A denúncia contra Bolsonaro, ou Estará Xandão impedido de julgá-lo?

Assim como o Sol que nasce todos os dias, toda a gente decente do país estava à espera da acusação de Jair Bolsonaro e do seu bando de golpistas. Depois de terem tentado acabar com o nosso regime democrático para instaurar uma ditadura, era apenas uma questão de tempo até que o Procurador-Geral da República o acusasse, bem como parte dos militares que se dispuseram a trair a farda e a pátria nessa empreitada. Agora, enfim, começa o jogo judicial.
Na última semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para 25 de Março o início do julgamento sobre a admissibilidade formal da acusação contra Jair Bolsonaro e os seus aliados. A acusação inclui crimes como associação criminosa, tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. São mais de oito mil páginas de provas, incluindo mensagens de WhatsApp, registos financeiros e depoimentos de militares arrependidos, nas quais se revela como um bando de arruaceiros tentou desferir um golpe de morte contra a democracia brasileira.

Enquanto o STF avança, os apoiadores de Bolsonaro intensificam a retórica de vitimização. Nas redes sociais, circulam vídeos de manifestações em que seguidores juram “não aceitar a prisão do presidente”. Como de hábito, repete-se a mesma ladainha de sempre: “perseguição judicial”, “querem acabar com a direita neste país” e outras parvoíces do género. A isso soma-se a invocação indefetível do sentido deturpado da palavra “narrativa”, para desqualificar o meticuloso trabalho da Polícia Federal, ao reunir provas abundantes da conspiração que conduziu o país às portas de um golpe de Estado consumado.
De todas as “alegações” levantadas pelos bolsonaristas para tentar iludir a sua seita de seguidores, uma, contudo, é capaz de fazer erguer a sobrancelha mesmo entre quem não é suspeito de simpatias com a extrema-direita. Trata-se do suposto impedimento de Alexandre “Xandão” de Moraes para julgar o caso.
Como se sabe, exige-se de todo e qualquer juiz imparcialidade, isto é, o distanciamento necessário para julgar um litígio sem se inclinar de antemão para qualquer dos lados. Prevendo isso, o legislador estabeleceu duas hipóteses em que a parte pode recusar o julgamento por determinado magistrado: suspeição e impedimento. Se ambas se assemelham no propósito (afastar um juiz do processo), diferenciam-se na forma como se manifestam e na facilidade com que se prova cada uma dessas hipóteses.

Na suspeição, as hipóteses são subjectivas (amizade ou inimizade com uma das partes, por exemplo). É necessário, além de alegar a suspeição, provar que ela existe de facto e influencia a imparcialidade do julgador. No impedimento, as causas são objectivas (ser cônjuge de uma das partes ou ter actuado no processo como advogado, por exemplo). Basta demonstrar que a hipótese prevista existe para que a lei presuma, independentemente de qualquer outra prova, a falta de isenção do juiz para atuar no feito.
No caso do golpe planeado pelos bolsonaristas, uma das etapas da destruição democrática previa a morte do presidente eleito (Lula da Silva), do seu vice (Geraldo Alckmin) e do presidente do TSE (Alexandre de Moraes). Logo, a ser Xandão uma potencial vítima do delito, aplicar-se-ia o inciso IV do artigo 252 do Código de Processo Penal, segundo o qual:
“O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que […] for parte ou diretamente interessado”.
Logo, Xandão não poderia julgar o caso, correcto?
Não. Errado.
Primeiro, quando os extremistas bolsonaristas planeavam matar Xandão, Lula e Alckmin, não se tratava de praticar três assassinatos isolados. O objectivo não era propriamente eliminar essas três figuras por desavenças pessoais ou políticas. Absolutamente. A ideia era a de remover os três principais obstáculos institucionais à consumação do coup. O crime aí investigado não é exactamente de homicídio, mas de golpe de Estado. A verdadeira vítima desse delito, portanto, não é nenhum desses três, mas a própria sociedade, que teria sido privada do direito de escolher os seus representantes eleitos.

Segundo, mesmo que houvesse inimizade entre Xandão e Bolsonaro, isso por si só não seria suficiente para afastá-lo do caso. O artigo 256 do CPP estabelece que a suspeição “não poderá ser declarada nem reconhecida quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”. Foi exactamente isso que Bolsonaro tem feito e repetido desde 2019, quando o inquérito contra as chamadas fake news foi instaurado. Não nos esqueçamos de que, em 2021, Bolsonaro reuniu uma multidão na Avenida Paulista, em São Paulo, para insultar o ministro, chamando-o de “canalha”, e declarar que, como presidente, não cumpriria mais as suas ordens. Logo, não será por aí que se sustentará uma eventual suspeição de Xandão.
Haverá quem defenda que, neste caso específico, independentemente das questões técnicas, não conviria, de qualquer modo, a participação de Alexandre de Moraes no processo. Do ponto de vista puramente leigo, sempre se pode argumentar que seria melhor não ter um ministro tão directamente afectado pelos factos narrados na acusação a participar do julgamento. Contudo, duas considerações haveriam de ser feitas em contrapartida a essa visão.
A primeira é a de que o Supremo é um órgão de cúpula; não há nenhum outro tribunal judicial acima dele. Se os golpistas, por exemplo, planeassem matar todos os onze ministros do Supremo, nenhum deles poderia julgá-los? Os golpistas ficariam, então, impunes?
A segunda é que existe um brocardo latino milenar segundo o qual nemo auditur propriam turpitudinem allegans. O que, em bom vernáculo, significa dizer que ninguém pode alegar em seu benefício a própria torpeza. Caso se admitisse que Xandão estivesse impedido por ter sido descoberto um plano para assassiná-lo, doravante todos os criminosos do país planeariam matar todo e qualquer magistrado que julgassem ser desfavorável à sua absolvição. Não é necessário ser formado em Direito para imaginar o tamanho do problema de política judiciária e carcerária que tal entendimento implicaria.

O caso transcende fronteiras e o exemplo norte-americano deixa claro o tamanho do problema que políticas de apaziguamento ou a ineficiência do sistema judicial podem causar quando se deixam golpistas impunes. O julgamento da tentativa de golpe de Estado no Brasil não é apenas (mais) um processo penal. É um teste à capacidade do Brasil e daquilo que se convencionou chamar de “Ocidente” de confrontar o seu passado recente e expurgar do jogo democrático aqueles que atentam contra ele.
Alexandre de Moraes não está impedido. Com a sua habitual coragem, terá a oportunidade de provar, mais uma vez, que a Justiça não se curva a ameaças. Espera-se que conduza o processo com a seriedade devida. Não estará em jogo apenas o futuro dos acusados. Estará em jogo o futuro do país.
Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa