a deriva dos continentes

‘People are strange’: e eles nem sequer estão malucos

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Clara Pinto Correia|13/04/2025

É noite; o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu:
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor,
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala d’amor às belas,
Não fala aos homens d’amor.

João de Lemos

LUA DE LONDRES (1872)

Para compreender melhor o título[1]


A pessoa já quase não se lembra do tempo em que existiam em Portugal verdadeiros políticos dignos desse nome. Esta gente que nos governa agora é para lá de má. É pior que decepcionante. É mais desaconchegante do que este inverno que começou em catapultas de chuva em pleno Outono e se manteve assim, gélido e encharcado, até à Primavera. Dentro dos seus sobretudos azuis, com os seus sapatos pretos, repetindo em toda a parte os mesmos sorrisos sobranceiros e as mesmas palavras de quem não tem absolutamente nada para dizer, esta gente que nos governa debaixo de uma profusão cansativa de chapéus de chuva escuros transportados por vassalos silenciosos é profundamente triste. Ainda por cima, sai-nos cada vez mais cara com os seus dares e tomares que cada vez parecem menos ir dar seja onde for. Estará tudo completamente perdido?

A verdade é que o povo português já foi espantosamente sensato e paciente antes.

Mas este é um desafio sem precedentes.


De repente, olha-se para toda aquela marabunta[2], ouve-se toda aquela gente mandar vir, e alguma coisa em nós faz clic a braços com um fenómeno muito estranho. É que, embora saibamos que representam ideias e ideais diferentes, começou a parecer-nos que são todos iguais. Ainda por cima, parece cada vez mais que estão todos a dizer a mesma coisa, falando exactamente da mesma maneira. O fenómeno é insuportável, mas depois de detectado é como o poço da Alice: estamos a cair lentamente lá dentro sem sabermos onde nos leva, desesperadamente incapazes de voltar à superfície, que era o sítio onde estava a realidade que estávamos habituados a conhecer. Tentamos racicionar, mas é inútil: nem sequer sabemos que latitude e que longitude é que já percorremos[3]. E então dá vontade de tapar os ouvidos com as mãos e chamar pela mãezinha[4], porque parece mesmo que está tudo maluco.

Depois percebe-se que isto é o que parece porque esta é a versão mais simplista dos acontecimentos, e, ao fim do dia, a Comunicação Social gosta sempre de apontar os microfones ao bobo da corte, que a presenteia com as afirmações mais pobres de espírito, mais francamente tontas, mais descaradamente insultuosas, e portanto mais divertidas. Por isso somos obrigados a seguir a política portuguesa com comentários finais a cargo de André Ventura, a única pessoa vestida de político que é capaz de concluir um bloco informativo com a declaração “na minha opinião, um polícia branco que mata um gajo preto depois do anoitecer não é nenhum psicopata, é mas é um herói, a quem deviam fazer um busto de homenagem, e nunca na vida abrir um processo de investigação,[5]” e sair imune.

E sair imune, caraças[6] – mas há que entender que saiu imune exactamente porque é o bobo.

Enquanto bobo, a criatura tem um direito ao microfone nunca antes visto. E, enquanto homem-espectáculo, basta-lhe apanhar um microfone desses pela frente para desatar a espingardar qualquer uma dessas javardices sem fundamento nem conteúdo que um homem gosta de ouvir quando está profundamente revoltado ou se sente muito perdido. Isso, hoje em dia, são quase todos os homens portugueses, e os media sabem isto muito bem. Em resultado, todos os dias temos que gramar com o palhaço. E, de facto, quando nos servem o País visto pelos olhos dele, parece mesmo que está tudo completamente maluco. Quem gosta de circo, e gosta de palhaços, sabe que é a isso mesmo que os palhaços se destinam: estão ali para convencer os espectadores que foram antes eles, todos eles, que enlouqueceram colectivamente. E entretanto, no seu mundo à parte, os palhaços continuam cheios de razão, como sempre estiveram. Não é por acaso que há tanta gente com fobia a palhaços. Quando os meus filhos eram pequeninos trepavam de pânico por mim a cima de cada vez que entravam palhaços na arena. Depois lá se habituaram a ficar quietinhos no seu lugar, mas todos a tremer e de olhos fechados.

Com estas memórias simpáticas do Circo Chen nos Natais de Lisboa recordamo-nos de que os olhos de André Ventura não veem o mundo como os olhos das pessoas normais, caímos em nós, e o caso torna-se mais sério. A triste figura que têm andado a fazer todos aqueles funcionários públicos sem um único lampejo de inspiração que são hoje em dia os nossos políticos não têm propriamente a ver com, por alguma razão que nos transcende, todos ficarem malucos, cada um para seu lado.

