COMPLEXO TITANIC
Os actores

1. Formação e Ideologia: A Representação como Resto
A figura do actor, historicamente associada à mediação entre o real e o simbólico, entre o gesto e a palavra, encontra-se hoje num ponto de inflexão estrutural que ultrapassa em muito as transformações estéticas do teatro ou do cinema, revelando um processo mais vasto de reconfiguração da subjectividade artística no seio de um ecossistema mediático que se alimenta da exposição, da performatividade do eu e da substituição progressiva da experiência pela aparência.
E isso é também comum a muitas outras áreas.
Mas nesta em particular sobre a qual me debruçarei, o actor tornou-se, simultaneamente, o último elo da cadeia de produção artística — profundamente dependente de estruturas externas de validação e selecção e tirando todo o ecossistema técnico que também envolve a profissão — sendo o mais visível, precisamente por se encontrar exposto num mercado simbólico no qual a presença se confunde com existência e a visibilidade com legitimidade.

O corpo é o seu produto também e o grau de exposição ao qual é sujeito é brutal, distinguindo-se assim de artistas plásticos, por exemplo.
Esta condição paradoxal manifesta-se desde logo no processo formativo. Cada vez mais, os actores saem das escolas — sejam conservatórios ou cursos profissionais — com uma formação técnica fragmentada, fortemente voltada para a adaptação funcional ao mercado (castings, self tapes, agências, networking), mas muitas vezes desprovida de pensamento crítico, de base teórica ou de referências estruturantes sobre a história e a filosofia do teatro, do corpo, da cena e da linguagem. Nalgumas escolas as cadeiras teóricas são até opcionais.
Claro que haverá excepções, que até conheço, de professores que fazem de outra forma — e serão certamente bastantes, quero acreditar — mas há limites para a docência, porque obedecem a programas.
O desconhecimento de nomes fundamentais como Stanislawski, Brecht, Meyerhold, Grotowski, Ionescu, Beckett ou mesmo Shakespeare e muitos outros protagonistas da História, nos mais jovens não é apenas um sintoma de ignorância histórica; é um reflexo de uma pedagogia que favorece a operacionalidade à consciência e a repetição ao questionamento, que muitas vezes cede ao imperativo do entretenimento como valor absoluto, apagando o papel do actor enquanto sujeito pensante e realmente critico.
Olhando para trás, parece que isso já foi mais efectivo, durante o século XX, sobretudo nas transições políticas ou mesmo com o fim de regimes totalitários, não sendo porém evidente. Precisaria certamente de outro estudo mas isso é texto para outra coluna.

Nas estruturas, tanto espontâneas como oficiais ou paralelas, o pensamento prêt-à-porter “humanista” já lhes está intrinsecamente associado.
As ideias de Gramsci venceram.
A hegemonia cultural que antes era projecto estratégico tornou-se norma pedagógica. As escolas de arte, teatro e ciências sociais transformaram-se em templos do progressismo automático, onde a linguagem da inclusão, da representatividade e da resistência simbólica se tornou dogma — um novo catecismo afectivo travestido de crítica.
Os alunos já são de “esquerda” sem saberem porquê, já são “anti-capitalistas” por reflexo, já operam dentro de uma matriz moral que confunde empatia com pensamento.
E o actor, outrora sujeito trágico da cena, agente de tensão, de contradição e de gesto simbólico, é agora mascote ideológica de um sistema que lhe alimenta o ego enquanto esvazia o corpo. Substitui-se a crítica pelo posicionamento, a ética pela performatividade e a arte pelo simulacro bem-intencionado do que supostamente devia ser perigoso.

Enquanto isso “as direitas” afastaram-se completamente de uma arte contemporânea em que não percebem a complexidade, apesar de tudo, do efeito Duchamp ou da conceptualidade por exemplo, e deixaram o papel da operacionalidade artística para outras zonas de mercados mais ambíguos e recicláveis conforme as ondas e marés.
Mas direita e esquerda já não são para aqui chamadas, numa era em que uma existe para representar e ser o negativo da outra, como que por falência e graças ao meta-capitalismo estruturante desta nova dimensão (a)política.
A maioria dos agentes culturais ainda vive nessa velha dicotomia capitalismo versus socialismo, como que por magia.
O delay já faz eco.
2. Tipologias e Fragilidades: O Actor na Era da Exposição

