‘Flooding the zone’: o regresso da censura

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Clara Pinto Correia|23/03/2025

Antes de mais nada, é preciso entender que este meu grupo de amigos com quem eu percebi que a informação americana estava a ser cuidadosamente manipulada são todos professores universitários mais velhos do que eu, as pessoas inteligentes em quem eu confiava para discutir as minhas ideias e a minha forma de expor em público as questões mais controversas. São pessoas que ainda hoje seguem as notícias, que ainda hoje se indignam[1], e que ainda hoje me mandam clips dos newsgroups que subscrevem[2] sempre que lhes parece que é bom que eu saiba. À excepção do Jim, que é republicano e gosta de falar comigo não só para me picar, mas sobretudo porque se queixa de já não existirem republicanos inteligentes desde que apareceu o Trump[3], que ele abomina, os outros três são democratas. Um democrata americano é mais ou menos o equivalente de um social-democrata europeu, a palavra socialista nem se pronuncia, mas, sob a pressão da alarvidade desta presidência, estão os três a ficar cada vez mais liberais – sei lá, mais parecidos com o Mário Soares quando saiu do comboio depois do 25 de Abril.

Na América nunca se diz de ninguém que é comunista. No tempo de Edgar J. Hoover, que fundou o FBI e o dirigiu durante 38 anos, houve muitas pessoas que foram perseguidas, sabotadas, assediadas, sabotadas, chantageadas, e presas, através de vigilância ilegal, ilegal, escutas telefónicas, e roubos, como parte da caça aos espiões e comunistas.  Morreram pessoas na cadeira eléctrica por causa de acusações destas, como o casal Rosenberg, vítima de um julgamento confuso entre os presidentes Truman e Eisenhower que culminou em 1953, quando Ethel Rosenberg tinha 37 anos e dois filhos pequenos, com o que é hoje considerado “uma história horrífica absolutamente bárbara[4]”. Também é extremamente perigoso seja quem for definir-se como radical. Foi este epíteto, sinónimo de anarquista no coração da democracia, que condenou à morte Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti em 1921, depois de um julgamento tão questionável que as testemunhas de defesa nunca chegaram a ser ouvidas[5]. Ou seja, a Land of the Free já passou por períodos terríveis de censura. E, de cada vez que a Sparky[6] disparava, o povo americano gritava de alegria. Só que isto aconteceu nos Estados Unidos do tempo de Estaline, quando se temia genuinamente que “os russos” deitassem bombas atómicas sobre a América – o tempo em que se vivia no medo, e o medo traz sempre consigo em grande potencial de histeria. Mas a censura caótica inventada por Trump é muitíssimo mais perversa do que todas as que o antecederam: consegue iludir até os seus adversários mais inteligentes.

A Tracy chamou a si a tarefa ingrata de ensinar aos seus alunos de primeiro ano, acabados de sair do secundário, a arte de distinguir as notícias verdadeiras das fake news. Sabe que Trump tem vindo a impedir cada vez mais os jornalistas sérios de fazerem correctamente o seu trabalho: por exemplo, nunca responde às perguntas da CNN. Baniu a Associated Press das suas conferências de imprensa. Evita dize alguma coisa que faça qualquer espécie de sentido se as perguntas forem de órgãos dos media como o Washington Post, a Time Magazine, a NPR ou a PBS. Mas fala com gosto para os media próximos da direita republicana, pelo que são essas ideias que circulam com mais impacto entre o público americano. “Se quiseres ver notícias na televisão e estiveres a faze zapping,” diz-me a Tracy, “notas que muitas coisas não batem certo. Vezes e vezes sem conta, tens de ouvir o Presidente, que devia ser imparcial, dizer à CNN, ou a qualquer outro repórter com quem ele embirre, que se recusa a responder porque não gosta deles. O ALJAZEERA AMERICA[7], um excelente canal de notícias que se apanha com a maior facilidade em todo o mundo dado a quantidade de antenas que os seus fundadores puderam instalar no deserto, agora está permanentemente cheio de interferências. E depois, finalmente, aparecem aqueles debates, ou mesmo notícias, que tu já sabes que são da Fox[8]. E sabes logo, mesmo antes de ouvires, porque nestes canais todas as mulheres, sejam jornalistas sejam convidadas para opinar, são loiras. E este espectáculo das mulheres loiras – loiras e boazonas, como tu dizes – passa uma mensagem absolutamente tóxica ao público americano: sobre quem detém o poder, e quem detém a verdade. Agora experimenta explicar isto aos teus alunos, que são quase todos brancos, e maioritariamente loiros.”

