqui reside o detalhe: um candidato a Presidente que precisa de um manual alheio para saber se é populista é como um cozinheiro que consulta a receita para verificar se o bolo leva açúcar. Se tem dúvidas, e precisou do Gustavo Sampaio, já se meteu na cozinha errada.
Caro Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, distinto almirante na reserva, ornado ou ornamentado, segundo a página da Wikipédia, de GCC, GCA, ComA, cinco MPSD, três MOSD, MTMM, MSMM, MPMM, MPDN, MPCSJ, MTCN e MOCE: bem sei que arrasta ao peito prataria e ferragens que, não fosse a distinção, dir-se-ia um galeão filipino da Armada Invencível prestes a naufragar com o peso do próprio tesouro… ou a ser resgatado por algum submarino alemão de oportunidade, que bem conhece. Mas sempre lhe atirarei, com a tranquilidade de quem não teme tormentas, que o verdadeiro populismo não reside nem em palavras nem em gestos, mas na apropriação do imaginário das massas, no uso hábil da retórica da pureza e da corrupção alheia, no apelo constante ao “nós”, os magníficos, contra “eles”, os execráveis.
Permiti-me, ainda, um derradeiro apontamento filosófico. Os militares são, em última instância, os instrumentos organizados da violência legítima, assim defendeu Max Weber. Mesmo não governando, encontram-se na retaguarda do poder – e a paz, sabem eles bem, é somente um intervalo entre batalhas, e a democracia uma suspensão precária da força, à espera que os uniformes se aborreçam da espera.

Por isso, a sua postura hierática e o seu ar de comandante prudente encarnam bem o dilema dos militares que sempre estiveram de mãos dadas com a política: querem ser árbitros, mas acabam juízes; querem ser neutros, mas acabam protagonistas. E quando dizem que “a Constituição não está mal feita”, devemos lembrar que o mesmo foi dito de muitas cartas antes de serem rasgadas ao primeiro tropel de cavalaria.
Percebo, neste momento, o seu dilema existencial –um dilema que, por certo, deixaria Hamlet a coçar a cabeça: ser ou não ser militar? Ser um bravo fardado, de peito estufado, botas de tropa e discurso castrense, ou envergar a limpíssima camisinha e gravata a preceito de civil imaculado? Andará amargurado a perder noites em angústias metafísicas, oscilando entre o papel de soldado da Constituição ou de tribuno da República, entre o herói disciplinado das Forças Armadas ou o candidato messiânico das multidões?
Sim, porque é caso para dizer que jamais um oficial de Marinha passou por tão angustiante crise identitária. Acredito estar hesitante entre continuar a representar o papel de salvador de Portugal de camuflado e bota cardada na epopeia grandiosa da distribuição de vacinas (que, convenhamos, tinha menos complexidade logística do que gerir um Pingo Doce em fim de semana de promoções de brócolos e nabiças) ou reinventar-se como estratega da política, brandindo um código moral e fingindo que foi moldado na tradição do grego Solón, em vez da de um qualquer chefe de brigada de infantaria.

Aquilo que o atormentará, certamente, é o paradoxo essencial do militar que ambiciona o voto: precisa do peso simbólico da farda para se apresentar como líder forte e disciplinado, mas teme que o associem demasiado ao arquétipo do bruto das armas, do soldado que obedece mas não pensa, do homem de caserna que sabe manejar a baioneta mas tropeça na gramática. Quer ser visto como o iluminado da Marinha, mas sem que lhe recordem que a Armada, em Portugal, passou meio século sem disparar um tiro e mais de um século a navegar sem grandes feitos, a não ser os de engraxar sapatos e de manter impecáveis os botões dourados do uniforme. Quer ser o homem da ordem e da autoridade, mas sem que o confundam com aqueles coronéis de barbas hirsutas e óculos escuros que governaram a América Latina à bruta.
Na verdade, quer vender-se como um líder que não é populista, mas não resiste ao espectáculo do populismo. Que outro motivo teria para folhear um livro sobre André Ventura e verificar, qual adolescente ansioso com um teste vocacional, se cumpria os “itens da checklist” de um populista? Fico na dúvida: consultou a “checklist” para saber se era populista ou para ter a certeza de que não era populista o suficiente?
De um modo ou de outro, o episódio é revelador: um militar que precisa de um manual para perceber se está ou não a fazer populismo é como um cozinheiro que consulta um livro de receitas para descobrir se o seu bolo leva açúcar. Se tem dúvidas, caro Gouveia e Melo, já se meteu na cozinha errada.

Diverte-me, em todo o caso, a sua inquietação sartreana: se continuar a vestir a farda, acusam-no de ser um candidato militarista; se a despir, perde o único traço distintivo que o separa de qualquer outro político sem ideias. Se se apresenta como homem de armas, denunciam-lhe a rudeza; se tenta passar por intelectual, falta-lhe a credibilidade. Enfim, uma coisa é certa, para seu mal: um Napoleão não pode ser um Voltaire, e um general não pode ser um Rousseau, por mais que tente substituir a espada pela pena – ou pela caneta BIC azul, dessas que assinam autógrafos em feiras do livro e actas em quartéis..
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.