De bigode e cartola, todos os escritores são pardos

A Posteridade, essa velha senhora distraída que tropeça nos seus próprios degraus de mármore, tem por hábito confundir nomes, feitos e narizes. Já a vi — juro-o sobre os bigodes do meu avô — confundir um busto de mármore com um urinol de faiança, a máscara mortuária de um filósofo com uma forma de pudim, e a primeira edição de um tratado político com um livro de fiado do taberneiro. Nada me espanta, portanto. Já passei por coisa pior: por exemplo, já me vi enterrado em papel impresso com elogios desnecessários ou ser ressuscitado por um pasquineiro digital.
Mas aquilo que agora se deu é um novo capítulo na epopeia lusitana da confusão — essa arte tão portuguesa de baralhar, dar de novo, e chamar Cultura ao engano.

Soube, por murmúrios e cartazes, que o Jornal de Letras, em número dedicado ao bicentenário da vinda ao mundo de Camilo Castelo Branco, ilustrou a ocasião, em frontispício, com o retrato — vejam só! — de Eça de Queirós, farfalhudo bigode e cartola a preceito. Ora, para quem sabe, confundir Camilo com Eça é como brindar à saúde do Papa com um cálice de absinto; é como oferecer a São Jerónimo um exemplar da Playboy; é como convidar o Diabo para crismar crianças em Fátima. Há erros, há desleixos e há heresias — e este do Jornal de Letras é um pouco dos três, o que se mostra pior do que um multiplicado por três.
Disse-se, num gesto de benevolência, que o erro é “humano”, como se o humano justificasse tudo, até confundir um prosélito da misantropia com um partidário da polilogia. Ora, entre Camilo e Eça há mais diferença do que entre o vinho verde e o conhaque. Um foi azedo de nascença; o outro foi espirituoso por destilação.
Camilo, se bem o recordo, era homem de pasmoso fel, de penas ensopadas em ácido, de ironia que feria como navalha enferrujada — fazia cócegas com lâmina. Eça, por seu lado, era um homem do sorriso oblíquo, do florete perfumado, do insulto em latim florido. E juntos só se encontraram nas livrarias e nos mal-entendidos.
Não admira, portanto, que uma pobre alma na redacção do Jornal de Letras, ao vasculhar imagens para decorar a efeméride, tenha tomado o bigode de um pelo do outro. Mas uma coisa é o equívoco, e outra a inépcia revestida de hábito.

E aqui permitam-me um desvio — pois o meu espírito, sempre dado a viajar por entre páginas e panteões, relembrou uma carta. Não qualquer bilhete de amor, mas uma carta de Eça a Camilo, escrita nos tempos em que os escritores se esfaqueavam com pensamentos ou palavras e assinavam as cicatrizes com estilo.
Consta que, em 1887, um ferido Camilo dera um urro público — achara-se alvo de uma crítica velada. E Eça respondeu em carta, embora sem a enviar, com a pena embebida em mel e veneno, dizendo mais ou menos assim:
“Suponha que um dia, numa novela, V. Ex.ª descreve, com o seu vernáculo e torneado relevo, certo animal de longas orelhas felpudas, de rabo tosco, de anca surrada pela albarda, que orneia e que abunda em Cacilhas… E suponha ainda que, ao ler essa colorida página, eu exclamo, apalpando-me ansiosamente por todo o corpo: ‘Grandes orelhas, rabo tosco, anca pelada… É comigo!’ Que diria V. Ex.ª, meu prezado confrade?
V. Ex.ª balbuciaria aturdido: ‘Eu não sei, eu vivo longe… Se as suas orelhas são assim longas, e se o albardão o despelou, há realmente concordância… Mas, na verdade, creia que, mencionando esse animal venerável, não me raiou no ânimo a mais tênue, remota intenção…’ Assim, embaraçado e surpreso, diria V. Ex.ª. E assim eu digo.
V. Ex.ª deve conhecer melhor do que eu, que sou distraído e vivo longe, as capas dos meus livros; se V. Ex.ª, para atrair a multidão, nelas colou, ou consentiu que os seus editores colassem, esse rótulo: romance realista — por não poderem legalmente adorná-las com esse outro mais cativante: romance obsceno — então decerto aquilo é consigo.
Mas a intransigente verdade força-me a confessar que, escrevendo esse período da carta a Bernardo Pindela, eu não pensava no autor da Corja. Se eu quisesse acusar dessa abjecta concessão, às exigências da venda, um homem que há trinta anos é ilustre na literatura portuguesa — teria escrito o nome todo de V. Ex.ª, sem omitir um só título. Há personalidades a quem, por isso mesmo que são fortes, não se alude timoratamente e de longe. Já deste modo se pensava na corte de El-Rei Artur. ‘Se queres falar de Percival, dize bem alto: Percival, e tira a espada.’ Assim gritava esse cavaleiro, flor dos bons, na velha cidade de Camerlon, uma tarde em que havia algazarra e ciúmes junto à Távola Redonda.
Não se trata, decerto, aqui, de compridas espadas a desembainhar. Mas não deixa de ficar bem a um débil homem de letras, como eu, o seguir essa lição de lealdade e valor dada pelo possante homem de armas Percival.”
E continua, neste estilo, até ao fim, que eu resumo assim: “Meu caro, se descrevo um burro, e se o senhor se reconhece no animal, a culpa não é minha.” Eis aqui a lusitana arte da bofetada com luva de culta renda.