No entanto, naquela sexta-feira que vai ficar marcada a negro para sempre em todos os livros de História, nem a Tracy percebeu logo porque é que eu estava a vituperar com tanta raiva que – onde é que já se viu. Desde quando é que, num encontro de alto nível entre dois chefes de Estado, destinado a assinar ou não um tratado de colaboração cheio de cláusulas discutíveis, entram trinta jornalistas para a Sala Oval para assistir à conversa em directo? Desde quando é que esses jornalistas, que para já nem lá deviam estar, têm carta branca para interromper a conversa tensa dos Presidentes com perguntas parvas como a do fato e gravata? A Tracy interrompe-me, um bocado aflita: “Espera lá. Mas esse do fato e gravata não foi o Vance?”

Em dois ou três minutos refazemos o puzzle. Nós vimos o que se passou. Os americanos viram o mesmo, mas filmado de um plano esquinado, e tão apertado que não permitia ver os jornalistas na sala. E agora já não podem ir tentar verificar porque a imagem integral já não está no ar: estão só meia dúzia de clips dos dois homens, com Trump a repetir que fez de Zelensky um homem muito poderoso, e assim como fez pode desfazer, até porque o outro nunca lhe agradeceu. E depois vê-se Zelensky a ser “expulso” da Casa Branca porque não agradeceu mesmo. E acabou. Há muitas maneiras de censurar a informação, e Trump foi o criador das fake news.

O Jim foi o nosso Director de Projecto na época da clonagem de mamíferos, uns bons anos antes de nascer a Dolly, e nessa altura tivemos muito tempo para nos rirmos um do outro a respeito das nossas respectivas convicções. De cada vez que eu fazia toda a gente no laboratório rir-se às gargalhadas com mais uma belíssima descrição de grande detalhe ilustrativa de como os americanos eram uns parolos, ele tirava os olhos do microscópio onde estava a tirar os núcleos aos ovos e dizia-me, com um risinho maldoso, “Pois… se calhar devíamos ter pensado duas vezes antes de implementarmos o Plano Marshall[9], não é?”

“Ó seu parolo, Portugal não entrou na Guerra, por isso não precisou do Plano Marshall.”

Mas nesses tempos eu já nem ligava, porque tinha perdido a conta à quantidade de americanos, democratas ou republicanos, que quando eu os encostava à parede numa brincadeira qualquer me atiravam à cara com essa do Plano Marshall, como se a Guerra tivesse acabado ontem e o tempo a seguir ficasse parado. Aliás, a maior parte das pessoas nem nunca tinha ido a lugar nenhum da Europa porque diziam todos que era perigoso. Porquê? Foi o que me disseram. Há muitas doenças. Não há vacinas. Não se pode beber a água da torneira. Parolos. Eu já nem dizia mais nada. Ainda havia de ter que ouvir falar outra vez do Plano Marshall.

Não estava à espera era que o Jim, na sexta à noite, pouco depois de me ver aparecer no Messenger, começasse a rir e dissesse, vindo de parte nenhuma,

“Olha olha… o Plano Marshall!”

Então o que era?

Eu tinha começado a mandar vir sobre o Trump achar que a situação com a Ucrânia se resolvia directamente com o Putin, sem estarem presentes nem representantes da Ucrânia nem da União Europeia. E a graça toda, para o Jim, era a União Europeia. Não era só que o Trump, perante os americanos, não nos ligasse absolutamente nenhuma nem nos considerasse qualquer espécie de parceiros em qualquer espécie de frente, falando sempre como se nem sequer estivéssemos na NATO. Era pior. Era que, quando falava do armamento da União Europeia para apoiar a Ucrânia, a única coisa que o Trump dizia era que, assim como assim, o armamento que conseguíamos juntar para apoiar a Ucrânia era absolutamente ineficaz perante o poder do armamento russo. Mas, para nós, já estava a tornar-se, e ia tornar-se cada vez mais com o tempo, um dívida de tamanho tal que… que… que… (estas eram as partes em que o Jim parava para rir)… que no final nós não teríamos outro remédio senão virar-nos para a América para pedir, desesperados, que nos concedesse outro… outro… outro… (e agora o Jim ria cada vez mais)… “outro Plano Marshall, Clara! E sempre que eu oiço isto lembro-me de ti, e desato a rir. Pelo que te estou muito grato, porque aqui no South Dakota a pessoa não tem assim muitas razões para rir!”

Jim, estás a gozar. Só podes.”

Não estou. O gajo está sempre a dizer que a União Europeia vai acabar por ter que pedir-nos outro plano Marshall!”

