Adolescência (a série): um abismo sem plano sequência

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Ruy Otero|24/03/2025

Aviso: Este texto contém revelações sobre a série Adolescência que podem comprometer o efeito de surpresa — se é que isso ainda existe.


Vivemos um tempo cheio de buracos.

E já que tratamos aqui de televisão, é curioso observar como a indústria cultural soube reconfigurar os dispositivos da catarse, não sendo apenas um reflexo da “realidade” mas tratando dela para a reorganizar num sistema de validação moral atractivo e muito dicotómico, embora perto do vazio.

As séries contemporâneas converteram-se em repositórios de códigos éticos formatados, onde o espectador é conduzido por uma arquitectura emocional que não exige dúvida, mas um apelo à identificação.

Daí talvez o sucesso desta série chamada Adolescência que foi filmada no norte de Inglaterra, entre South Kirkby, South Elmsall e Sheffield, e sobre a qual se debruça este texto.

Trata-se da mais recente produção da Netflix com assinatura britânica, e que se inscreve exemplarmente nesta genealogia: uma obra que simula o abismo, mas opera sempre à beira da superfície; que quer parecer disruptiva, mas permanece meticulosamente dentro dos contornos do admissível pelo mainstream ideológico, como seria de esperar em tempos tão simulados e pouco rigorosos a roçar a hipocrisia, marca inevitável de quando só existem dois lados possíveis de escolha. 

Na sequência do assassinato brutal de uma jovem estudante, Adolescência acompanha quatro dias decisivos na vida de Jamie, em que nem sempre ele está presente. Trata-se de um rapaz de 13 anos acusado do crime. Filmada em tempo real, a série mergulha no impacto psicológico e social do acontecimento, expondo as fragilidades da família, da escola e do sistema de justiça juvenil. Com uma narrativa densa e claustrofóbica, a série explora a culpa, o silêncio e o peso insustentável de crescer num mundo que parece ter pouco sentido, cheio de tensões e neurose  A título de curiosidade, a série é para maiores de 13 anos, a idade do protagonista. Tudo a condizer.

A verdade é que o mundo colapsa, mas dentro de um guião. A série começa logo mal por se chamar Adolescência e não O adolescente (ou outra coisa). Fazendo passar um pelo todo, associação pertinente, o que é assustador. Como se na adolescência o normal fosse matar sem razão aparente. Esta série televisiva tem tudo o que se espera de uma tragédia contemporânea, pré-digerida para consumo emocional.

É talvez no centro narrativo da série — o acto de Jamie de matar, visto pela câmara de vigilância — que se torna mais visível a escolha programática do argumento: não nos é dito porquê. Não há confissão, nem reconstituição, nem motivação dramática articulada.

O espectador é mantido fora do momento do crime, não para pensar sobre ele, mas para sentir o seu eco. Quando se volta a estar com Jamie no terceiro episódio já passaram uns meses. E no quarto aparece a voz da sua confissão apenas.

A consequência ocupa o lugar da causa. O gesto torna-se enigma, mas não no sentido trágico da palavra — apenas no sentido funcional.

Jamie mata, não porque tenha razão, pulsão, trauma ou uma ideologia aparente, mas porque a narrativa precisa de uma figura sacrificial silenciosa, até omnipresente que active o colapso dos adultos à sua volta. O corpo do rapaz é o epicentro imóvel sobre o qual todos os outros orbitam em falência — pais, escola, justiça, e até a psicóloga esgotada no final da entrevista do terceiro episódio.

E no entanto, a ausência de causalidade, tão elogiada pela crítica como sinal de maturidade narrativa, parece ser menos uma abertura ao abismo do que uma forma de evitar o pensamento.

Ao recusar mostrar ou interrogar o gesto, impede-se o espectador de exercer a sua interpretação. O silêncio de Jamie não é ambiguidade, é controlo simbólico. E, pior ainda, é uma maneira de deslocar o peso do acto para o circuito emocional da culpa partilhada, onde a pergunta “porquê?” já não importa.

Jamie mata, sim. Mas o que morre com ele é a possibilidade de uma dramaturgia que se arrisque a pensar o crime para lá do seu valor simbólico. E isso, mais do que a própria violência, é o gesto violento da série. Poderia ser uma actitude de provocação mas não é.

Conhecendo minimamente a realidade inglesa, percebe-se que há ainda assim diferenças significativas entre os dois países — sobretudo na forma como a autoridade (ou a sua versão pseudo-autoritária) se exerce, e no peso que o Estado impõe às famílias, com a respectiva violência simbólica e estrutural. Portugal, ao lado dos anglo-saxónicos, parece um peso-pluma no velho índice foucaultiano, já gasto, sim, mas cada vez mais reactualizado com a televisão a servir de panóptico de fundo.