Ora, esta carta tem tudo que ver com o retrato trocado. Porque, se Camilo ficou ofendido por palavras de Eça que talvez nem fossem para si, que dirá agora que lhe roubaram a face e lhe impuseram o busto do seu mais arguto rival?
Dir-se-á que o espírito do Jornal de Letras foi possuído pelo mesmo demónio que inspirou os discípulos do romantismo tardio: a pressa, a falta de leitura, o revisor em teletrabalho e o estagiário multitarefa. Ou então — e talvez seja pior, e ainda mais provável — dir-se-á que já ninguém distingue Eça de Camilo porque ninguém os lê.
Este engano, respeitáveis leitoras e condignos leitores, não é somente um erro de legenda; é uma metáfora visual do estado da Cultura lusitana: confunde-se o que é oposto, nivela-se pelo ruído, concede-se palmas ao eco. E depois, admiram-se que os deuses da Literatura — esses malandros velhacos — vos virem as costas.
É que há erros e há erros. Mas há também os enganos que revelam verdades. E aqui está uma: o Jornal de Letras troca Camilo por Eça como Portugal troca erudição por aparência, verdade por rótulo, pensamento por pressa. Eça escreveu que a guerra entre idealistas e realistas era já tão enfadonha como a dos gregos diante de Tróia; pois o Jornal de Letras conseguiu dar-lhe nova vida — e com um retrato errado, ainda por cima.

Ah, a ignorância, doce mãe de tantos estagiários e directores apressados! És tu quem sopra ao ouvido do designer gráfico que todos os escritores com bigode e cartola são a mesma entidade etérea: uma espécie de Santo Antão da literatura portuguesa. És tu quem faz com que o revisor não leia, o editor não pense, o coordenador gráfico não confirme. És, enfim, a deusa tutelar de muito jornalismo moderno — não o jornalismo de investigação, mas o de “encaixe rápido”, “fecho da edição” e “manda assim que já são sete”.
E, no entanto, como não rir? Camilo, esse vulto trágico, que se cegou de tanto ver, acabou eclipsado por Eça, que via longe demais. Camilo, que escrevia como se escrevesse com sangue; Eça, que escrevia como quem mistura perfume francês com vinagre do Douro. Serem opostos — estéticos, espirituais, conjugais — torna o engano mais saboroso, embora estejamos mais perante uma minhota broa de milho de São Miguel de Seide barrada com o chantilly de François Vatel.
Mas nem tudo é desatino: há aqui um retrato fiel da Pátria Lusitana, dessa entidade sebastiânica onde tudo se confunde, tudo se adia, tudo se baralha. E, nesta barafunda, Camilo e Eça tornaram-se, assim, cá pela vigésima primeira centúria após Cristo, em irmãos siameses, gémeos univitelinos do eruditismo ilustrado: quando não há dinheiro nem tempo nem leituras, a Cultura vira sopa instantânea — basta juntar água morna e uma ilustração errada.

Na Antiga Grécia, confundiam-se deuses com mortais. Na Idade Média, santos com heréticos. Agora, em Portugal, Camilo com Eça. É o que chamo de metempsicose gráfica — a alma de um escritor no corpo do outro, graças a um estagiário apressado e a um director sonolento.
Mas não sejamos cruéis. Já dizia Confúcio — ou seria outro? — que é mais fácil confundir homens do que corrigir sistemas. A imprensa já só vive do improviso, da urgência, do copianço elegante. E hoje, mais do que nunca, vive também da escassez: escassez de dinheiro, de leitores, de rigor. O erro do Jornal de Letras é sintoma, não doença; é tosse, não tuberculose — embora seja uma tosse com escarro.
Que venha o próximo número do Jornal de Letras — talvez celebrando uma qualquer efeméride do Fernando Pessoa com a foto do Fernando Pessa, esse grande cançonetista que adoptou o pseudónimo de Tony Carreira.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.