O princípio da osmose em Sebastião Bugalho

A juventude, esse estado paradoxal de graça e de tristeza, em sincronia, constitui, desde Hipócrates de Cós, com confirmação por Galeno e validação por Avicena, uma enfermidade natural irregressível mesmo com cataplasmas, unguentos, mezinhas ou benzeduras, e que somente o tempo consegue sanar e sarar – ou, nos casos mais pertinazes, um punhado de desilusões com similar efeito ao de uma sangria medieval aplicada a um doente febril: não mata mas fragiliza.
Esta é a idade do homem – e da mulher, convenhamos, embora nas donzelas tal maleita pareça menos maligna – em que se crê destinado a reinventar a pólvora, a moral e a roda, tudo pela manhãzinha, antes mesmo do primeiro café da manhã. É a fase da vida em que o imberbe se crê Prometeu, sem suspeitar que as fogueiras que acende iluminarão sobretudo a sua própria vaidade.

Se Aristóteles já dizia, na sua sabedoria e ironia gregas, que a juventude não é um defeito mas feitio; não devo eu – com a proverbial modéstia que me caracteriza – acrescer mais do que ser esta também uma fase marcada por uma profunda e involuntária presunção. Não é por sua malícia, mas pelo simples excesso de confiança na firmeza das próprias pernas, antes sequer de se ter consciência da forte possibilidade de tremideira. Assim, a juventude sempre avançará desabrida e destemida como cavalo sem freio, ignorando que, cedo ou tarde, esbarrará contra a muralha da realidade – essa fortificação verdadeiramente inexpugnável.
Nesta época do homem (e menos das donzelas, convém reiterar, pois estas, por instinto ou sabedoria ancestral, mantêm-se ainda capazes de duvidar), abandonam-se as perguntas humildes da infância — esses ternos “porquê, papá?” que outrora faziam suspirar filósofos e educadores — para se adoptar a arrogante certeza juvenil, verbalizada com aquele timbre seguro sobre aquilo de que não se sabe: “Deixem estar, eu já sei como se faz!”. E assim se iniciam os magnânimos e empolados desfiles, amiúde asininos, de sapiência instantânea.
O jovem moderno, armado de convicções frágeis, mas sempre de voz firme, passa a distribuir certezas como quem oferece panfletos à saída do metro: ninguém pediu, ninguém quer, mas mesmo assim lá estão eles, os axiomas de bolso, com ele, oferecidos com entusiasmo e um ligeiro hálito a energético. Este é um tempo glorioso, concedo, em que se reconfirma a confirmação — prática de repetições solenes daquilo que já se dissera com presunção, apenas para garantir que o eco também subscreve a frase original. Nesse espírito, chega-se a proclamar, com pose digital, que se compreendeu Nietzsche na sua essência através de um vídeo no TikTok convenientemente legendado e, por vezes, com ditos apócrifos.

Neste ponto, entra em cena o jovem Sebastião Bugalho, eurodeputado precoce, jornalista de voz firme, ambição ostensiva e ar de quem já se fartou de trabalhar na vida — apesar de não ter conhecido os tempos de Dickens, nem muito menos ter andado a vender fósforos na infância como a pobre menina do conto de Andersen. Pelo contrário: sem calos nem pele curtida pela fuligem, aos 29 anos foi catapultado dos reluzentes estúdios de televisão para as salas aquecidas de Estrasburgo, onde agora exercita o seu olhar sério e as sobrancelhas opinativas, com alguma dose de superciliosa empáfia, sob os lustres da democracia europeia.
Sebastião, nem de propósito: vejam bem o nome! Que fina ironia da História lusa, oferecer-vos um jovem político em pleno século XXI que, num impulso iminente de eminência sebastianista, ambiciona governar o país antes mesmo de ter aprendido a governar as suas próprias expectativas. Ao contrário do rei desaparecido em Alcácer-Quibir, este Sebastião ressurge não numa manhã de nevoeiro, mas num estúdio iluminado de televisão, diante das câmaras e microfones a anunciar sempre coisas.
E, desta vez, veio Sebastião Bugalho anunciar com toda a solenidade juvenil que a sua maior ambição, neste momento, é “cumprir o mandato e entregar o programa eleitoral” – como quem anuncia um feito heróico digno das mais épicas epopeias onde todos naufragaram. Ora, bem sabemos que programas eleitorais são como testamentos dos velhos nobres: prometem muito, garantem distribuir por todos e no fim só sobra um anel enferrujado e um móvel carunchoso. Contudo, para o nosso jovem Aquiles, que se arrisca a ser um Teseu, cumprir o programa parece garantia suficiente para se eternizar no poder. Convenhamos: um raciocínio tão ingénuo quanto enternecedor, que ignora que, em Política, aqueles que cumprem com escrúpulo as promessas dificilmente são reeleitos, porquanto os beneficiados esquecem depressa, e os prejudicados lembram-se para sempre.