Cada episódio é um plano-sequência: quatro blocos temporais contínuos, quatro actos de uma peça que quer fazer-se passar por realismo, como se esse género ainda pudesse ser mais estilizado, empregando um marketing crítico (se assim poderemos chamar), porque hoje as séries são avaliadas com o mesmo espírito que os produtos no Uber Eats: eficácia, satisfação emocional, identificação rápida envolta em likes e Emojis. 

A crítica deixou de ser campo de pensamento e passou a ser validação simbólica, como se fosse uma extensão do marketing do filme, sempre com excepções, claro.

Mesmo os jornais sérios vivem do clique, da partilha, do engajamento — e isso empurra para o consenso emocional e não para o pensamento incómodo.

Dando uma vista de olhos pela crítica que se tem feito, percebe-se o entusiasmo em destacar a virtude da série por apontar a masculinidade tóxica como o alvo a abater.

Supostamente, a culpa é da Net — encarnada numa conversa entre a mãe e o pai, que comentam as noites de luz azul acesa no quarto de Jamie até de madrugada. Mas a verdade é que a Net é hoje tudo, até o espelho. O próprio Governo,  surge maquilhado na narrativa como uma espécie de vítima inocente de uma abstracção digital incontrolável. Constatamos isso pelo esforço da policia e da impossibilidade da escola com os rapazes bullies a fazer das suas.

Ironia suprema: a série é consumida na mesma Net que parece veladamente demonizar, e ali ficará a repousar como um cadáver bem maquilhado que já fez o seu trabalho num cemitério redundantemente zombie.

Pode deduzir-se que o que se pede é mais regulação urgente e que os governos, coitados, são quase retratados como vítimas impotentes de um mundo abstracto que resvala para a anarquia. Mas a vida não é assim. As coisas estão hoje muito mais ensimesmadas e interligadas ao mesmo tempo, tornando-se a sua decifração tão blindada como um segredo de Estado.

A arte, nesse contexto, parece muitas vezes remetida ao papel do chato funcionalismo público,  só que agora com a emoção da moral do bem, estrategicamente incrustada, como se isso lhe conferisse urgência estética.

A câmara (e aqui começa o problema) não nos interroga — conduz-nos através do seu GPS afinado e convenhamos, fá-lo bem. Do ponto de vista da mise-en-scène formal parece-nos exímia.

Mas por outro lado do ponto de vista intelectual, não parece exigir grande coisa aos espectadores num qualquer desvio que a câmara proponha, nenhum espaço onde se possa habitar a tragédia do ponto de vista da sua ambiguidade ou paradoxo e mesmo do livre arbítrio do espectador (se o tiver).

Philip Barantini, o realizador, sabe dirigir actores e operar uma tensão formal com rigor mas tudo é demasiado operacional e afinado. É o teatro do naturalismo embalado numa estética condescendente com o próprio dispositivo televisivo, embora esta série se armadilhe de argumentos mais cinematográficos e experimentais como o tão falado uso do plano sequência, um doce para a critica especializada que parece já pouco sair à rua sem carpetes vermelhas.

A escolha de filmar sem cortes aparentes cria uma armadilha: a ilusão da continuidade converte-se numa suspensão da complexidade. O tempo avança, mas não se transforma. A narrativa desliza sobre si própria. Às vezes parece não sair nunca do mesmo lugar, um artifício que pelos vistos funciona, ou não fosse esta a série da moda.

Owen Cooper, no papel de Jamie, entrega uma fisicalidade apagada mas com fogachos como no caso da cena com a psicóloga em que invariavelmente se torna violento e ameaçador, como se o corpo estivesse sempre no rescaldo de um trauma que não nos é dado a ver, mas o actor fá-lo eximiamente e com uma representação típica do melhor dos britânicos neste tipo de encenação.

Diria mesmo que no género são imbatíveis.

Christine Tremarco, como mãe, transita entre o desespero e a impotência mas sempre dentro de um rigor que aflige positivamente. Stephen Graham, produtor e actor, encarna o pai com uma contenção que se pretende densa, mas que nunca verdadeiramente acende o fósforo, embora pareça que vai explodir a qualquer momento, para o bem ou para o mal da acção programática.

Destaco ainda a filha, a psicóloga e o polícia que fazem jus à sua escola britânica  de forma brilhante e inspiradora, fazendo até esquecer outros aspectos menos interessantes, e não deixando instalar-se algum tédio inerente a uma obra sem cortes de edição.