Tem antes a ver com padecerem todos é de uma angustiante falta de qualidade.

E comportam-se como se lhes fosse completamente indiferente o que o comportamento medíocre deles faz aos portugueses.

Vamos lá ver. Um bom político governa. Uma boa oposição impõe-lhe mudanças de rumo. E, supostamente, os eleitores ficam a ganhar com tudo isto. Mas, neste caso, a governação trocou insultos, e pelo meio foi descendo cada vez mais baixo até bater mesmo no fundo da Fossa das Marianas – sem que os portugueses ganhassem absolutamente nada com isso. Nos últimos tempos, em vez de tratar de todo e qualquer assunto que seja verdadeiramente importante para a qualidade de vida das pessoas, aquelas aves[7] passaram dias, semanas, meses, a espiolhar o escândalo das empresas do primeiro-ministro e da sua família. O primeiro-ministro não explicou nada que tornasse a situação menos escandalosa, e a partir daí fez toda a gente perder ainda mais tempo repetindo ad nauseum que não tinha absolutamente mais nada a dizer uma vez que já tinha feito da sua vida um livro aberto. Seguem-se episódios dignos de uma telenovela brasileira, daquelas que se passam no século XIX numa cidade no meio do mato onde a única lei que vigora é a do mais forte ou a do mais pérfido, que se arrastam durante um ano com detalhes tortuosos que ainda não tínhamos sonhado possíveis, e no entanto esta democracia já leva atrás de si um lastro considerável de péssimos políticos.

Mas é que estes são piores.

Primeiro, numa fuga para a frente de estupidez nunca vista, o governo, apoiado por todo o partido no poder, passa uma moção de confiança a si próprio. Em resultado óbvio, a oposição em peso passa uma moção de censura ao governo. Em decorrência inevitável, o Presidente da República dissolve a Assembleia e convoca novas eleições para amanhã. Reiterando imediatamente o seu pé de chumbo, o partido que estava no poder volta a pôr à cabeça da sua lista o mesmo primeiro-ministro altamente suspeito de grandes trafulhices com as suas empresas familiares. À falta de alternativas excitantes, e como simples factor decorrente de um enorme cansaço, até é possível que o povo português decida manifestar-se numa espécie de triste vingança poética[8] e faça com que este ex-primeiro-ministro ainda volte a ser primeiro-ministro.

Em tudo isto gasta-se imenso dinheiro, perde-se imenso tempo, e talvez nenhuma destas duas coisas muito más seja a pior.

Eu digo que a coisa pior, mas pior mesmo, é que, assim, vamos ser obrigados a viver com quatro eleições ensanduichadas em pouco mais de um semestre. Ainda nem estamos recompostos da telenovela do século XIX no meio do mato e já vamos ser obrigados a votar para legislativas em Maio; e depois seguem-se votos para autárquicas em Outubro, e para presidenciais em Janeiro[9], imediatamente seguidas da segunda volta dessas mesmas presidenciais se ainda alguém estiver vivo. Ora, a precisar de digerir três campanhas de seguida com toda a interferência que as campanhas causam na vida quotidiana, com imensa a gente a dizer-lhes “vota em mim” de dezenas de diferentes formas por centenas de razões diferentes – têm a certeza de que o pessoal consegue manter-se concentrado? Às tantas ainda saberemos para que serviço público é que aquela ave[10] específica nos pede que votemos nela? Estão a imaginar bem quantas pessoas vão aparecer a apertar-vos a mão quando vocês estão cheios de pressa, a dar-vos papelinhos que ninguém vai ler e que são, todos eles, árvores deitadas abaixo para nada? E quantas vezes seguidas, desta vez, é que vão ter gente que não conhecem de lado nenhum tratar-vos carinhosamente por Amigos, Companheiros, Camaradas, e aquele Portuguesas e Portugueses muito melífluo em que as senhoras passam sempre primeiro, para depois começarem todos a gritar-vos aos ouvidos em mais um comício que a certa altura começa mesmo a ser impossível manter nota de quem é e para que é? E o pior é que tudo isto acontece enquanto aqueles carros com música e alguém a bradar qualquer coisa pelo megafone, que parecem sempre anunciar uma tourada, não param de correr pelas ruas como baratas do inferno. E nós também já não sabemos o que é que anunciam ou defendem – mesmo descontando a possibilidade de estarem a chamar o povo à tourada dessa tarde.