Porém, onde me deleitei mais com Sebastião Bugalho foi na recente sugestão de se considerar já especialmente dotado para enfrentar os doze trabalhos de Héracles na arena política, empunhando a astúcia de Odisseu e o vigor de Aquiles, e dar ainda uns tabefes, por desfastio, num Minotauro nos labirintos de Creta. Ou uma incumbência mais árdua como seja a de primeiro-ministro da República Portuguesa.
E como se preparou? Ora, ao entrevistar, na qualidade de jornalista, cinco primeiros-ministros. Sim, cinco! Não um ou dois, nem sequer quatro – cinco! Sebastião acredita, portanto, que adquiriu a arte de governar por osmose, tal como alguém se tornaria um exímio cirurgião após cinco aulas de anatomia, ou que alguém pudesse pilotar um avião depois de cinco colóquios com hospedeiras de bordo ou mecânicos de aeronáutico, acrescido de um conhaque com o presidente da TAP. Quem sabe, então, se não será assim que o jovem Sebastião crê também aprende ballet – entrevistando bailarinas –, ou se dominar a física quântica – dialogando com cinco físicos – ou se faz um fato – tagarelando com cinco modistas. Esta crença na transmissão directa de talento e do saber através de simples paleio revela uma fé na permeação intelectual tão encantadora quanto perigosa.
A História política é pródiga em exemplos de ímpetos juvenis desmedidos. Alcibíades, o audacioso político ateniense, brilhou intensamente, mas sua impetuosidade conduziu Atenas ao desastre na Sicília. Robespierre, imbuído do fervor revolucionário juvenil, procurou salvar a França com ideais intransigentes, apenas para ver sua cabeça separada do corpo pela mesma guilhotina que tanto promoveu. Gavrilo Princip, um jovem estudante sérvio-bósnio, acreditou que um único disparo poderia redefinir os destinos dos Balcãs; acabou por desencadear a Primeira Guerra Mundial. E não esqueçamos os estudantes de Maio de 68, que, munidos de certezas absolutas, julgavam que bastava demolir o antigo para erguer instantaneamente um mundo perfeito.

Hoje, já não se assaltam bastilhas nem se arremessam pedras; prefere-se ascender aos palcos televisivos e aos auditórios de Bruxelas, onde o maior perigo talvez seja uma tradução simultânea mal-executada. No entanto, a audácia juvenil persiste, embora adornada com gravatas berrantes e discursos eloquentes, desacompanhada da prudência, da experiência, da sensatez e da temperança.
Sebastião Bugalho, na verdade, jamais fugirá às regras universais. Acha-se excepção, mas é somente mais um exemplar de uma longa linhagem de idealistas convencidos de que mudam o mundo ao mudar de penteado ou ao escolher nova fatiota. Ele vê o mundo como uma tela branca onde julga poder pintar com originalidade, sem perceber que esse quadro já foi tantas vezes rabiscado e apagado que há zonas onde a tinta já nem agarra.
Eis que, quando a realidade finalmente se impuser – e ela impõe-se sempre –, Sebastião descobrirá, como outros bugalhos antes dele, que a política é mais do que alhos e não se resume a entrevistas nem se ensina em conversas amenas, mas com golpes profundos de realidade, alianças inesperadas, e muitas desilusões acumuladas. Talvez para esbarrar na realidade, compreenda aquilo que Tácito dizia sobre o imperador Tibério: pode-se conquistar tudo, menos o sossego. Perceberá também que entrevistar cinco primeiros-ministros não o preparou para ser um deles; apenas para entender como também eles falharam, um após o outro.

No fundo, o ciclo da juventude sempre foi aquele que Sebastião Bugalho completará: da excitação inicial ao cansaço, da esperança ao pragmatismo, das promessas feitas às promessas quebradas, do jovem turco a transformar-se num velho janízaro. O jovem Sebastião, como tantos outros antes dele, ainda não sabe que a roda que ele quer inventar, já foi inventada; e que o mundo que ele quer salvar, esse, já está perdido há muito.
Um dia destes compreenderá a mais dura e decisiva das lições: ninguém governa um país sem antes ter sido governado — ao menos uma vez — pelas suas próprias ilusões juvenis; e só depois de ser vencido pela juventude se pode almejar vencer com maturidade. Sem entrevistas; antes com as vistas bem abertas.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.