Carta em defesa das entrevistas (mesmo que parvas) do José Rodrigues dos Santos

Vivemos tempos em que a liberdade de expressão — tantas vezes evocada como bandeira democrática — é posta à prova não por regimes autoritários, mas pelos próprios cidadãos e instituições que, teoricamente, a deveriam defender com unhas e dentes. A recente entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos (JRS) ao secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, transmitida na RTP, reacendeu uma dessas fogueiras mediáticas em que o zelo pela liberdade rapidamente se transforma em zelo pela censura. E por isso, com plena consciência da sua impopularidade, este editorial surge como uma carta em defesa das entrevistas, mesmo que parvas — e em defesa, sim, das entrevistas conduzidas por José Rodrigues dos Santos.
Comecemos pelo princípio: o jornalismo é uma actividade que vive da articulação entre a independência profissional dos seus actores — os jornalistas —, a orientação geral dos seus órgãos — através da direcção editorial —, e os compromissos deontológicos e éticos que os norteiam. Acresce ainda, no caso da RTP, o ónus maior do serviço público, que deveria guiar cada decisão editorial com redobrada responsabilidade e compromisso com os cidadãos. Este triângulo de forças — independência, orientação editorial e serviço público — é não só legítimo como necessário à saúde da Democracia. E é precisamente por isto que devemos rejeitar de forma veemente todas as tentativas de sanção institucional a jornalistas pelo conteúdo das suas entrevistas, por mais infelizes, enviesadas ou absurdas que possam ser.

No caso vertente, é público e notório que a RTP decidiu, no âmbito da cobertura das eleições legislativas, realizar entrevistas aos líderes partidários. Também é claro que essa decisão editorial — legítima e até desejável num canal público — envolveu a escolha de um jornalista para esse trabalho. A escolha recaiu sobre José Rodrigues dos Santos. Independentemente da opinião que cada um tenha sobre o estilo ou o historial de JRS, esta escolha foi assumidamente editorial. Não foi improvisada. E é aqui que entra a responsabilidade da direcção de informação da RTP: se a entrevista correu mal — e há boas razões para considerar que correu —, então é à direcção editorial que se deve apontar o dedo, não à figura do jornalista como bode expiatório mediático.
Quem viu a entrevista a Paulo Raimundo assistiu a um espectáculo insólito: a totalidade do tempo foi consumida num único tema — a guerra da Ucrânia —, tema que, embora relevante, dificilmente se justifica como o exclusivo numa entrevista a um secretário-geral partidário às portas de uma eleição. José Rodrigues dos Santos interrompeu, impôs leituras, tentou empurrar o entrevistado para armadilhas retóricas. Foi uma entrevista mal conduzida, desequilibrada, até manipuladora. Um péssimo exemplo de jornalismo — esta é a minha opinião, tão legítima quanto a de outra qualquer pessoa que possa considerar o oposto.
Mas mesmo admitindo que a entrevista conduzida por José Rodrigues dos Santos é um péssimo exemplo de jornalismo, permanece jornalismo. E por isso deve ser julgado como tal: com critérios internos, por pares, e não com a espada de reguladores que deviam permanecer silenciosos quando se trata de decisões editoriais legítimas, mesmo quando desastradas.
Nesta linha, é absurdo — e perigoso — recorrer à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) ou à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para avaliar se um jornalista agiu bem ou mal numa entrevista. Aliás, basta recordar uma lamentável (e até mesmo errada) deliberação da ERC por causa de uma outra entrevista de JRS no ano passado à agora eurodeputada Marta Temido. A acção de um jornalista, mesmo quando desajustada ou provocadora, está no domínio editorial e profissional, não regulatório.

A missão da ERC e da CCPJ não é avaliar se uma entrevista tem qualidade ou se um jornalista foi correcto: a sua função é garantir o cumprimento de princípios estruturais, como a liberdade de imprensa e a não-discriminação, e assegurar que o exercício do jornalismo decorre dentro da legalidade. Não deve nem pode avaliar jornalistas. Avaliar perguntas, estilo ou pertinência de temas numa entrevista não é, nem nunca poderá ser, missão de qualquer regulador. É missão da crítica, dos pares e, sobretudo, do público.
Aquilo que se impõe, portanto, é o funcionamento de mecanismos internos de crítica e responsabilização — nomeadamente o Provedor do Telespectador e o Conselho de Redacção, que na RTP existe e deve ter um papel activo — e a mobilização do cidadão como agente crítico. O cidadão atento deve exigir da RTP responsabilidade editorial, deve manifestar-se junto da direcção de informação (cujos contactos deveriam ser públicos e acessíveis) e, acima de tudo, deve usar o seu comando de televisão como instrumento de protesto. Quem não tolera o estilo inquisitório de JRS pode — e deve — mudar de canal. O zapping é uma das formas mais poderosas de regulação numa sociedade livre.
Há, pois, uma lição a tirar desta polémica: entrevistas parvas são, antes de mais, entrevistas. Não são crimes, não são delitos de opinião, não são transgressões que exijam a intervenção de polícias do pensamento. São, quando muito, actos jornalísticos falhados. E como todos os actos falhados, devem ser corrigidos por quem os propõe, e não por quem vigia. Devem merecer crítica severa — como esta —, mas nunca punição institucional.
Se permitirmos que reguladores ou organismos administrativos se imiscuam nas decisões editoriais e nos conteúdos de entrevistas, abrimos a porta a algo mais grave: o controle político do jornalismo. E isso é o princípio do fim do jornalismo livre. O erro de um jornalista não pode ser tratado como um delito; deve ser discutido como um erro, revisto como um erro, exposto como um erro. Mas nunca silenciado como um crime.
Em defesa, pois, das entrevistas — mesmo que parvas. E em defesa de José Rodrigues dos Santos, não pelo que fez, mas pelo que representa: o direito de um jornalista errar sem que o Estado o puna por isso. A liberdade de imprensa vive também do direito à má imprensa. Defender a liberdade é aceitar os erros, não aniquilar os que os cometem.