Há mais.

A total falta de visão dos políticos que desencadearam este canhão gigante de exercício eleitoral foi tão grande que ainda há mais.

Preparem-se para oito meses que vão passar por nós como um sonho estranho[11].

Durante todo este tempo, mas todo este tempo, todo este tempo mesmo[12], hão de ser arruadas, atrás de arruadas, atrás de arruadas. Hão de ser imensas, porque dão nas vistas, não requerem grande preparação, reciclam-se, e, desde que o Candidato consiga caminhar, não há nada mais simples de fazer do que uma arruada.

O que, antes de mais nada, quer dizer que vamos esbarrar com imensos momentos imprevisíveis, e não necessariamente agradáveis, em que de repente não se pode passar na rua.

Ainda piores são aquelas alturas em que passar na rua é perigoso, porque – uma vez mais – o cidadão incauto corre sempre o risco de ser encostado à parede por um Candidato a Qualquer Coisa seguido pelos seus seguidores, que ainda é capaz de lhe perguntar “Olá Amigo, sabe quem eu sou?” – e o cidadão, tão evasivo quanto possível, já sem saber se há de ser abrupto[13] ou se há de manter o que ainda lhe resta de compostura eleitoral: “Bem, eu conheço a sua cara da televisão, claro, mas agora de repente estou com uma branca, não me lembro do seu nome” – o Candidato sorri e aproxima-se ainda mais arregaçando melhor as mangas, várias mãos estendem brochuras e panfletos, até um cartaz, e ainda um cravo vermelho, como aliás todos eles têm na lapela, mas para o pobre cidadão assim acossado isso não quer dizer absolutamente nada porque com cravos andam todos, no outro dia até na comitiva do Ventura iam umas miúdas muito giras a oferecer cravos vermelhos, suspeita-se que eram manequins contratadas à hora mas de qualquer maneira a intenção é que conta – “Deixe-nos informá-lo sobre o meu projecto para Portugal, antes de mais nada eu sou”– o cidadão ouviu o singular seguido por “Portugal” e bastou-lhe, o nome de uma única pessoa associado ao nome do País por inteiro revela-lhe que estão em causa as Presidenciais, ele está saturado de campanhas em geral e de arruadas em particular[14] porque as ruas ali são todas muito estreitinhas, só quer é despachar o assunto e então agarra naquelas árvores mortas que lhe estendem, livra-se dos seguidores com o ombro e acena seriamente ao Candidato enquanto inicia a fuga: “Ah mas eu sei, eu sei, o senhor é o Almirante que salvou o País do COVID, é um Herói, e conte comigo, eu vou votar em si.” – e desaparece, tirando partido da sua vantagem sobre a comitiva de conhecer muito melhor aquele dédalo de ruelas.

O Candidato, que na realidade era o Vitorino das Rãs, não desanima, como nunca desanimou. Diz aos seus seguidores que já se viu que a disponibilidade das pessoas que vão a passar nas rua estreitinhas daquele lugar não é grande coisa, melhor será entrar num tasco, pagar umas rodadas, confraternizar, deixar por ali os materiais de propaganda como quem não quer a coisa, contar ao pessoal histórias verdadeiras e muito sentidas das suas lutas regionais, e deixar as gentes dali daquelas ruelas ver bem as filhas de vários seguidores que vieram hoje na camioneta, estão excitadíssimas com a sua estreia na política[15], desfazem-se em risinhos, e são boas como o milho[16]. Daí a uma hora, visitarão outro tasco. Daí a três horas, até aproveitam o tasco para ver o jogo. Nesse dia a estratégia foi um sucesso. Mas há quem diga que foi só porque nesse dia nós ainda tínhamos aquele treinador pouco dotado mas mesmo assim ganhámos o jogo, que por acaso era contra a Inglaterra e passem bem que o País está ao rubro.

Bem contados são oito meses disto, e muita gente a candidatar-se a muita coisa, sobretudo tendo em conta a quantidade de estranhos personagens[17] que já se candidataram ou ameaçam vir a candidatar-se à Presidência da República. Uma eleição a nível nacional é sempre um fenómeno extremamente interessante, e não é só pelos resultados. Os programas que os candidatos apresentam, os tópicos onde põem a sílaba tónica, a escolha de slogans e de frases-feitas, a forma como se vão desenrolando os acontecimentos à medida que os autocarros das campanhas cruzam o País, as cabeças de cartaz que fazem concertos para cada facção, os debates, tudo é um dedo no pulso do País que tanto pode ser deprimente como hilariante, mas uma coisa é sempre certa, está cheio de vida. Agora – Três grandes eleições a contra-relógio e a seguir ainda um desempate? Alguém acha que isto vai correr bem? Será realmente preciso um sujeito ser especialista em análise política, ou em sociologia, ou em comentário jornalístico, para explicar ao País e ao mundo por que é que a abstenção em Portugal não para de subir e as eleições se saldam por resultados bastante bizarros?

