CORREIO MERCANTIL

Francisco Louçã quis ‘slay’; saiu ‘cringe’

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Brás Cubas|11/04/2025

Mostra-se infalível: sempre chega o instante na vida de um ideólogo – sobretudo se esquerda, amiúde sofredor de uma hiperactividade doutrinária crónica – em que o espírito, esse traidor de causas maiores, deixa de clamar por revoluções e passa a sussurrar por relevância. Tal como os alquimistas do século XVII que, fracassando na transmutação do chumbo em ouro, acabaram por se consagrar à nobre arte de fabricar poções para a virilidade — entre elas o infame pó de cantárida e o elixir de testículos de cabra pulverizados em vinho da Dalmácia —, também os revolucionários em fim de ciclo se entregam às sublimações do ego, buscando nas fórmulas da juventude uma espécie de tisanas para a longevidade política.

Já nem se trata de instaurar o comunismo ou outra utopia de catálogo, mas de assegurar uns míseros quinze segundos de atenção — com música de fundo, legendas a piscar e, se possível, um filtro de Instagram ou do X que amacie as rugas ideológicas. Nem que, para isso, se troque o Manifesto Comunista — ou outra relíquia do arsenal panfletário — pelo manual do bom criador de conteúdos virais, numa transição tão abjecta que faria corar o próprio Conde de Saint-Simon… ou ao menos levá-lo a pedir moderação em francês clássico.

Nessa travessia do ideal para o idoso e daí para o odioso — que é, no fundo, uma forma trágica de dialéctica —, grandes nomes da esquerda contemporânea reinventaram-se e tornam-se agora figuras burlescas de um teatro que já não se representa nas praças, mas nos ecrãs verticais dos telemóveis. Onde outrora se discutia a luta de classes e a mais-valia, discute-se o alcance, o engajamento, o timing de publicação e a correcta conjugação de expressões anglo-lusitanas com apelos ao proletariado, embora a malta nova já ignore do que se trata. Não admira, pois, que, em certos corredores da política nacional, se oiça já um sussurro anacrónico: “X ou morte!” — parafraseando, com os devidos ajustes de época e de ridículo, a velha consigna dos radicais do século passado.

E eis que surge, neste contexto, apanhado nas redes sociais, em campanha eleitoral, o ressuscitado trotskista e economista Francisco Louçã — já curricularizado com o cargo de conselheiro de Estado e de conselheiro do capitalista Banco de Portugal — sentado numa poltrona de couro, como um reformado que aguarda o boletim meteorológico, debitando com fôlego declinante frases em catadupa que parecem saídas de uma sinapse entre a Avenida Almirante Reis e o Urban Dictionary: “Late stage capitalism está giving…”, ouvi-o, por exemplo. O que está giving, ninguém sabe. Mas o que está suffering, disso tenho a certeza: a dignidade da linguagem política e a memória de Karl Marx.

A seu lado, ou em plano de fundo, em momices e memices, oferece-se um Che Guevara de gafas em estágio Erasmus, de camisa de militante vintage, encarnando o revolucionário de subscrição mensal no Spotify, em busca de luz própria. Sem o conhecer, arrisco que, ideologicamente, balanceia entre o trotskismo artesanal e o romantismo guevarista de café, onde o socialismo se serve, agora, com espuma de aveia. Sorri, ri e baba-se, com água na boca, e parece crer estar a protagonizar uma revolução. Talvez estética. Talvez apenas salivar.

Que diriam Engels e Marx perante este teatro de pose e pastiche? Talvez recordassem, com melancolia, o tempo em que escrever exigia pensamento — e não apenas um microfone, uma câmara frontal e uma fluência básica em slang para slay, mesmo que se seja cringe. Em vez das “condições materiais de existência”, temos hoje “ondas de vergonha performativa”; em lugar do “modo de produção”, o omnipresente “conteúdo de campanha”; em substituição da “consciência de classe”, floresce a “auto-narrativa de marca pessoal”; onde se lia “alienação do trabalho”, lê-se agora “colapso emocional em regime de auto-superação”; e onde se gritava “proletários de todo o mundo, uni-vos!”, sussurra-se hoje “subscreve e partilha, se gostaste”.

