ARRANHADELAS
Concerto à borla significa: ‘todos pagam e poucos gozam’

Pois é, estimados bípedes contribuintes — sim, vós, que ainda vos orgulhais de possuir polegares oponíveis e folhas de vencimento. Aqui vos escreve Serafim, gato de 16 anos, a caminho dos 17, reformado dos serviços de caça, residente em casa limpa, almofada de cetim e taça de porcelana. Um verdadeiro símbolo do que Portugal mais admira: a boa vida sem contrapartidas. E, sim, eu sei, vós dizeis que tenho sorte. Mas não, meus caros humanos, sorte têm vocês em poder olhar para mim e aspirar — ainda que só em devaneios — à liberdade que é ser gato urbano no Portugal do século XXI.
A verdade é esta: nós, felinos citadinos, já não temos ratos para caçar nem telhados para patrulhar. A nossa presença nas casas é puramente simbólica. Trocámos os celeiros por sofás IKEA, os ossos de sardinha por patês de frango com redução de fígado, e a independência por um plano vitalício de mordomias sem recibo verde. Em troca? Um ronron ocasional, umas voltinhas em torno das canelas e aquele olhar penetrante e calculado, para vos convencer de que sim, gostamos de vós.

Mas falemos de vós, comunidade laboriosa. Vós, que todos os meses vedes o vosso salário ser assaltado por IRS, IVA, IMI, IUC, ISP, e por aí fora, enquanto fingis que está tudo bem, porque vos oferecerem, de vez em quando, umas festarolas. O humano moderno já não quer justiça — quer entretenimento. E se o entretenimento for “de borla”, então que venham os foguetes, os brindes, os selfies com o presidente da câmara.
Exemplo: com pompa e circunstância anuncia-se: “Dino D’Santiago vai celebrar o 25 de Abril com concerto à bola”. Grátis! Uma palavra mágica. Uma senha de entrada para o mundo encantado da ilusão fiscal. O povo rejubila. A imprensa publica. O autarca sorri. E Dino cantará neste “concerto à borla” no Montijo para 643 espectadores.
Mas eu, Serafim, que embora gato não sou parvo, fui espreitar os bastidores — coisa que muitos humanos esquecem de fazer por preguiça ou por fé. E o que descubro? Que afinal a borla é isto: a autarquia do Montijo adjudicou, por ajuste directo, o concerto por 19.680 euros ao agente do bom do Dino. Um contrato limpinho, transparente, público — mas que a manchete “de borla” esqueceu convenientemente de mencionar.
Reparem bem na jogada: o concerto é “de borla”, mas só para quem sacar o bilhete — e só há 643. O artista é “generoso”, mas recebe os seus 19.680 euros. E os vossos impostos, ah, esses é que são verdadeiramente generosos: pagam luz, som, segurança, divulgação e, claro, a performance “grátis” do bondoso Dino D’Santiago, que segue os princípios económicos da lei da oferta e da procura, mas com uma ‘nuance’: a oferta significa venda e a procura significa um autarca a pagar em ano de eleições com dinheiro que não é seu.

Aquilo que é curioso é que, sendo vocês os pagadores, não se sintam lesados por não poderem ir, caso morem, sei lá, em Vinhais, ou em Olhão. Em Portugal, em abono ca vedade, “de borla” significa: “alguém pagou por ti, mesmo que tu não tenhas querido”.
Mas a vossa servidão fiscal não conhece limites. Aceitais com um encolher de ombros. “Pelo menos é Cultura!”, dizeis, entre engarrafamentos e boletins meteorológicos. Cultura? Talvez. Mas não seria mais justo dizer que se trata de entretenimento institucionalizado com financiamento coercivo?
A semântica, meus queridos, essa arte felina da ambiguidade, é o que vos trapaça. Dizei “subsídio”, e todos se ofendem. Dizei “apoio”, e até batem palmas. Chamai-lhe “concerto gratuito”, e ninguém se lembra de perguntar quem pagou a conta. E assim vos ides enganando, como ratos a correr atrás de um sino — ou melhor, como humanos a correr atrás de concertos patrocinados por vocês próprios, convencidos de que são prendas do céu.
Deixai-me então fazer uma comparação justa: eu, Serafim, recebo comida sem trabalhar. Vós, humanos, trabalhais para pagar comida, electricidade, água, internet, gasolina, creche, IRS, imposto de circulação, IMI, taxa de saneamento, e agora, também concertos “grátis”. A diferença? Eu sei que não mereço o que recebo — vós acreditais que não mereceis o que vos tiram. E no entanto, calais-vos.

Sim, o vosso 25 de Abril trouxe liberdade. Mas também vos ensinou a aceitar migalhas embrulhadas em slogans. “Abril é festa!” — dizem. E quem não gosta de festa? Sobretudo quando é paga por todos, mas frequentada por poucos. O povo não tem pão? Dêem-lhe música. E de preferência, com um cachet para o Dino D’Santiago acima do salário mínimo.
Portanto, quando virdes a próxima manchete a prometer cultura “para todos”, perguntai logo: quem é “todos”? E sobretudo, quem pagou a conta? Enquanto isso, eu, Serafim, repousarei nas almofadas com a altivez dos que nada devem nem pagam. E se por acaso me apetecer, farei um ronrom cínico — não por amor, mas porque aprendi, como vós, que um pouco de fingimento mantém a gamela cheia.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.