CORREIO MERCANTIL
A verdade bem instruída no divã da Ordem dos Psicólogos

Há quem proclame — e eu concedo, com o desapego próprio de quem já não teme o contraditório, nem a opinião das gentes vivas — que a Verdade é uma flor tenra e delicada, cujo perfume, exsudante e ambaríneo, todos julgam conhecer, embora poucos sejam os que a cultivaram sem lhe pisar as pétalas à primeira conveniência, ou inconveniência. Sempre me pareceu, além disso — ou por isso — que essa tal flor tem menos de rosa e mais de erva daninha: nasce onde menos se espera, prolifera entre escombros e, quando arranca elogios, é porque servirá para algum jardineiro de ocasião.
A Verdade, melífluas donzelas e lignosos cavalheiros, não é propriamente uma virtude; é um instrumento. Desde tempos imemoriais que a Verdade não mora no mesmo lugarejo da razão, mas onde repousa o poder. É preciso ser muito filósofo ou muito ingénuo — circunstâncias que, na prática, são quase similares — para crer que a Verdade resplandece na neutralidade de um axioma ou brilha no gume da lógica, ou cintila no compasso geométrico de um silogismo bem traçado.

Não. A Verdade é aquilo que, por norma e raras excepções, o Poder decide chamar verdade. A Verdade, por vezes, coincide com a verdade. Acasos da vida. Efémeros. Transitórios. E é quando esse mesmo Poder começa a rotular de Mentira, e demais anatemas — como sejam: inverdades de impostores, boatos de intriguistas, balelas de embusteiros, mexericos de coscuvilheiros, calúnias de difamadores, heresias de renegados e desinformação de hipnotizadores de otários — tudo aquilo que dele não provém ou não acomoda, é porque, muito provavelmente, a verdade já lhe fugiu pelas frinchas da toga.
Estas reflexões assaltaram-me — ou, para sermos mais precisos, instilaram-se-me no espírito como vapores de uma lucubração tardia — enquanto me encontrava entregue à modorra sublime do meu jazigo de mármore, bocejando da eternidade como quem observa, com olímpico desdém, o tropel dos vivos. Foi então que me chegou às mãos espectrais um opúsculo vindo desses mesmos reinos terrenos: um livrinho lavrado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, baptizado com ternura pedagógica Vamos falar sobre desinformação. Um título tão acolhedor, convenhamos, como um divã de consultório decorado em bege terapêutico, onde se oferece chá de camomila ao paciente enquanto, com cortesia clínica, se lhe vão serrando as ideias.
Li o documento, crente — num primeiro e indulgente impulso — tratar-se de uma patranha do tradicional Primeiro de Abril, talvez um exercício lúdico de psicoterapia narrativa. Mas rapidamente suspendi o meu cepticismo festivo e adoptei atitude de severa atenção — não por virtude da leitura, mas por efeito colateral da televisão — quando deparei com a bastonária da augusta Ordem, uma certa Sofia Ramalho, a anunciar na CNN Portugal que a desinformação pode provocar “problemas de saúde mental”, sobretudo se alguém ousar acreditar que quatro tabletes de chocolate reforçam a memória.
Endireitei-me no meu túmulo — tão altaneiro quanto os mármores consentem — e corri a folhear o guia, imbuído do mesmo espírito circunspecto e lúdico com que, em vida, costumava ler as bulas papais: não esperando nelas encontrar o Céu, mas deliciando-me com a arte de quem finge possuir-lhe o mapa, traçado com tinta de dogma e caligrafia de equívoco.