Por outro lado, a profissão do actor tornou-se um campo especialmente vulnerável à lógica de mercantilização das emoções e das identidades, sobretudo numa época em que a representação não se limita ao palco ou ao ecrã, estendendo-se a todas as esferas da vida quotidiana através da auto-exposição digital e da contínua construção de avatares nas redes sociais.
Neste contexto, o actor profissional deixou de ser o único a representar: todos representam, todos actuam, todos encenam versões de si mesmos para consumo público.
Esta contaminação entre representação artística e performance social, esvazia o gesto do actor do seu potencial simbólico, na medida em que já não se distingue, com clareza, entre a arte de representar e a compulsão de se mostrar — sendo certo que o guião a seguir muitas vezes coincide.
O que pode ser cómico para os cómicos.
Acresce que o lugar do actor nas estruturas de produção cultural se tornou profundamente condicionado por factores extrínsecos ao seu ofício — critérios de representatividade, políticas de quotas, discursos identitários ou agendas de financiamento — que, embora tenham tido origem em reivindicações bastante legítimas e até urgentes, vão tendo um efeito boomerang e tendem hoje a reduzir a complexidade da arte à função ilustrativa ou pedagógica, transformando o actor num funcionário do afecto e da correcção simbólica aliando essa vertente a uma hipocrisia conhecida no meio artístico.
Dando para rir entre o que é dito no público e no privado.
Mas este novo paradigma acentua a fragilidade estrutural do actor enquanto trabalhador precário, obrigando-o a adaptar-se constantemente às exigências de um mercado cada vez mais sensível à performance política do corpo e à sua legibilidade dentro dos discursos dominantes — muitas vezes em detrimento da qualidade estética, da ética artística ou da exigência crítica.

É neste cruzamento entre fragilidade laboral, hiperexposição mediática e instrumentalização ideológica que o actor contemporâneo se encontra — e é precisamente aí que deverá ser repensado o seu “papel”.
Há que distinguir entre os vários estilos e práticas de representação, sem cair na caricatura, mas também sem iludir os problemas.
Existem inúmeros tipos de actores, entre eles destaco: o actor intuitivo, que depende exclusivamente do impulso emocional, frequentemente carece de ferramentas críticas para intervir sobre o material que trabalha, e é normalmente muito inseguro e emocionalmente dependente — a carência supera e ofusca o desejo, podendo torná-lo ridículo na sua prática.
O actor técnico, que por sua vez tende a encarar o corpo como um dispositivo executável, desprovido de pulsão e de risco, funcionando normalmente por compensação económica. Pode ter ou não personalidade e conhecimento fora da sua zona de acção , mas normalmente conhece bem o sector e é calculista.
Ainda existe, noutra geração, o actor do método, que mergulha perigosamente na biografia das suas personagens — mesmo que tenham sido escritas por uns tarefeiros de serviço — como se a experiência pessoal pudesse substituir a dramaturgia. Aqui dependem da experiência dos realizadores de televisão ou dos encenadores para moldar o seu conhecimento às exigências do produto em que normalmente não há tempo para experiências psicanaliticas.
Para além de outros géneros existentes , sem dúvida, (não é para ser exaustivo), tanto que as gerações também são muito distintas em conhecimento, devo destacar ainda aquele que parece ser o mais problemático e vítima número um do deslumbre do fenómeno da Desconstrução: o actor pós-dramático.

Este género bastante permissivo ao sabor do tempo, dissolve-se num formalismo estéril que abdica da construção simbólica em nome da presença imediata e da intuição, aliada a uma história muitas vezes inverosímil e distorcida da performance nas Artes Plásticas — sempre associada aos impulsos do corpo e dos sentidos — para normalmente cair num vazio pouco sustentado e frágil do ponto de vista argumentativo.
Adora Marina Abramovich mas nunca viu.
Esta tipologia pode ter tido origem no Living Theatre (é discutível) e tomou muitos caminhos, passando pelos efervescentes e oitentões La Fura Dels Baus — que foram depois muito criticados por abrirem os Jogos Olímpicos de Barcelona, na altura por se terem vendido ao capitalismo, segundo a esquerda dominante nas artes, numa era menos obscura, pré-internet, em que o discurso anti capitalista e anti americano moldava muitas cabeças, ainda que os actores nunca deixassem de pensar em Hollywood como um sonho a atingir. Não todos, claro.
Um paradoxo de sonho… Ou pesadelo.
Nenhum destes modelos é inválido, mas todos se tornam limitadores quando não acompanhados por um pensamento que os interpele, que os questione, ou que os coloque em relação com o mundo e com a história da representação enquanto acto político, ético e estético.
Importa ainda afirmar que esta crise do actor é, também, uma crise do público.
Um público deseducado, emocionalmente condicionado pelas narrativas audiovisuais dominantes e treinado para consumir identificação em vez de complexidade, já não reconhece o valor da representação como distanciamento, nem entende o artifício como linguagem. Sempre com excepções como é evidente. Falo também de Portugal, desconhecendo propriamente outros países. Mas não me parecem muito diferentes no seu modelo ocidental.
A confusão entre arte e vida, tão promovida pelas culturas de massas e pelos dispositivos algorítmicos de selecção simbólica, transforma o actor num espelho vazio: reflecte aquilo que o público quer ver, não aquilo que precisa de pensar.

