OBITUÁRIO
Mario Vargas Llosa: o último liberal literário

Partiu Jorge Mario Pedro Vargas Llosa.
Fê-lo com a mesma elegância estoica com que enfrentava os seus detractores e as suas próprias contradições. Tinha 89 anos e uma obra que atravessa o século, como se apenas a pena lhe bastasse para esculpir a História, os vícios do poder e as misérias da alma humana. Com ele, o romance ibero-americano perdeu o seu último Príncipe das Letras – um que, ao contrário de outros, não cedeu à tentação fácil do populismo, nem literário, nem político.
Nascido no Peru, em 1936, ainda sob o peso colonial da alma espanhola, foi cosmopolita desde sempre – e, por isso, universal. Viveu em Lima, Madrid, Londres, Paris e até em barricadas ideológicas que não raro se desfaziam à força da lucidez. Começou esquerdista, apaixonado por Castro e pelas utopias da revolução. Mas cedo se desiludiu. Denunciou a tirania cubana quando tantos preferiam ainda cantar loas à igualdade das fardas. Desistiu das promessas da esquerda autoritária e caminhou, sem pedir desculpa, para um liberalismo firme, racional, incómodo. A sua coerência, como toda a coerência verdadeira, pagou-se cara – e ele nunca pediu troco.

Na Literatura, foi monumental. A Cidade e os Cães, a sua estreia em 1963, explodiu como granada na paisagem literária sul-americana. Rompia com o realismo mágico, que ele admirava mas recusava imitar. Os seus romances não tinham mariposas cor-de-rosa nem coronéis centenários: tinham soldados brutos, burocratas corruptos, mulheres inteligentes e trágicas, paixões ferozes e uma imensa desilusão com a humanidade. A seguir vieram obras-primas: Conversa na Catedral, A Guerra do Fim do Mundo, Tia Júlia e o Escrevedor, O Peixe na Água, Travessuras da Menina Má – para mim, o seu mais deslumbrante romance. Uma galeria de vidas e fracassos, revoluções e exílios, narrada com a precisão de um historiador e a volúpia de um esteta.
Ganhou o Nobel em 2010, tarde – como quase sempre acontece aos que não alinham pelas capelas literárias do politicamente correcto. Mas o prémio foi apenas confirmação do que já era evidente: Vargas Llosa estava entre os maiores, mesmo entre os que o invejavam em silêncio. Nenhum outro autor do “boom” latino-americano se expôs tanto – política e esteticamente. Nenhum outro escreveu com tanta clareza sobre o embuste das ideologias totalitárias, sobre a decadência moral do autoritarismo populista e sobre a fragilidade da liberdade quando não se cultiva a responsabilidade.
Também tentou a política activa: foi candidato à presidência do Peru em 1990 e perdeu para Fujimori. Talvez tenha sido melhor assim. Vargas Llosa não era um político disfarçado de escritor, mas um escritor que compreendia o poder melhor do que muitos políticos. A derrota presidencial salvou-o da corrupção do Estado e devolveu-o à pureza da Literatura e do pensamento livre. Nunca deixou de intervir. Escreveu ensaios brilhantes, colunas provocadoras, discursos memoráveis. Fez inimigos, mas manteve o respeito dos que preferem a frontalidade à subserviência.

Era homem de paixões: teve amores, escândalos, divórcios, reconciliações. Amou a liberdade como se ama uma mulher difícil: com fervor, ciúmes e uma fidelidade tumultuosa. Nunca pediu licença para pensar e, por isso, nunca foi cúmplice da indigência moral que hoje tanto se tolera em nome da virtude pública.
Vargas Llosa deixa-nos órfãos de um certo humanismo viril, de uma tradição literária que não tinha medo de ser grandiosa nem vergonha de ser elitista quando a mediocridade se fazia norma. Era culto, sem pedir desculpas. Escrevia bem, com orgulho. E pensava com clareza, sem receio de desagradar.
No seu túmulo, se houver justiça, não se escreverá apenas “Prémio Nobel”, mas sim: “Aqui jaz um escritor livre.”