Epá, não gozem comigo[18].

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



[1] Para todos aqueles que não chegaram a este mundo a tempo de identificar imediatamente a referência, aqui vão aos primeiros acordes da imorredoira canção dos THE DOORS, PEOPLE ARE STRANGE: people are strange/ when you’re a stranger/ faces look ugly / when you’re alone/ women seem wicked/ when you’re unwanted/ streets are uneven/ when you’re down… e vários outros desenvolvimentos igualmente deprimentes.

[2] Figura de estilo. Em Angola aplicava-se a tudo o que metesse muitas criaturas sempre em movimento, das formigas brancas às crianças. No entanto, a aplicação do termo às crianças já era, em si mesma, uma figura de estilo. Culpa delas. Nunca paravam quietas. De onde a expressão, também angolana, e também metafórica, “criança ferra.” Como é evidente, as crianças não possuem ferrão, pelo que no sentido literal não podem ferrar. Mas o uso do termo dispensa explicações.

[3]Que estranho,” pensa a Alice logo na segunda página da história, algum tempo depois de ter caído no buraco do coelho, não ter conseguido voltar para cima, e por muito que dê aos braços continuar perpetuamente a cair, muito devagar. “Sempre gostava de saber que latitude e que longitude é que já percorri.”

[4] Não necessariamente uma figura de estilo. Eu, como vivo sozinha com o Sebastião, posso dar-me ao luxo de fazer isso mesmo com os meus horrores de estimação. Ele põe a cabeça de lado a olhar para mim e arrebita as orelhas com o seu arzinho de cachorrinho amoroso. O que me faz passar logo a irritação, porque um cachorrinho amoroso com 54 kg é uma imagem absolutamente hilariante.

[5] Versão literariamente melhorada das declarações originais do actual candidato à Presidência da República, que acha mesmo que os polícias que resolvem as coisas matando as pessoas são os verdadeiros heróis do dia.

[6] Talvez aqui viesse a calhar um ponto de exclamação se essa não fosse a pontuação que eu mais detesto. Desculpem. Já tenho um certo direito a ter as minhas manias.

[7] Parafraseando Aristófanes, 445-386AC

[8] É mesmo. Toda a situação é tão triste que até as vinganças poéticas, completamente destituídas de fulgor e de garra e de sangue na guelra, são apenas isso mesmo – tristes. Tristes assim mais ou menos como a LUA DE LONDRES do João de Lemos.

[9] De nada. É sempre um prazer googlar factoides interessantes como este para vossa informação como quem não quer a coisa.

[10] Não há como aprender com os Clássicos, que já sabiam tudo – no caso dos Gregos, até sobre o funcionamento das democracias. Chega a ser frustrante.

[11] Em sinal de respeito pela democracia omite-se aqui a hipérbole “pesadelo”, por muito que apeteça usá-la.

[12] Recorde-se: pelo menos oito meses.

[13] Eufemismo.

[14] Note-se que, se vamos nas Presidenciais, já estamos na terceira campanha em programas ininterruptos.

[15] Estas meninas andam todas no secundário e já votam. Estudaram o programa do Amigo do Pai com a dedicação com que estudam para os exames. Passaram a noite em claro a fazer perguntas umas às outras para se certificarem de que sabiam responder a tudo. Foi muito proveitoso, porque durante o tour do Candidato foram abordadas por numerosos jovens interessados em conviver saudavelmente em termos socio-políticos, mostrando-lhes também a noite da sua terra.

[16] Claro que o Candidato não diz “boas como o milho” diante dos pais das meninas, nem que mais não seja porque um Candidato tem que ter Tacto. Mas a ideia é essa, e elas sabem-no melhor do que ninguém. Mais aperaltada, só mesmo a Shakira antes de entrar em cena.

[17] Havia, já há muitos anos, um programa de televisão em todos os visados tinham alcunhas, e a do Marques Mendes era “O Anãozinho Pérfido.” Só para dar um exemplo.

[18] Por acaso é a conclusão de uma das minhas anedotas preferidas. É pena toda esta história não ser uma anedota, no entanto.

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