Notas do diário

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Tiago Salazar|22/03/2025

CERTIFICADOS I Todo o trabalho tem o seu saber. A certificação de um ofício (e o estudo com aproveitamento) é uma forma de arrumo. Se não houver batota, de separar o trigo do joio. Ora, exerci o ofício de jornalista entre 1991 e 2016 sem nenhum diploma, por tal não ser imperativo, letra de lei.

Fiz o tirocínio com mestres (sem cursos de Jornalismo) e vali-me de uma vontade e à-vontade de contar histórias que me acompanham desde menino e moço. De então para cá sustento-me a guiar montadas e a pé a fazer o que sempre fiz: contar histórias. O critério é idêntico: seriedade e atenção plena ao interlocutor. Escrever livros é mais do mesmo. Podia ter cursado Letras ou Turismo. Poderei ser forçado a tal se assim me for exigido, tal como um dia tirei a certificação de técnico de exercício físico e uma especialidade em boxe, estas obrigatórias por lei para ser remunerado na actividade de PT.

Não me encanitam os auto-didactas. Só me dá espasmos no esófago a concorrência desleal, a patranha, o cinismo do bom “colega” ou a exclusão boçal de quem dá o litro por fazer bem o Bem, que é justificar o valor recebido pelo serviço. Vale o raciocínio para os clientes, que sejam gratos pela dedicação ao que lhes é servido de bandeja.

MIGRANTES I Lido todos os santos e profanos dias com migrantes. Ou melhor, imigrantes, pois são oriundos de lugares fora do burgo lusitano. No ramo dos tuks há marroquinos, argentinos, argelinos, bangladeshis, paquistaneses, indianos, brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos, espanhóis de várias procedências, franceses e até um dissidente da América de Trump. Deve haver mais, mas não os contei. Também há famílias inteiras de ciganos no activo, sendo este um ramo da mercância de rua onde têm atávica experiência. Este melting pot dá um colorido ao já de si garrido andar das “carruagens”. O que leva os emigrantes a instalarem-se, dito por todos à uma, são os euros. E uma certa paz lusitana.

No ramo paralelo dos carteiristas é esta mesma paz mansa que atrai. Afinal são detidos mas quase nunca deportados. Portugal acolhe e ao acolher sem crivo, encolhe. Aposto o dedo mindinho esquerdo em como no ramo dos tuks nem dez por cento dos habibis estudam a língua nativa, a História (onde também pulularam califas) e se convertem como apaixonados camonianos. Os camones e as suas carteiras aliviadas são o cânone. Pespegar um dichote qualquer e siga a Marinha. Ligar a estereofonia, o luzeiro e adejar as flores artificiais em troca de verdinhas. E ala pois Alá é grande. Por outro lado, deve ser tão mau o panorama de onde vêm que se sujeitam à diáspora. Um ou outro já emborca pastéis de bacalhau, bojecas e não arrota. Só postas de pescada, mas essas são toleradas porque o turista é pouco exigente e acha graça a passear por Lisboa como se andasse na Tailândia.

OS DONOS DISTO TUDO I Quem manda no burgo? Vamos lá ver: Há o Estado e as suas instituições, corporações e companhias limitadas. Dado o passivo, o Estado obedece à UE, e aí mandam a Alemanha e a França. Costa late para a caravana passar. Voltemos ao burgo: Opus Dei, Maçonaria, Igreja, as sete famílias do grande capital e os seus contributos partidários. Os penetras novos ricos também ditam regras ao açambarcar o seu quinhão.

A CS obedece ao Capital. Há que a comprar. Há as polícias e exércitos, a soldo e mando do Estado e das suas governações. Depois, há as ilusões dos outros mafiosos de que ao terem negócios obscuros e amealharem os seus milhões (lavados ou deslavados) mandam através da lei da bala e do suborno. Plata ou plombo. Há umas aves raras, Agostinhos da Silva e Joãos Césares, e um punhado de lúcidos insubmisos, que mandam sem mandar. Nem que seja pó caralho. A “melhor” forma de exercer e aplicar o poder é manter na ignorância, subjugar pela pobreza, esconder as verdades às marionetas e alimentá-las com circo e patranhas.

PRÉ CAMPANHA I Estamos naquele impasse de venha o Diabo e escolha. Negar a existência do Mal, é imoral. Quanto ao Bem, entende-se o dar a mão à família e aos amigos. Que se o faça na Política é humano, mas não deixa de ser desfaçatez e abuso de poder. Entre a Camorra e qualquer organização mafiosa e os clubes, seitas e partidos a diferença está no método. Mata-se na mesma, se o inimigo faz dano. Recorre-se ao jogo sujo, à exposição de toda a sorte de actos e factos, com recurso à mentira, à coacção e agora à IA, esse recurso de cariz gótico. Valha-nos Deus se mais nada valer.

