VISÃO DA GRAÇA

Bolsas: ‘Trump crash’ na era da normalização do mal

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Elisabete Tavares|07/04/2025

O colapso das Bolsas mundiais nos últimos dias ficará na História, junto a outros como o da crise financeira de 2008 e o pânico causado pelas medidas da pandemia de covid-19. Começou no dia 2 de Abril, com a imposição de novas tarifas aduaneiras pelos Estados Unidos, o receio de uma guerra comercial e de uma recessão económica.

Os jornais e TVs dedicam espaço e tempo a este tema com a fome de um tubarão que sente o ‘cheiro’ o sangue a pairar na água. Nas redes sociais somam-se os gráficos e publicações que tentam adivinhar o que vem a seguir, conquistando ‘likes‘ e partilhas.

Afinal, é uma hecatombe digna de ter o seu próprio nome: ‘crise das tarifas’ ou ‘Trump crash‘, talvez. É só observar os gráficos (disponíveis no final deste texto) e percebe-se que a onda de vendas que atinge sobretudo activos de alto risco, como as acções, é forte e muito real. Isto apesar de, no médio e longo prazo, os principais índices bolsistas acumularem ganhos gigantescos.

Os ‘pobres’ dos grandes fundos e bancos de investimento vendem activos de maior risco, desfazem posições e, ‘coitados’, somam mais-valias chorudas. Os que vivem da aposta na queda de títulos, enriquecem e celebram com os lucros obscenos. Os ‘desgraçados’ detentores de Bitcoin choram o tombo da rainha das criptomoedas, que ‘apenas’ valorizou 1000% nos últimos cinco anos.

Começa a falar-se na eventual descida de taxas de juro pela Reserva Federal nos Estados Unidos e põe-se alguma água na fervura. A ver se o ‘sell-off‘ acalma. É provável que surjam acordos nas tarifas, incluindo com a União Europeia. E que se evite a guerra comercial.

Olho com pasmo para as notícias e análises sobre este ‘crash‘. Olho com o mesmo pasmo para o ‘choque’ que muitos dizem ter sentido após assistirem a uma série televisiva que está na moda, sobre um adolescente assassino.

Vivemos na era em que partes do nosso mundo se tornaram num grande jogo desumanizado. A vida de muitos adolescentes e jovens apenas espelha esse fenómeno. (Veja-se o caso da violação de uma menor em Loures, por três jovens ‘influencers’ que publicaram vídeos do crime na Internet e ninguém os denunciou, apesar de terem milhares de visualizações).

Pacman arcade game

Afinal, vivemos num mundo em que a pornografia está disseminada e é aceite como normal, mesmo a que brutaliza e subjuga, reforçando o conceito da mulher-objecto. Vivemos num mundo em que o jogo online é publicitado em larga escala, viciando milhões. O lucro vale tudo.

O que isto tem a ver com o actual ‘crash‘ dos mercados?

Quer se queira quer não, este colapso é uma profunda correcção num sistema inflaccionado artificialmente e depois de anos de máximos históricos em grandes índices bolsistas. Máximos alcançados graças a políticas que criaram uma economia artificial e sem substância, assente em dinheiro impresso por bancos centrais. E assente num mundo de zeros e uns. Em que os bens alimentares e a dívida de países inteiros são meros ‘activos’ num jogo a ser jogado por grandes ‘players‘ (e, cada vez mais, por máquinas, computadores, em busca de lucro).

Vivemos num mundo em que é aceite que homens e mulheres, adultos, que grandes grupos e fundos financeiros apostem e lucrem com a queda de activos, incluindo acções de empresas em bolsa. Vivemos num mundo em que é considerado normal haver nos mercados de capitais produtos derivados, derivados de derivados. Tudo autorizado e regulado por governos, supervisores e reguladores.

Vivemos num mundo em que a habitação é sobretudo um ‘activo’ para trazer lucro a carteiras de grandes fundos de investimento. Vivemos num mundo em que governos, incluindo em Portugal, criaram políticas que transformam casas onde deviam viver famílias em objectos valiosos a ser jogados em ‘jogos de imobiliário’. Tudo legal.

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Vivemos num mundo em que se normalizou a ideia de que tudo isto é normal. Que é legal. E pelo meio criam-se ‘selos’ como o de ‘sustentável’ e ‘ético’ que são publicitados no LinkedIn e usados pelos fundos e bancos para vender produtos de investimento a aforradores e especuladores.