Logo nas primeiras páginas, a desinformação é apresentada com gravidade inquisitorial, como um pecado moderno, um contágio sem micróbio, uma peste do intelecto, garantindo-se, de forma solene, que “ninguém, independentemente do seu nível de escolaridade, idade, género ou experiência digital, está a salvo da exposição”. Só esta proclamação já infunde temor — quase tanto como um édito da Inquisição espanhola na véspera de um auto-de-fé.
Dizem então os psicólogos, neste pequeno breviário secular, que a desinformação se afigura — com ares de coisa demoníaca, saída das furnas de Belzebu — como “qualquer conteúdo ou prática que contribua para o aumento de informação falsa, não validada, pouco clara e/ou que tenha a intenção de afastar as pessoas dos factos e da verdade”. Torquemada, creio piamente, disse algo semelhante — e se não o disse, então estarei já, ai de mim, a desinformar-vos, minhas amigas e meus amigos, pecado do qual me penitencio com a solenidade possível a um espectro, e prometo, de ora em diante, só errar se com maior elegância.
Em todo o caso, atentem nas palavras do catequismo: factos e verdade — substantivos com maiúscula invisível. Não se explicam, não se discutem. São dados como certos, como se tivessem descido do Monte Sinai em PDF validado por uma comissão científica. Ora, esta ânsia de definir o real por decreto psicológico seria apenas cómica, se não fosse também sintomática. Os psicólogos — ou pelo menos os desta Ordem, novos senadores da República do Bom Senso — julgam agora poder decidir o que é falso, o que é erróneo, o que é pernicioso, e quem deve ser gentilmente corrigido, com empatia e literacia mediática, para que regresse à Santa Igreja da Informação Credível.

O método, devo dizê-lo, é engenhoso: em vez de fogueiras, usam fact-checkers; em vez de exorcismos, sessões de esclarecimento; e, em lugar de castigos, um manto de mansidão cívica, como quem consola uma criança que acredita no Pai Natal. Recomenda-se que não se diga a palavra desinformação a quem dela padece, pois isso pode ser rude. Deve antes usar-se boatos, confusão, ou, quem sabe, erro emocionalmente compreensível. E acrescenta-se que se deve escutar com atenção, sorrir com indulgência, e partilhar fontes “de confiança” — essas fontes que, por coincidência mística, são sempre as mesmas que aprovam relatórios públicos e justificam medidas que, em certo dia, a História há-de rir de barriga cheia.
Confesso que não resisti ao encanto do acrónimo CONSPIRE, uma invenção deliciosamente pueril para explicar o pensamento conspirativo. Cada letra representa um sintoma da doença mental que acomete todos os que ousem desconfiar do discurso oficial: contradição (cruz credo!), suspeição extrema (abrenúncio!), intenção nefasta (Vade retro, Satana!), desconfiança pertinaz (Jesus, Maria, José!), manias da perseguição (Santa Madre de Deus!), fugídio da evidência (ai Belzebu!) e reinterpretação da aleatoriedade (Fuge, daemon incantatus!) — e outras excentricidades que, em tempos idos, faziam a glória dos exegetas, filósofos, cronistas e inquisidores.
Em tempos, estas doenças mentais teriam consequências. Diógenes, por exemplo, seria internado com urgência; Heraclito seria forçado a frequentar oficinas de pensamento positivo, por insistir na impermanência das coisas e arruinar o bem-estar emocional dos jovens filósofos; Sócrates seria sujeito a uma medida de coacção epistemológica: proibido de fazer perguntas em espaços públicos sem prévia validação pedagógica, em vez da toma da cicuta; Platão, se ousasse propor a existência de um mundo das ideias, seria encaminhado para acompanhamento cognitivo-comportamental por evidências de dissociação da realidade empírica; e então Nietzsche, coitado, esse acabaria sob vigilância algorítmica por discurso potencialmente desestabilizador, enquanto especialistas da Ordem dos Psicólogos explicariam ao público que essa estória do “Deus está morto” é apenas uma metáfora perigosa, susceptível de, se levada a sério como verdade, causar danos irreparáveis na espiritualidade do cidadão mediano.