POLÍTICOS I Hannah Arendt escreveu um ensaio sobre A Política e a Mentira. Como acreditar na política e em políticos? Ver para crer é um bom princípio. O que devia ser uma arte nobre é um lodaçal de falta de seriedade. A ideologia é de somenos (cada um vota e come o que gosta). Grave, gravíssimo, é o impacto da política na vida real e a dificuldade em encontrar bons políticos e políticos bons neste burgo mal frequentado. Um mau carácter pode ser um bom político, mas só para quem nele se filia, dele tira partido e lhe lambe as botas. O voto é o remédio da Democracia. É rara a Democracia que não redunde numa oligarquia. Tal como nenhuma Ditadura é boa. Que fazer? Estudar, estudar os programas, estudar os políticos, escrutinar e dar o voto em consciência. Mesmo em branco, o voto é relevante. Venham as eleições.

COMUNS MORTAIS I No geral acho que sou um tipo porreiro. Por vezes, a roçar o ingénuo. Se me pisam os calos sou capaz de dizer qualquer coisa na justa medida do ataque. Porém, aceito criticas bem urdidas. Isto, a propósito de sacralizar os artistas. Exemplos comuns entre nós são as azias, as purgas e o comunismo do Nobel Saramago, que limpou o DN e as dedicatórias nos livros à esposa Isabel. Ou o cinismo e crueldades de Agustina. A arrogância de Lobo Antunes e de outros quinhentos. Os pavões e pavoas.

A distinção entre o homem e a obra é um tema de peso. Neruda e a rejeição da filha macrocefala. Picasso, o misógino. Pelé, o promíscuo. Maradona, o drogado impostor e putanheiro. Celine e o anti-semitismo. Em todos os artistas há paradoxos, egos hipertrofiados e indomados, sobressaltos, causas por vezes radicais e injustas. O desgosto pode ser um laboratório para o mal. Virgínia dizia que não trocava um bom coração por uma cabeça dotada mas retorcida. Ou como dizia o tio do Peter Parker, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades.

CONTEÚDOS I Cada um de nós é uma consequência de aspectos, do mapa astral ao lugar (família, país) onde nasceu. Há aspectos marcantes como desaguar onde haja livros e o gosto por ler e dialogar. No meu caso uma avó professora e um pai alfarrabista.

A minha avó era franciscana e purista com a expressão da linguagem. O meu maior orgulho era escrever redacções sem erros. A avó oferecia-me um docinho quando a redacção vinha limpinha. Fiquei como o cão de Pavlov. A salivar depois de dar ao gatilho. O meu pai já leu milhares de livros e tem o condão da filosofia. Quando falamos do rescaldo dos jogos de futebol é de xadrez e da arte da guerra que se trata. Um sistema de crenças deve ser revisto e rebatido. Embora defenda os Acratas, leio toda a sorte de ideologias, até o Mein Kampf e a cartilha de João de Deus. Há dias estóicos e outros tomado por Epicuro. Ou outros em que harmonizo o dever e o prazer. Ontem vi o filme sobre o George Foreman. O corpo pode ser forte, o coração de leão, mas as vitórias estão na cabeça.

PAX, PAZ, PÁS I Levo 53 anos e alguns dias nas pernas, ou seja, tempo suficiente para dissertar sobre a paz como uma Miss Mundo. Desde o instante da inseminação na praia da Ursa até escorregar pra fora do loft uterino e ser instalado num par de berços entre a Coronel Marques Leitão e a Leite Vasconcelos conheci a paz da placenta. Talvez. Não sei nem nunca vou saber. Sei do dia em que realizei morar numa casa de possessos e na rua valer a lei do mais forte. O Cabanas, por exemplo, mais velho e mais encorpado, a jogar à bola dava cacetada de três em pipa. O Bernardo um dia espetou-me um soquete assim do nada durante uma jogatina (talvez por não dar tantos toques na chincha). Não reagi. Até porque gostava dele e da sua postura. O Joca, um puto estúpido, cravou-me um x-acto na palma da mão esquerda e quase me deixava deficiente. A ciganada andava sempre à coca dos nossos pertences e de nos aviar. Um dia, num raide, levei uma pedrada num olho. Hoje, dá para rir, eu aos gritos que tinha ficado cego. Durante anos comi mais do que aviei. Não entendia a violência. Em casa, por dá cá aquela palha, levava solhas, socos, carolos, insultos. Na rua, tinha que gramar com caceteiros e larápios.

Tenho impressão que o trauma de ter partido o nariz num choque brutal me coibiu de pelejas mais acesas. A primeira vez que puxei da culatra foi à saída da catequese, quando um gajo me gozou e por instinto lhe preguei um directo. De tal ordem, que daí em diante passou a ser meu amigo ou coisa parecida. Na adolescência tive umas cegadas. Um dia, uns galfarros apalparam a Célia no comboio e inspirado no Balboa distribuí um arraial. Safei-me pelo inesperado de fazer frente a uma mão cheia de chico-espertos. Na faculdade repetiu-se a cena do conflito. Um idiota, que era o Artur, levou uma bolachada por conta de um rol de provocações. Em casa, levei carolos e insultos até quase à idade adulta. Depois, havia a violência psicológica. A rejeição e o rebaixamento. Imagino ser judeu, preto, cigano ou outra coisa qualquer. Ter ido à guerra. A escrita cedo ocupou o lugar da revolta. Meti-me no boxe para saber bater em caso de. Tudo dava azo a uma certa agressividade. Ser do Sporting, por exemplo. A paz é uma miragem. Depende de como reagimos ou não.

Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)

N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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