LIVRE para ser obediente

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Brás Cubas|28/03/2025

Fui, em vida, livre. Um homem livre.

Digo-o sem arrogância, mas também sem demasiado orgulho, com a compostura serena de quem já se finou e, por isso mesmo, não mendiga votos nem carpideia por cargos. Vivi, pois, nos meus tempos de Oitocentos, a liberdade como quem vive um velho amor: com entusiasmo juvenil, algumas juras eternas e sucessivas desilusões. Mas devo, antes de tudo, declarar com franqueza aquilo que muitos dos meus contemporâneos preferiam varrer para debaixo do tapete adamascado da moralidade colonial: fui um homem livre… numa sociedade de escravos.

Morrido que fui em 1869, muitos antes da Lei Áurea, conheci de perto a comédia grotesca dos senhores que proclamavam princípios de Humanidade com a mesma mão que segurava o chicote. Assisti, de vivos olhos e ouvidos aguçados, às tertúlias sobre o bem comum, emolduradas pelo som oco das correntes a tilintar discretamente no alpendre. Naquela época, dizia-se que o Brasil marchava rumo à civilização, embora o passo fosse sempre travado por quem ainda julgava que liberdade dependia do uso de sapatos ou do domínio do latim.

A palavra “liberdade” era já então um colar vistoso ao pescoço da hipocrisia: cintilava nos discursos, mas faltava-lhe consistência na prática. Foi assim que aprendi cedo a desconfiar dos que declaram “todos são bem-vindos”, sobretudo quando o “todos” traz asteriscos, rodapés e condições em letra miúda. Essa desconfiança — fermentada na tumba, entre silêncios filosóficos e reminiscências de virtudes proclamadas em praça e negadas à mesa — reencontro-a agora, neste século apressado e digital, no seio do Partido LIVRE.

Sim, o LIVRE, que ostenta no nome a mesma candura de um bordel baptizado “Virtude”, e que concebeu, com zelo quase sacramental, um Regulamento das Primárias Abertas para escolher os seus candidatos ao Parlamento. Aviso já: estais perante um documento enxuto como um catecismo e tão modesto quanto um tratado constitucional: quarenta artigos, dois anexos e uma fé inabalável no poder das regras sobre o espírito.

Nunca, repito, nunca imaginei ver a liberdade transformada em manual de acesso condicionado à cidadania activa, onde cada etapa é uma prova de obstáculos com barreiras invisíveis. Aquilo que se diz “aberto” revela-se fechado com fecho éclair, e o que se apregoa como “participação cidadã” mais parece um baile de máscaras: entra apenas quem trouxer o disfarce com costura ideológica aprovada.

O regulamento, de sorriso casto e pena progressista, proclama (Artigo 2.º) que as primárias se regem pelos princípios da democraticidade, da igualdade de oportunidades e da transparência. É bonito. Mas logo no Artigo 22.º, o verniz estala: surge um Colégio de Validação, composto apenas por membros com mais de noventa dias de inscrição. Eis a democracia condicional — espécie de clube de golfe da política, onde o povo pode espreitar pela janela, mas sentar-se à mesa exige cartão dourado e saudação discreta ao mordomo ideológico. Logo na fase prévia, que serve para não alimentar lirismos.

Como dizia o cardeal de Richelieu — mestre das sombras e das epístolas venenosas — “dêem-me seis linhas escritas pelo mais honesto dos homens, e encontrarei nelas motivo para enforcá-lo”. No LIVRE, basta meia dúzia de votos rejeitados e uma abstenção com perfume táctico para aniquilar uma candidatura. E a isso chamam “processo aberto”.

Nada disto me espanta. Já vi, no meu tempo, senhores defenderem a abolição da escravatura enquanto discutiam, entre goles de vinho do Porto, quantos negros poderiam levar consigo como “bagagem sentimental”. A diferença? No século XIX ainda havia vergonha. Hoje, há regulamentos.

E de regulamentos sabe o LIVRE. Elevou a arte da domesticação do voto a um patamar quase litúrgico. O seu método de votação preferencial (Artigo 31.º) distribui pontuações aos candidatos como se estivéssemos não num plebiscito democrático, mas num campeonato soviético de ginástica rítmica. O primeiro lugar vale 10 pontos, o segundo 7,5, o terceiro 5,63, o quarto 4,22, o quinto 3,16 e o sexto 2,37 — números tão cirurgicamente decimais que parecem saídos do compêndio de um contabilista esteta.

Sejamos justos: há uma beleza singular neste apego à Matemática. A democracia, no LIVRE, não é “um homem, um voto”; é “um homem (ou mulher, ou qualquer identitário registado), milhentos votos” — desde que saiba usar uma progressão geométrica com razão de 0,75 e tenha prática em formatar células no Google Sheets. A aritmética como expressão de justiça, ou, se preferirdes, a esperança democrática reduzida a uma fórmula com função condicional.

Essa sequência limpa, racional, quase poética, lembra as grelhas salariais da função pública, os escalões do IRS ou, vá lá, a classificação dos melhores amigos de um comité central algo carente. É a ilusão de mérito traduzida em escala descendente — onde todos são dignos, mas uns são mais dignos do que outros, e os últimos só entram se trouxerem flores para o camarada da recepção.