Lá acabámos por nos entender. O Trump diz isto ao povo americano mais do que uma vez por semana, é verdade. Aliás, ao que parece, é a única coisa que lhe diz sobre a União Europeia. Mas diz em entrevistas para pequenos jornais locais, para pequenas rádios estaduais que mal se detectam, os únicos microfones com maior audiência que lhe repetem essas palavras são os dos radio-shock jocks[10] como Howard Stern, todos assumidamente de direita, que toda a gente sabe que tanto poderiam estar a inventar aquilo como a repetir uma afirmação autêntica do Presidente – ou então são os dos Evangélicos, que até já falaram da Europa a implorar outro plano Marshall à América por causa das suas despesas com a defesa da Ucrânia num recente comício em Timber Lake, perto da propriedade do Jim.

Finalmente, já muito tarde para mim, mas para eles não, consigo falar com o Dick.

“Sabes o que é que isto tudo me lembra?”, pergunta-me ele, quando consegue, por fim, parar de bradar impropérios sobre a pouca-vergonha do espectáculo dessa tarde. “Lembra-me aquele filme de extra-terrestres que os nossos filhos adoravam quando eram adolescentes e que da primeira vez nós caímos no erro de ir os dois ao cinema ver com eles, acho… acho que se chamava só mesmo CHAOS, não estás a ver? Os Extra-terrestres alimentavam-se do caos para sobreviver e para procriar, só vinham à Terra pôr um ovo e depois iam-se embora, mas para que isso fosse possível precisavam de criar o caos a toda a sua volta… e iam criando cada vez mais caos, e destruíam tudo e absorviam o  caos por uma espécie de exoesqueleto e atrás deles não ficava nada… até que punham o tal ovo e partiam… e via-se a Terra da perspectiva deles, ao longe, toda dizimada mas ainda com grandes zonas azuis e verdes… e depois via-se o ovo a rachar e uma pata igual às outras a sair lá de dentro… que ia de certeza criar mais caos… e assim por diante. As pessoas tentavam tudo para resistir, mas era inútil, o mundo vivo não resistia ao caos.”

“Que horror. Eu fui com vocês ver uma coisa dessas?”

“Foste pois. Numa de Mãe, não é? Aquelas coisas que tu fazes.”

“Tudo bem, osso ter ido. Mas não vi o filme. Devo ter estado quase todo o tempo de olhos fechados, porque não suporto esse género de porcarias. Já sabes como é. Depois tenho medo à noite.”

“Pois, mas é o que o Trump anda a fazer. Deliberadamente. Diz uma coisa num dia, e o seu oposto no outro, e mente com quantos dentes tem na boca sempre que for preciso. Se calhar foi ele quem fez do Zelensky um homem muito forte? Alguma vez? Um homem que tomou posse no fim de Janeiro? Pelo amor de Deus, se alguém fez o Zelensky tão forte quanto possível foi o Joe Biden! Mas o Trump fala, sistematicamente, como se o Biden nunca tivesse existido. E é assim mesmo que os americanos começam a sentir-se. O homem faz batota em tudo, baralha tudo, já estamos a passar pela vergonha de ser a China a dizer que está a lutar pela sua grande prioridade de manter a ordem e a estabilidade no mundo, e as pessoas já nem percebem que estão a ser enganadas. Já pensaste bem nos minerais raros? O Trump fala deles como se fossem a coisa de que o americano médio mais precisa para melhorar a sua vida, e ainda por cima fala deles como se estivessem já para amanhã! A sério, Clarinha, eu sei, tu sabes: uma mina daquelas, em tempo de guerra, demora no mínimo dez anos a construir. Põe a América nas mãos da China, porque só os Chineses é que têm a tecnologia para exploração destas minas. E uma grande parte da mina vai acabar em território russo, e achas que os russos vão fazer o quê, colaborar… ou pilhar? E tudo isto é o sonho de um homem de 78 anos que adora exibir-se, pavonear-se, gritar, saltar, ou seja, parece que vai ter um enfarte a qualquer momento. E esta táctica do caos, da forma como ele a usa, vai enganá-las cada vez mais, porque já ninguém tem paciência para pensar.”

“Olha lá, ao menos, logo a seguir à saída do Zelensky, houve um congressista republicano que escreveu no seu Facebook “I am ashamed of being na American today.” E recebeu logo dezenas de likes, todas de outros congressistas republicanos. Não foi?”

“Foi?”

A notícia não tinha passado em nenhum noticiário americano.