Jack Thorne, o criador, propõe um drama social que convoca o espectro de Ken Loach ou Mike Leigh, talvez, mas sem a coragem formal ou o radicalismo ético desses nomes.

Não há confrontação de classes, nem análise de estruturas. Apenas psicologia e culpa. O sistema de justiça juvenil é pano de fundo, mas nunca é questionado. A escola surge como um lugar de passagem, não de formação. Será esta já a realidade? Pode ser, mas nesse caso chega-se ao fim de uma linha cujo dispositivo mediático pretende lavar daí as suas mãos. Já para não falar do comunicacional.

A violência é um sintoma, mas nunca um fenómeno que se queira entender em profundidade. E aqui a série revela o seu coração: não é o mundo que está doente, são os indivíduos.

O trauma substitui a ideologia. Em contraponto Elephant de Gus Van Sant é o exemplo do contrário já que se trata também de um filme de crime numa escola pública mas deixa os espectadores respirar nem que seja para dentro de uma saco de plástico escolhido por ele.

Mais perturbador ainda é o desenho das personagens no plano simbólico. O masculino, em Adolescência, é sinónimo de ausência, ameaça ou fracasso.

O pai é impotente, os colegas são predadores ou cúmplices. O assassino é um silêncio que mata. Em contrapartida, o feminino surge como espaço de escuta, contenção, empatia. A psicóloga, a irmã, a mãe: todas representam zonas de verdade emocional. Esta oposição, além de simplista, revela uma lógica binária que contradiz o próprio realismo que a série reivindica. Não há contradição nos corpos, nem ambiguidade nos gestos.

Cada personagem está condenada ao seu arquétipo. Não há voz que escape ao destino.Não é por acaso que quem mata é masculino e quem morre é feminino. A organização simbólica da série é clara: o masculino como ameaça, silêncio ou falência; o feminino como escuta, dor e verdade emocional. Jamie, o agressor, não tem agência — é um corpo mudo que activa a queda dos adultos. A vítima, ausente, torna-se presença moral. É uma configuração que parece natural, quase inevitável, mas que revela a escolha de alinhar-se com uma narrativa binária, afectiva e funcional. Ao não tornar mais complexa esta divisão, Adolescência não interroga o seu tempo , apenas o confirma, pelo menos na sua percepção estereotipada.

Não deixa de ser curioso que a serie é muito masculina na sua autoria incluindo Brad Pitt que  aparece como produtor executivo.

Esta moralização do enredo seria menos problemática se a estrutura dramática oferecesse zonas de fuga, de interrogação, de ambivalência. Mas não: a série opera como um tribunal sem apelação. Cada gesto é carregado de um subtexto que se quer politicamente correcto como se a culpa fosse definitivamente de Jamie ou da sua família que apesar de tudo aparece como estruturada. Mas o mal surge da normalidade e parece querer enfatizá-lo ao estilo de Hannah Arendt mas sem sentido crítico.

Curioso e também um pouco incompreensível ou mesmo enigmático é a palavra “pedófilo” aparecer escrita na carrinha de trabalho do pai, mesmo sabendo quem a escreve — mais uma vez rapazes prontos a armar sarilho doa a quem doer. A filha boa e generosa é apenas espectadora quando o pai bate num dos rapazes. É a violência explicita a entrar pela família adentro.

O aparato técnico é irrepreensível deixando no ar uma certa magia não sendo óbvio perceber o seu dispositivo perturbador, sobretudo no episódio em que passamos para um ponto de vista do céu como se fosse o de um drone. A fotografia é sóbria, neutra, quase hospitalar. Tudo contribui para uma estética da contenção. Nunca há um verdadeiro risco.

O plano-sequência, que poderia ser um dispositivo de descoberta, torna-se um mecanismo de controlo. 

Funcionou, tendo em conta as audiências e a critica especializada.

Também o Dallas no seu tempo.

A crítica parece unânime no Rotten Tomatoes, ou no Metacritic na critica positiva. 100 por cento. Mas esta unanimidade revela mais sobre o estado da crítica do que sobre a série.

Vivemos um tempo em que a adesão emocional se tornou critério de valor. Se um produto cultural afirma uma causa justa, isso basta para legitimar todos os seus defeitos. A forma tornou-se irrelevante, desde que a intenção seja correcta. O problema é que a intenção, aqui é estranha. Dizer mal ou criticar boas acções moralizantes acarreta os seus riscos no planeta das duas terras. Uma estupidez tramada, que acarreta medo e desordem.