Não é que o publico já tenha sido mais culto, mas com a fragmentação e o excesso cada vez mais evidente, já não são só os agentes da cultura e representação que desconstroem mas até o publico o está a fazer sem saber.
Desconstruir até cair para o lado, parece ser essa a ordem crescente pregada de moral para consumo interno, sempre com a cumplicidade das indústrias farmacêuticas e psiquiátricas com homeopatias e acupuncturas pelo meio. Não é possível desconstruir mais sem depressões associadas, para ser irónico.
Mas não é por isto que deixamos, como que por magia, de ver grandes “representações” e performances dos actores, tanto em televisão como no cinema ou no teatro.
Nem tudo tem explicação. E o mundo não acabou.
3. Narcisismo, Crise Simbólica e a Possibilidade de Representar
A crise da representação não se exprime apenas em termos de condições externas, mas atinge directamente o núcleo da prática actoral: a sua relação com o eu, com o corpo e com o mundo.
A figura do actor tornou-se, no contexto contemporâneo, uma das expressões mais visíveis do paradigma narcisista dominante, que transforma a arte da representação numa gestão contínua da própria imagem e da própria emocionalidade. Esta mutação arrasta consigo o esvaziamento simbólico da prática artística e a sua conversão em performance afectiva para consumo imediato.
O actor, já não apenas como intérprete de papéis, mas como figura pública e marca pessoal, é chamado a sustentar uma identidade coerente, exposta, emocionalmente legível e esteticamente consistente.
A distinção entre o espaço do trabalho artístico e o da auto-representação quotidiana dissolve-se num regime de visibilidade permanente. As redes sociais, ao exigirem uma narrativa constante do eu, impõem ao actor uma representação contínua, muitas vezes sem conteúdo, onde a vulnerabilidade se torna valor e a autenticidade é convertida em capital simbólico.
As práticas performativas dominantes são reflexo desta transformação. Para voltar às tipologias anteriores: o actor intuitivo representa a valorização do afecto imediato em detrimento da construção simbólica; o técnico revela a conversão do corpo em dispositivo funcional e programável; o do método indica a fusão entre biografia e ficção, que compromete a mediação crítica; o pós-dramático manifesta a desmaterialização da linguagem e a aposta numa presença que, muitas vezes, abdica da significação.
Talvez fosse bom de quando em vez voltar-se a penetrar Brecht ou imergir no livro de Robert Bresson com as suas insinuações sobre o actor, para não falar em Peter Brook, todos sempre actuais e pertinentes nas suas linhas, ainda que dogmáticas.
Estas tipologias, apesar de distintas, convergem na recusa — ou na perda — da representação enquanto acto mediado ou mesmo construído e pensado — logo, por isso, político.

Esta configuração é reforçada por um ecossistema simbólico que desvaloriza a crítica em nome do apoio emocional, que confunde empatia com complacência e que romantiza a precariedade como forma de resistência criativa. Até ver.
O elogio constante e a ausência de exigência transformam o campo artístico num espaço de validação afectiva, impedindo o confronto com os limites e a profundidade do gesto artístico. O actor, nesse ambiente, é infantilizado enquanto trabalhador e idealizado enquanto figura pública — sem espaço real para errar, questionar ou resistir.
O resultado é a conversão da arte da representação num espelho do desejo social, num reflexo imediato das expectativas afectivas do público e das lógicas algorítmicas de visibilidade.
O actor, em vez de intervir simbolicamente sobre o real, é convocado a reproduzir narrativas emocionalmente aceitáveis, facilmente partilháveis e alinhadas com os códigos dominantes de sensibilidade.
A arte deixa de distanciar para reflectir; o corpo deixa de significar para agradar.
Repensar o lugar do actor, hoje, exige muito mais do que mudar práticas pedagógicas ou modelos de produção. Terá de vir dos próprios.
Serão certamente os actores quem reagirá mais tarde ou mais cedo ao “cataclismo asséptico”, até provavelmente o poder detectar a convulsão. Ou não. Talvez a História ao rimar novamente encontre novas terminologias e o feitiço se vá voltando contra o feiticeiro. O mundo é um lugar dinâmico… Como sempre.

Estou optimista.
Exige é uma redefinição profunda do que significa representar, numa época em que todos performam. Significará sem dúvida devolver ao actor a sua dimensão crítica, simbólica, política.
Dever-se-à quanto a mim, voltar a valorizar a linguagem, a narrativa e inscrever o corpo no pensamento e a sua presença num mundo que precisa de mais autonomia. Sobretudo autonomia, o que não é fácil, certo.
E, sobretudo, recusar a transformação do actor em produto emocional de um mercado simbólico disfarçado de “humanista” totalmente em colapso, em que os “actores” principais desta era também não sabem nada de Beckett , Ionescu ou Shakespeare, quer-me parecer.
Daí o optimismo.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações: Ruy Otero
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