Ah! A alegria que me deu o acrónimo CONSPIRE somente foi suplantada pela leitura das sugestões pedagógicas para salvar amigos e parentes contaminados pelo vírus da mentira. Sim, vírus — porque, para a Ordem dos Psicólogos, a desinformação é um patógeno mental que se espalha de feed em feed, provocando erupções de cepticismo e febres de desconfiança. Para tratar o infectado, não há antídoto, mas diálogo construtivo: escutar com empatia, fazer boas perguntas, nunca discutir (porque discutir reforça a crença), e usar ‘o tom certo’. Se possível, jogar com o ‘leproso’ um jogo digital chamado Bad News, onde se aprende a criar fake news para não cair nelas. Eis no que os psicólogos se tornaram: pedagogos do delírio performativo.
E como não rir do fervor com que a Ordem dos Psicólogos indica os mecanismos de denúncia? O seu guia disponibiliza até ligações para denunciar posts, vídeos, comentários — tudo aquilo que possa ferir a sensibilidade epistémica das almas frágeis. A censura, que antes vinha de botins, chega agora por interface, com instruções passo-a-passo. O novo delator é um cidadão exemplar com acesso à internet e aversão ao contraditório.
Mas nada me divertiu tanto quanto a beatificação dos fact-checkers. São apresentados como monges copistas da era digital, sempre diligentes a desmentir as heresias com rigor, imparcialidade e aquele leve perfume ideológico que apenas os ingénuos não reconhecem. Polígrafo, Prova dos Factos, Observador — cada qual com a sua bula, a sua régua moral e a sua missão redentora.
É claro que toda esta cruzada contra a desinformação se apresenta como científica, neutra, sanitária. Mas não há nada mais dogmático do que quem crê que a Verdade surge no bolso do colete. A própria Psicologia, ciência das hesitações humanas, torna-se neste folheto um instrumento de ordenamento espiritual: uma máquina de doutrinar com voz doce e design colorido.

Antigamente, os psicólogos limitavam-se a estudar a mente e a compreender os vivos — agora desejam moldá-la, mas já nem é com a subtileza de um Freud, é com a sanha de um funcionário da Direcção-Geral da Saúde. O paciente já não é aquele que sofre, mas alguém que crê no que não deve. E o psicólogo, longe de o escutar, passa a reeducá-lo, suavemente, com jogos didácticos e denúncias preventivas. Vejam bem: uma pedagogia do consentimento revestida de verniz clínico.
Ah, minhas equilibradas donzelas e firmes cavalheiros! Se me dissessem que esta Ordem dos Psicólogos era, em Portugal, apenas uma corporação zelosa a produzir materiais de sensibilização para as escolas, eu consentiria com um encolher de ombros. Mas não. Estes senhores e estas senhoras querem mais: querem policiar o imaginário, classificar opiniões, doutrinar pais e professores, ensinar às criancinhas que verdade é o que passa nas televisões e que dúvida é coisa de gente malformada.
Eis, pois, o retrato hodierno do vosso mundo. De um lado, a verdade como instrumento do poder. Do outro, a mentira como disfarce da dúvida. No meio, os psicólogos com brochuras e jogos online, tentando convencer-vos de que, entre acreditar e pensar, o mais seguro é sempre acreditar — desde que seja na fonte certa, no fidedigno fontanário do Poder.
O zelo profiláctico da Ordem dos Psicólogos faz-me lembrar o meu ‘irmão’ Simão Bacamarte, mas agora o alienista traja jaleco clínico e interface digital, e está com ganas de tratar preventivamente todo o país, não da insanidade, mas dos pensamentos impróprios. Como em Itaguaí, também entre vós a razão passou a ser monopólio daqueles que se acham sãos e verdadeiros. E se a desinformação é hoje o novo delírio, o novo pecado, a nova peste, então todos — cedo ou tarde — serão diagnosticados.

Não tarda, haverá um consultório nacional do juízo, com ficha individual, escala de perigosidade epistémica e lugar marcado numa nova Casa Verde — desta feita, pintada com as cores suaves da empatia e da saúde pública, mas com as janelas bem trancadas, não apareça algum cidadão duvidando do boletim informativo.
E lembrem-se, por fim, das palavras do Bacamarte — ou se não o disse, o Polígrafo, essa publicação independente financiada pelo Zuckerberg, tratará de me meter pimenta na língua, mas que seja a dedo-de-moça:“Entre loucos e sãos, quem primeiro grita Verdade é, quase sempre, o que traz o manicómio no bolso.”
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.