A economia e os mercados de capitais formam hoje uma tapeçaria que inclui reguladores e governos, que legalizam as práticas e impõem esta forma de vida obscena e desumana. E inclui investidores que se prestam a trocar a alma por dinheiro, mesmo sem saberem em que estão a colocar as suas poupanças.

Onde colocamos o nosso dinheiro, a nossa atenção, o nosso amor, diz muito de cada um de nós e dos nossos valores e prioridades.

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Dir-me-ão que esta é uma visão puritana e utópica do mundo, da Economia e das finanças. Mas que sentido faz um mundo, em que a Economia e as finanças são desumanas e cujo principal objectivo é o lucro puro, a ganância? Um mundo em que a notícia é o ‘crash‘ após anos de recordes e lucros sucessivos e não a ausência de políticas para regrar o que já não serve a Humanidade.

O que é, para mim, mais curioso, por estes dias de ‘crash‘ das Bolsas, é ver liberais, libertários, pessoas de esquerda e de direita, todos muito irritados com as quedas nos mercados. Uns porque aproveitam para partilhar o ódio por Trump e outros porque perdem dinheiro, incluindo nas criptomoedas (perdem, se venderem; até venderem não perdem nem ganham nada, na realidade).

Por estes dias, penso no empresário que decidiu, um dia, há muito tempo, abrir o capital da sua empresa a investidores porque precisava de capital para investir. Penso nesses investidores que decidiram tornar-se accionistas de uma empresa a passar a ser um bocadinho donos de um negócio que poderia criar mais postos de trabalho e trazer sustento às famílias dos trabalhadores.

E compreendo porque empresários retiraram as suas empresas de Bolsa.

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As notícias hoje serão sobre o colapso dos mercados nos últimos dias. E sobre a culpa de Trump e das tarifas que impõe a importações, à sua política proteccionista. Os posts nas redes sociais serão sobre o ódio a Trump e a culpa de Trump.

Não haverá notícias sobre a ganância. Nem sobre como os índices bolsistas conseguiram chegar aos níveis a que estão. Nem como pouco de humano já têm muitas das práticas financeiras e de investimento consideradas legais em muitos países ocidentais.

Não haverá nas notícias nada sobre como vivemos na era dos vampiros modernos. Vivem e prosperam, não na sombra, mas debaixo das luzes da ribalta, respaldados por leis, governantes e reguladores que um dia trabalharão nos seus bancos e holdings como ‘chairman‘ ou apenas como ‘consultores’.

man wearing watch with black suit

De crise financeira, em crise financeira. De ‘crash‘ em ‘crash‘. De série em série na Netflix. Assim a Humanidade vai caminhando. Com os pés a pisar o tapete manchado de fome e do sangue das vítimas da desumanização do Mundo, de guerras e da pobreza.

As tarifas de Trump, este ‘crash‘ bolsista, são apenas os sintomas da doença que atinge o mundo. E a cura todos sabemos qual é. E está em cada um de nós, que também somos consumidores, investidores, eleitores, pais.

Pode começar por se perceber que este ‘crash‘ não foi o primeiro e não será o último. E que as notícias do dia, fugazes, que cobrem os assuntos pela rama, pelo seu mediatismo, escondem a origem do mal. Dos males do mundo. E enquanto se fingir que não se vê a crescente desumanização do mundo — seja nos mercados, nas finanças, na Economia, na política que persegue o migrante, na indústria da pornografia, no vício do jogo — a cura não chegará.

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Porque não vivemos num mundo virtual. Nem somos feitos de bits e bytes e pixels. De zeros e uns. Não somos um número. Um código de barras. Um avatar. As empresas também não. Nem as casas onde moram pessoas. Por muito que se normalize isso, há um mundo real onde vivemos e existimos.

Que este mundo seja dominado por agentes e políticas assentes na ganância, no lucro, na vaidade e no sofrimento de muitos é algo que não podemos continuar a permitir. Que os preços dos alimentos e das casas seja influenciado por especuladores, é algo que não podemos permitir. Porque pode ter-se normalizado isso. Mas não é normal. É desumano. E inaceitável.

Elisabete Tavares é jornalista

Gráficos com a evolução dos principais índices bolsistas norte-americanos, europeu e português:

Nos últimos cinco dias, o Dow Jones, o Nasdaq 100 e o europeu Stoxx 600 desceram mais de 10% e o português PSI-20 recuou quase 10%. Apesar do actual colapso, os principais índices bolsistas acumulam fortes ganhos no médio e no longo prazo. / Fonte: Google/Morningstar

Gráfico com a cotação do ouro (em libras/onça):

Fonte: Gold.co.uk

N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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