Tudo isto enunciado num português de retalhos, pespontado por anglicismos de segunda mão, como se o proletariado já não habitasse a fábrica, mas o feed; já não empunhasse a foice, mas o filtro; e já não marchasse em greves, mas dançasse reels com indignação coreografada.

A justificação para esta deriva é sempre a mesma: “Temos de falar a linguagem dos jovens.” Mas a linguagem dos jovens, como a dos deuses gregos, exige um certo tipo de sacralidade. Não se improvisa um Hermes calçado com mocassins nem se encarna um Dioniso com articulações emperradas. Há, portanto, uma fronteira subtil e fina entre dialogar com a juventude e fazer figura de avô a dançar breakdance em casamentos. E Louçã cruzou essa linha com o mesmo vigor com que um idoso atravessa uma passadeira mal sinalizada: de forma trôpega, inconsciente e sob risco de atropelamento moral. Ou mesmo mortal.

Francisco Louçã durante a sua ‘perfomance’…

A tragicomédia de Francisco Louçã é que já não pretende ser jovem por dentro — isso requer vitalidade real —, contentando-se apenas em parecer jovem da boca para fora. Eis o socialismo com autotune; o marxismo com stickers; o trotskismo com merch; a revolução com filters. E no centro da encenação está um senhor que, em vez de se retirar com a altivez de um velho leão político, decide permanecer na ribalta como um gato de TikTok: inofensivo, repetitivo, e agora à espera da próxima palhaçada. Perdão — da próxima “intervenção estética de engajamento lúdico e participativo”.

Não se pense, no entanto, que isto se trata somente de mera decadência pessoal. Não: isto é sintoma de uma esquerda que, órfã de causas robustas, aderiu ao delírio do espectáculo, da juventude eterna, da política tornada entretenimento para massas distraídas. Trótski foi expulso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, acabando com uma picareta na cabeça, por conspiração contra o Partido. Hoje seria expulso do Insta apenas por não usar hashtags.

Por isso, a questão que se impõe — e escrevo com certa amargura socrática de quem já viu tudo, e até isto — é a seguinte: desde quando a política de ideias se rendeu à estética do ridículo? Quando se passou a crer que o caminho para o poder passaria pela capacidade de dizer slay com um cartaz da Liga Comunista Internacionalista ao fundo? Quando foi que a análise materialista se substituiu por coreografias palermas?

Talvez, no fundo, seja esse o verdadeiro late stage capitalism, invocado por Louçã na sua palhaçada para o suposto eleitorado jovem: um estado em que até os seus críticos mais ferozes se transformam em caricaturas vendáveis, em velhos profetas convertidos em influencers da decadência. Aliás, nestes meus anos de eternidade, constato que o capital venceu não ao oprimir os seus inimigos, mas ao torná-los ridículos. A revolução, a existir, já nem será televisionada — no máximo, será partilhada em stories, com emoji de punho erguido e trilha sonora de trap.

Louçã, outrora marxista de gabinete e chicote retórico, exibiu-se como uma caricatura de revolucionário de feira, vendendo engajamento com a mestria de um vendedor de figos secos nos antigos armazéns do Chiado. Mas aquilo que me espanta nem é o desvio — quem nunca tergiversou na vida que atire a primeira selfie. Aquilo que ofende, a mim, ao Camões, ao Padre Vieira e até ao Marx e ao Trótski (que se encolheram de vergonha, daqui do Além), é a tentativa de parecer jovem de ideias por fora quando, pelas mostras de idiotice, já se apodreceu por dentro.

E, quando o Alzheimer vier — porque virá, e a todos apanhará, se não lhes aparecer a “minha” pneumonia ou outras maleitas fatais —, levará não só as memórias das lutas verdadeiras, mas também este último episódio de farsa. E, nesse dia, Louçã talvez olhe para o vazio e pergunte: “O que é que estava mesmo giving?”. Ao que Marx, do além, responderá: “Nada, camarada; apenas estavas a passar vergonha.”

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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