Aliás, escalonar candidatos por ordenação ordinal — primeiro, segundo, terceiro — é expediente de espíritos previsíveis, mais afeitos a tabelas do que a ideias. Muito mais nobre, filosoficamente robusto e literariamente sedutor será adoptar uma ordenação cardinal, que não se limite a indicar o degrau da escada, mas procure medir o fulgor existencial da ambição (ou a languidez resignada da sua ausência) que cada candidato exala, como perfume velho a denunciar intenções novas.

Assim, um 10 representa o eleito com perfume ministerial e olhar presidencial. Um 7,5 já o remete àquelas secretarias de Estado que tratam de “inovação em sustentabilidade arco-íris”, com pasta irrelevante, mas pose de quem lê Os Ensaios de Montaigne ao pequeno-almoço. O 5,63 confere ao visado mérito suficiente para presidir uma câmara de concelho médio, onde ainda há rotundas por baptizar e estátuas de figuras locais por inventar. Descendo na escala da glória, temos os vereadores sem pelouro definido (4,22), seguidos dos assessores encarregados de gerir a agenda dos ditos vereadores (3,16), e dos motoristas que, além de conduzir, também entregam flores no Dia da Mulher e sabem sorrir para selfies (2,37).

Mais abaixo, surge o militante fiel que aparece em todas as fotografias de campanha, aplaudindo com entusiasmo sinceramente forçado (1,78) — muitas vezes sem saber exactamente quem está a aplaudir, mas com o coração no lugar certo: à esquerda do peito e à direita do cacique. Na elite das franjas políticas, encontramos os seguradores de faixas em eventos públicos (1,34), os coladores de cartazes com cola fora de prazo (1,01), os contadores de palmas para ensaios da arruada (0,76), e, por fim, o épico distribuidor de canetas em feiras locais, que anseia por uma selfie fortuita com um vice-candidato suplente (0,57).

Qualquer valor abaixo de 0,43 é puramente cerimonial, reservado a parentes envergonhados que, embora tenham jurado nunca se entranharem em urnas, se comprazem em comparecer ao sarapatel das cruzinhas para dar “aquela força” e recebem como retribuição um abraço institucional e um folheto mal dobrado. Eis, pois, a aritmética da participação: uma espécie de meritocracia centesimal onde os sonhos se resumem a casas decimais e a esperança cabe — com estilo e fórmulas condicionais — numa célula formatada em Arial 10, alinhada à esquerda.

E, como se não bastasse, a cereja do Excel está no facto de que, se fordes apenas um cidadão simpático, que subscreveu um manifesto, e não um membro ou apoiante registado, então o voto será de menor valia. Assim sentencia o regulamento: “A soma das pontuações atribuídas a cada candidatura pelos subscritores não pode exceder 50% da soma das pontuações de todos os Membros e Apoiantes do LIVRE.” Traduzindo: um homem, um voto — desde que seja nosso homem. Eis o sufrágio censitário do século XXI: já não se exige propriedade ou alfabetização, basta fidelidade ideológica regulamentada.

Lembra-me os Estados Unidos pós-escravidão, que inventaram testes de literacia e taxas de voto para os negros, tudo em nome da ordem e da democracia. Também me vem à memória a gloriosa União Soviética, onde o voto era livre, desde que se escolhesse o candidato único indicado pelo comité central. A liberdade, dir-me-ão, é sempre relativa. Mas há relatividade… e há relativismo com papel timbrado.

E depois vem o Acordo de Compromisso, no Anexo II. Uma peça jurídica de afecto condicionado, onde o candidato promete respeitar a linha do partido, consultar os órgãos internos antes de exercer pensamento e, caso discorde, submeter-se com elegância. A autonomia, aqui, é um pássaro com coleira.

Resta-me falar-vos, minhas queridíssimas eleitoras e meus caríssimos eleitores, do Sumo Sacerdote desta liturgia regulamentar, o erudito das certezas suaves, o Dr. Rui Tavares, fustigado pelos fantasmas da Dra. Katar e do Dr. Paupério. Homem de biblioteca arejada e alma encadernada, que cita filósofos em três línguas e escreve como quem medita com a mão, ele é o tipo de dirigente que acredita, e honestamente, que o poder jamais o corromperá porque o exerce com verniz ilustrado. Mas já vi padres pregarem o jejum com o prato cheio de doces — e não é a citação de Rousseau que elimina o pecado da gula política.

Tavares, com sua brandura iluminista e olhar de catedrático fatigado, tem dirigido o LIVRE, depois de se ter chamuscado com liberalidades democráticas, como se fosse uma república de seminário, onde todos podem entrar… desde que comunguem da doutrina e não levantem muito a voz durante a missa. A divergência, aqui e agora, é tratada com incenso e exclusão discreta. E o pensamento livre? Ora, esse cabe num parêntesis no rodapé do programa.

Não posso, por isso, deixar de recordar outro Rui, mas Barbosa: “A pior ditadura é a do poder invisível.” Porque nesta democracia tão “aberta” do LIVRE — entre aspas e com senha —, aquilo que mais impressiona nem é o controlo explícito, mas o zelo com que se disfarça a mordaça com fita colorida.

A liberdade, no LIVRE, é um salão nobre com porta aberta e segurança à entrada. Podeis entrar, desde que vos apresenteis com o regulamento na mão e a cabeça baixa. E nunca vos esqueçais: para o LIVRE, levai convosco lupa, calculadora, cartão de sócio e a certeza de que ser livre, ali, é um privilégio concedido — não um direito inato. Ali sereis livre para ser obediente.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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