ARRANHADELAS
A justa denúncia de um lamentável caso de auto-censura no PÁGINA UM

Confesso, meus caros, que hesitei em escrever este texto. Primeiro, porque sou gato. Segundo, porque sou gato de princípios. E terceiro, porque sou o Serafim, um nome que impõe — entre um bocejo e outro — uma certa solenidade aristocrática. Mas há limites para tudo, inclusive para a paciência de um gato de dezasseis anos, preto e branco como a verdade e a mentira, habituado a ver o seu dono, o excelentíssimo Pedro Almeida Vieira, anunciar-se a quem o queira ouvir (e também a quem não queira) como homem de coragem, independência elevadíssima, arauto da liberdade de expressão, e paladino da luta contra a censura e a pressão.
E não minto. Não sou dado a calúnias. O Pedro é isso mesmo: é dos poucos humanos que conheci (embora não tenha conhecido muitos, porque sofro de agorafobia) que se ergue com elegância contra os ventos da hipocrisia e os relinchos da ignorância. Mas… há um “mas”; há sempre um “mas”. E esse “mas” merece uma arranhadela pública. Porque se não for eu a fazê-la, quem a fará? Não pactuo com incoerências, mesmo que venham do meu abrigo humano favorito — e único.

Ora, passo a expor o meu reparo: num daqueles dias em que o Pedro estava escandalizado (e com razão) com mais um exercício de indigência estatística da mui ilustre Entidade Reguladora para a Comunicação Social — sim, essa mesma, a ERC, que, com pose de gravidade institucional, achou perfeitamente razoável que, numa sondagem eleitoral, 400 entrevistados dessem origem a uns portentosos 1032 votos declarados “de certeza” — o meu dono redigiu um editorial demolidor. Uma peça de prosa virulenta, sem concessões, como deve ser. Um texto onde não deixou pedra sobre pedra. A burrice — digo, a ingénua elasticidade aritmética — dos digníssimos cinco membros do Conselho Regulador foi exposta com um brilho quase clínico.
Até aqui, tudo bem. Eu ronronava de orgulho enquanto o via rever vírgulas com um olhar de inquisidor matemático. Mas eis senão quando… no momento de ilustrar visualmente a dita burrice estatística e institucional, o Pedro — pasmem-se! — acanhou-se. Auto-censurou-se. Cortou uma das ilustrações preparadas. Uma que, à minha felina sensibilidade, era de uma justeza simbólica irresistível: mostrava, de forma expressiva, os cinco membros do Conselho Regulador da ERC com umas encantadoras, e cientificamente apropriadas, aurículas asininas.
Ora, vamos por partes, como diria o cirurgião do bom gosto:
— Eram burros reais? Não.
— Era ofensivo? Só se a verdade o for.
— Era ilegal? Apenas para quem considera o humor um crime hediondo.

Não consegui perscrutar os motivos da auto-censura. Talvez um sobressalto momentâneo de diplomacia. Talvez um receio difuso de parecer demasiado… gráfico. Ou, quem sabe, uma espécie de espasmo editorial, um reflexo condicionado ao espectro da queixa que, por estas bandas lusas, se move com mais rapidez que um rato no rodapé da história.
Mas não, não havia mal nenhum na ilustração. Era, aliás, uma homenagem à iconografia clássica da pedagogia popular. As orelhas de burro são um símbolo universal da ignorância convicta, da presunção em sabedoria que ignora a aritmética, da solenidade que mascara o disparate. Negá-las é negar a própria Zoologia Moral — uma ciência que, aliás, os humanos deviam estudar com mais afinco.
E, sendo assim, cá estou eu, Serafim, a exercer um duplo direito: o da liberdade de expressão e o da justiça felina. Considerando que o Pedro Almeida Vieira é, felizmente, um defensor genuíno dos seus comentadores — publica tudo, mesmo o que o contraria, e nunca rosnou a uma crítica bem redigida — eu, Serafim, declaro:
Primeiro, esta minha Arranhadela Pública como forma de censura contra a auto-censura.
Segundo, anuncio a revelação da ilustração auto-censurada, a bem da clareza, da liberdade e, sobretudo, do rigor taxonómico.

Porque aqueles senhores e aquelas senhoras — que, infelizmente as há, apesar de possuírem pernas mais aconchegantes — merecem cada milímetro daqueles apêndices auditivos. E note-se: não falo em tom pejorativo. “Orelhas de burro” é, neste caso, um termo técnico, um conceito cientificamente sólido para caracterizar comportamentos que combinam lentidão intelectual, incapacidade de reconhecimento de erro e uma resistência heróica ao ridículo.
Se me perguntarem se voltarei a publicar estas Arranhadelas, direi que sim, sempre que a honra do jornalismo, da estatística ou da Zoologia Moral assim o exija. Se me acusarem de ser um gato irreverente, insolente ou até panfletário, aceitarei com elegância. Mas ao menos ninguém me acusará de cobardia. Isso deixo para os humanos que cortam as orelhas das imagens com medo que os burros sintam ofensa.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.