11.058 ÓBITOS EXCEDEM MESMO O PRIMEIRO MÊS DA PANDEMIA EM 2020

Março de 2025 foi o mais mortífero desde 2005. É uma má notícia? Não

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Pedro Almeida Vieira|08/04/2025

Foram 11.058 óbitos registados no passado mês de Março. Em termos absolutos, o valor impressiona: neste século, apenas foi superado uma vez, no ano de 2005, e tem de se recuar a 1951 para se encontrar outro Março acima da fasquia das 11 mil mortes neste mês de transição entre o Inverno e a Primavera. O valor deste ano até ultrapassa inclusivamente o de Março de 2020, quando a pandemia de covid-19 começava a ganhar expressão e inquietação pública, e durante o qual faleceram 10.582 pessoas em território nacional.

Porém, por mais inquietante seja esse ‘flash’ temporal de 31 dias, o número de óbitos não pode ser interpretado como sinal inequívoco de anomalia. Na verdade, no contexto mais alargado do último Inverno – aqui definido como o quadrimestre que vai de Dezembro de 2024 a Março de 2025 – se se quiser apntar alguma anormalidade, então é à pouco usual ‘estabilidade letal’ do Inverno de 2024-2025, o período do ano em regra mais mortífero em Portugal.

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Ao contrário do que é habitual em muitos anos anteriores, em que se registam picos abruptos num ou dois meses — muitas vezes em Dezembro e Janeiro ou em Janeiro e Fevereiro — seguidos de quebras marcantes em Março, o mais recente quadrimestre apresentou uma mortalidade notavelmente uniforme, com todos os meses a ultrapassarem os 10 mil óbitos e com uma diferença de apenas 857 mortes entre o mês mais e o menos mortífero.

Esta variação interna é a sexta mais baixa dos últimos cinquenta invernos, o que demonstra não apenas a ausência de surtos concentrados, mas também uma persistência de risco distribuída ao longo de todo o Inverno. Esta regularidade é rara e pode ocultar o verdadeiro impacto da estação fria: quando não há um pico, há menos alarme — mas a mortalidade, diluída e silenciosa, soma-se com o mesmo peso.

Esta uniformidade explica a razão para Março de 2025, apesar de ter uma mortalidade historicamente elevada, não representar aquilo que se chama um ‘outlier’ estatístico com preocupantes sinais epidemiológicos. Em linguagem comum, isto significa que o número de mortes, embora superior à média, não ultrapassa aquilo que seria previsível à luz da evolução demográfica e da sazonalidade das últimas décadas.

Mortalidade no Inverno (quadrimestre Dezembro do ano N a Março do ano N+1) nos últimos 50 anos (LINHA AMARELA) e linha de tendência (TRACEJADO VERMELHO). Fonte: INE e SICO. Análise; PÁGINA UM.

Para se perceber a relevância desta avaliação, o PÁGINA UM analisou os dados de uma forma mais sistemática. Considerando todos os períodos Dezembro-Março desde 1974, a mortalidade média situou-se em cerca de 40.745 mortes por quadrimestre. O total observado entre Dezembro de 2024 e Março de 2025 – as tais 44.107 mortes – fica cerca de 0,91 desvios-padrão acima da média, o que, numa leitura estatística convencional, é sinal de um valor elevado, mas não invulgar, e nem fugindo à tendência das últimas décadas.

De facto, os dados das últimas cinco décadas apontam para um crescimento consistente da mortalidade no quadrimestre Dezembro-Março, com uma subida média anual de cerca de 160 mortes, mesmo considerando os picos de mortalidade entre 2020 e 2022, decorrentes tanto da mortalidade por covid-19 como pela gestão da pandemia. Esta evolução tem raízes sobretudo na alteração da estrutura etária da população portuguesa, cada vez mais envelhecida, e nas condições de saúde associadas a essa realidade.

Assim, um Inverno com mais de 44 mil mortes já não surpreende – é, antes, o ‘novo normal’. Aliás, tem ultrapassado essa fasquia em todos os últimos seis Invernos. E desde o Inverno de 2011-2012, inclusive, contam-se nove anos a superarem esse valor, embora apenas um (2020-2021) subindo acima de 46 mil. Nesse Inverno, a mortalidade ascendeu a quase 55 mil óbitos, coincidindo com o pico da pandemia, uma vaga de frio em Janeiro de 2021 e com o colapso do Serviço Nacional de Saúde.

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Curiosamente, a estabilidade intermensal da mortalidade do recente Inverno pode ser explicada por um fenómeno conhecido como “efeito harvesting” (literalmente, colheita), muito estudado em demografia e Saúde Pública. Quando os meses de Dezembro e Janeiro são especialmente severos em termos de mortalidade – como acontece com surtos fortes de gripe ou vagas de frio – é comum que os meses seguintes apresentem valores inferiores à média, porque uma parte da população mais vulnerável já sucumbiu antes.

No Inverno de 2024-2025, pelo contrário, os meses de Dezembro (11.905 mortes) e Janeiro (10.201 mortes) não atingiram níveis extremos, o que terá deixado um maior número de pessoas vulneráveis vivas até Março – mês em que, por razões naturais, ou por agravamentos clínicos cumulativos, acabaram por falecer.

Neste contexto, pode-se afirmar que, embora Março de 2025 tenha sido historicamente elevado, ele não foi anormal – mas sim o reflexo de um Inverno prolongadamente suave, sem grandes picos nem grandes quebras, como aliás se confirma pela ausência de descidas abruptas em Fevereiro.

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Ainda assim, há um dado que deve merecer atenção redobrada dos responsáveis pela Saúde Pública. Quando se analisa o valor global do quadrimestre em função da tendência linear esperada, constata-se que a mortalidade até ficou ligeiramente abaixo do valor previsto para o ano de 2024 – cerca de 644 mortes abaixo da linha de tendência.

Este desvio, ainda que pequeno, pode indiciar uma acumulação de vulnerabilidades que não se expressaram durante o Inverno, mas que poderão tornar-se críticas nos meses seguintes. Ou seja, as ondas de calor mais intensas podem ser particularmente letais para os mais idosos e doentes crónicos.

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