A adolescência — enquanto conceito — é, por definição, uma zona de conflito, metamorfose, risco, transgressão.

Nesta série, é convertida num campo de purificação moral. Em vez de corpo em transformação, temos corpos culpados ou redentores. Em vez de afectos desregulados, temos sintomatologias. Em vez de pulsões, temos discursos.

Nada escapa ao algoritmo narrativo.

Não é preciso pensar, mas empatizar. Não há abismo. Não há interrupção. Apenas a certeza de que estamos do lado certo. E isso, num objecto cultural que se pretende desafiante, é o maior dos fracassos.

Adolescência é também um exemplo acabado da cultura da segurança simbólica. É um produto com vocação de arte. Mas a arte, quando se limita a imitar a virtude, torna-se apenas mais um ramo da indústria — agora com plano-sequência e paleta neutra.

Adolescência é, no fundo, um bom exemplo do que acontece quando a televisão tenta mimetizar algum cinema sem aceitar o seu risco ontológico mas tudo está submetido a uma lógica de continuidade emocional e controlo narrativo.

A televisão, enquanto forma, vive da fidelização e da retenção — e mesmo quando se aproxima formalmente do cinema, não abdica da sua função principal de manter o espectador dentro do regime da identificação, da empatia, do reconhecimento e da compreensão, tudo aquilo que Twin Peaks não tinha, não deixando por isso de ser um sucesso de público e da critica mas num tempo em que a internet era só uma miragem. O cinema, por oposição, pode fracassar e desorientar. Pode fazer o espectador sentir que não está no lugar certo — e, justamente por isso, transformá-lo, correndo sempre riscos ideológicos ou morais.

Alguns episódios de Black Mirror conseguem-no e aqui com mais alguns pormenores e com a intromissão  “diabólica” da tecnologia quotidiana, o primeiro episódio seria magnifico e poderia inscrever-se nessa dimensão mais aberta de Black Mirror que na verdade nunca pretende ser cinema nem usa fluídos cinematográficos pretensiosos que faça a crítica rejubilar.

No final, talvez Adolescência deva ser lida não como um falhanço formal ou conceptual, mas como uma espécie de diagnóstico involuntário da própria televisão contemporânea. Nesse sentido é uma série que tenta emular a densidade do cinema de autor, mas acaba por cristalizar, com rigor quase académico, os limites internos da sua matriz televisiva.

E é aí que se torna interessante: na tensão entre aquilo que pretende ser e aquilo que efectivamente é, dando prazer assistir.

Não se trata de perdoar as suas falhas narrativas, nem de celebrar as suas virtudes técnicas, trata-se de reconhecer que a obra, na sua incapacidade de produzir verdadeiro abismo, revela com clareza o modo como a televisão actual opera: por sedução estética, por empatia emocional, por alinhamento moral. A sua forma — o plano-sequência — que poderia ser instrumento de desorientação, converte-se num dispositivo de segurança.

A sua narrativa que parte de um trauma, nunca arrisca o desconforto real. A sua dramaturgia que invoca o realismo, encena apenas a previsibilidade ética do seu tempo. Queríamos mais e aqui estava uma excelente oportunidade.

Nesse sentido, Adolescência não é uma má série: é uma série transparente à sua maneira. Se tivesse de atribuir uma nota daria 7 (10).

Expõe os mecanismos de contenção simbólica da televisão pós-Netflix, onde tudo é coreografado para parecer radical, mas nada escapa ao regime do reconhecimento. Quase como se quisesse redimir em certos momentos onde a câmara deveria ir para ver mas não vai ficando talvez a sugestão. É evidente que gostaríamos de a ver entrar noutros sítios mais incómodos para o poder. Imaginem Kubrick ou Bergman.

E talvez seja este o seu mérito maior — e mais perturbador: mostrar, com precisão, o que a televisão contemporânea pode ou não pode ser. Mostrar que o risco está simulado, que a densidade está encenada, que a arte está subordinada ao algoritmo narrativo da plataforma.

A Netflix é mais que uma plataforma. É um espaço contemporâneo em que a dislexia e a neurose se evidenciam de forma apesar de tudo transparente.

Adolescência, assim lida, é um espelho: não do mundo, mas do próprio meio que a produz. E nessa revelação inusitada, torna-se politicamente relevante. Porque nos diz até onde a televisão é capaz de ir — e até onde jamais ousará chegar, fazendo assim serviço público de relevância, mostrando-nos o aeroporto onde se pode aterrar em segurança.

E a vida continua… Talvez como nos filmes de Kiarostami.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações: Swimming Pool Project


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