“Mas pronto,” continuei eu. “Apesar de tudo, aquela indecência teve outras consequências positivas. Em vez de se limitar a ser neutro e a receber cimeiras, o Erdogan já anunciou que as Forças Armadas turcas estão prontas para patrulhar toda a extensão da fronteira Ucrânia/Rússia que ficar definida nestes acordos, no sentido de manter a paz, evitar abusos, e impedir mais transgressões invasivas. Certo? Era um papel muito chato que ainda ninguém se tinha oferecido para fazer, e olha: não me parece nada que o Putin queira meter-se com os turcos. Certo?”

Esta notícia também não tinha passado nos noticiários americanos.

“Também nós temos a nossa longa e feias história de censura,” suspira o Dick. “Basta pensar no Edgar J. Hoover e no Kennedy. Ah, pois, e na Marilyn. Estás a ver? Nós nunca saberemos quem matou estes dois, mas sabemos que a CIA sabe. Agora, com o Trump, a táctica principal é outra. Basicamente, chama-se FLOODING THE FIELD.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] A maior parte dos americanos não se indigna com nada desde a Guerra do Golfo. Os apoiantes de Trump acham tudo muito bem e não querem saber porquê, e os seus detractores já nem seguem as notícias para não se irritarem mais.

[2] Isto, na América, é uma actividade absolutamente louvável. A maioria dos americanos engole pacificamente todas as fake news que possam aparecer nas redes sociais, enquanto outros tantos se informam do estado da nação seguindo o trabalho instável dos comediantes.

[3] Eu e o Jim tínhamos alguns pontos de total acordo em comum. Éramos os dois únicos católicos do laboratório, o que fazia de nós as duas únicas aves raras que se manifestavam constantemente contra a pena de morte. Na segunda candidatura Clinton/Gore eu teria votado neles se fosse americana, obviamente – mas tanto o Jim como eu tínhamos um fascínio que só partilhávamos um com o outro pelo candidato republicano, um sujeito vindo do Kansas, como o Jim, exactamente com o mesmo sotaque que o Jim tinha, e ainda por cima com o mesmo sentido de humor. Depois de perder graciosamente para os democratas dedicou-se a ganhar imenso dinheiro em torno do lema “nunca consigo ganhar!”. Por exemplo, ia a guiar pelo meio do coração deserto do Kansas, parava para pôr gasolina, mas eles não aceitavam VISA, só aceitavam MASTERCARD. Dole virava-se para a câmara, encolhia os ombros, fazia o seu sorriso irónico, e repetia o estribilho “I just can’t win” – com o sotaque igualzinho ao do Jim. O Jim e eu desatávamos a rir, e os outros diziam-nos que não batíamos bem. Uns anos mais tarde, Bob Dole foi a figura de lançamento do VIAGRA na América – com a frase “So you thought I’d never win, huh?!” Eu já estava em Harvard, mas liguei logo ao Jim. Bastou-lhe ouvir a minha voz para nos desatarmos os dois a rir…

[4] Anne Saba: “ETHEL ROSENBERG: A COLD WAR TRAGEDY”:

[5] Os dos emigrantes italianos, chegados aos Estados Unidos em 1908, foram apanhados numa rusga subsequente a um assalto a uma fábrica e sapatos a 15 de Abril de 1920 no Massachusetts. Sempre protestaram a sua inocência. O filme SACCO AND VANZETI, com música de Enio Morricone e uma canção final imortalizada pela voz de Joan Baez, repõe a verdade sobre a manipulação do julgamento

[6] Nome colloquial para a cadeira eléctrica.

[7] Situado no Catar e com correspondents em todo o mundo, o canal tem dois escritórios principais, um em Doha e outro em Londres.

[8] Todos os noticiários da Fox são de direita, e, portanto, amigos de Trump.

[9] Baptizado com o nome do Secretário de Estado dos EUA George Marshall, o Plano Marshall foi o principal plano de apoio dos Estados Unidos para reconstrução dos países aliados da Europa depois da II Guerra Mundial. Em valores de 2020, teria correspondido a 132 bilhões de dólares.

[10] Esta arte de chocar toda a gente pela radio tornou-se d tal forma popular que até já tem uma entrada própria no Cambridge Dictionary: “Um radio shock jock é uma pessoa que apresenta um programa de rádio em que frequentemente diz coisas que não são consideradas aceitáveis pela maioria das pessoas.” Howard Stern ganhou a sua coroa de gajo mais nojento da rádio depois e uma longa linhagem de percursores, como Rusty Humphries ou Mancow Muller. Ao pé deste género de gente, artistas de choque como Rush Linbaugh, vindos da extrema-direita para colonizarem a rádio, a televisão, e até a literatura, são apenas isso mesmo: verdadeiros artistas.

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