OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

VAR: 3 centímetros medidos por um engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico

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Pedro Almeida Vieira|09/04/2025

Sou benfiquista, como se sabe — e no momento, no calor do momento, posso até ficar satisfeito com um erro de arbitragem que benefica o meu clube, mas a sensação de injustiça não me agrada depois da espuma dos dias.

Porém, já me irrita deveras, e logo no momento, que, para se eliminar ou reduzir os erros dos árbitros de futebol. se tenha introduzido o VAR [Video Assistant Referee] para decidir foras-de-jogos de poucos centímetros.

Pela segunda vez em poucos meses, o Sporting esteve envolvido em dois foras-dejogo por três centímetros, detectado com o rigor de um cirurgião oftalmologista a operar num sismo. Primeiro, em finais de Fevereiro, saiu beneficiado por um golo invalidado ao Gil Vicente ao minuto 88, que daria o empate numa elimimnatória da Taça de Portugal. Na passada segunda feira, saiu-lhe a fava contra o Braga, com um golo invalidado ao avançado Gyokeres por um milímetro fora de-jogo de três centímetros.

Aquilo que um incrédulo como eu pensa, sem pestanejar — e, já agora, informa-se que o acto de pestanejar dura 100 a 400 milissegundos, ou seja, 0,1 a 0,4 segundos —, é que o universo VAR rege-se por uma física muito própria, onde a justiça se mede à régua de costureira e a verdade desportiva é desenhada a lápis óptico.

Não sendo a arbitragem de futebol o meu forte — fui um sofrível árbitro de basquetebol algures nos finais dos anos 80 e princípios de 90, não passando da terceira divisão —, uma pergunta física se impõe: com os meios actuais, pode o VAR detectar um fora-de-jogo real de três centímetros? A resposta, para desgosto dos crentes na santidade da tecnologia, é não — a menos que se confunda precisão com ilusão. E é aqui que a ironia entra em campo.

O sistema VAR trabalha com imagens captadas a 50 ou 60 fotogramas por segundo — o que significa que a cada 16 a 20 milissegundos temos uma nova imagem. Agora façamos um pequeno exercício de física primária (sim, aquela que não cabe na ficha técnica da Liga): um jogador a correr a 30 km/h percorre cerca de 17 centímetros entre dois frames. O Cristiano Ronaldo, no seu auge, sprintava a 34 lm/h. Ou seja, a incerteza temporal, só por si, pode ser bem superior a 15 cm. Mas eis que o VAR — como se fosse um oráculo digital com vista de falcão e paciência de relojoeiro — afirma com convicção que o jogador estava três centímetros adiantado. Exactamente três. Não dois, nem quatro. Três. Uma precisão que faz corar os fabricantes de microscópios.

Mas o problema não é só o tempo. É também o espaço. Para desenhar a linha de fora-de-jogo, é preciso saber exactamente em que milésimo de segundo a bola foi tocada (com um frame que pode ter variância de 20 ms), identificar a parte mais avançada do corpo do jogador atacante que pode legalmente jogar a bola (ombro? joelho? cotovelo com intenção?) e alinhar isso com o penúltimo defensor, que por acaso também está a correr, a saltar, ou a escorregar. É uma coreografia de erros sistemáticos mascarada de infalibilidade digital.

No fundo, o VAR tornou-se uma espécie de engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico. Traça linhas rectas sobre jogadores curvos, determina momentos exactos em acções fluidas, e depois oferece-nos o resultado como se fosse uma epifania científica. O futebol, esse, vai aceitando. Com fé. Porque, como se sabe, três centímetros é um escândalo quando se trata de um dedo do Goykeres, mas uma irrelevância estatística quando se trata do orçamento do Benfica.

Ironia das ironias: se a Liga (e os senhores da FIFA e UEFA) tivesse vergonha, já teria assumido que um fora-de-jogo inferior a 10 ou 15 centímetros é, na prática, uma ficção óptica com pretensões de exactidão matemática. E introduzia uma margem de erro, validando as jogadas em que essa distância (10 a 15 centímetros) se aplicasse. Mas não. Prefere-se manter o teatro da infalibilidade, como se o VAR fosse um algoritmo sacrossanto e não um operário de consola a clicar num ombro mal ampliado.

No fim, sobra uma certeza: o VAR está para o futebol como a fita métrica está para a poesia. Não resolve, não encanta, e raramente acerta no espírito do jogo. Mas continua lá, à espera de outro golo de três centímetros para anular — e outro clube para “prejudicar” hoje e “beneficiar” amanhã. Com milimétrica imparcialidade. E eu só queria ver o Benfica campeão sem ser por causa do VAR… ou à custa de empurrar dívida, que um dia pode estoirar, com a barriga, através de sucessivas emissões de obrigações de milhões e milhões.

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