EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
ERC: o descrédito de um regulador que fomenta o pântano

Na semana passada, escrevi à presidente do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Helena Sousa, para lhe comunicar algo que se impunha há muito: o PÁGINA UM não lhe reconhece qualquer idoneidade ou capacidade técnica para avaliar o nosso rigor informativo.
Esta decisão não foi tomada de ânimo leve. Nasceu do acumular de deliberações enviesadas, de juízos sem rigor técnico e de um silêncio cúmplice que, para além de revelar desprezo pela transparência, escancara as portas à promiscuidade entre órgãos de comunicação social e o poder político. Num país onde se pretende defender a liberdade de imprensa, é inaceitável que um regulador criado pela Constituição se comporte como um corpo obscurantista, que recusa dar informação pública e se refugia na opacidade processual e na tibieza institucional.

Nos processos que conduz, a ERC nem sequer identifica os seus técnicos nem revela os seus pareceres – parece, nisto, o Santo Ofício. Recusa também esclarecer se quem analisa as queixas sobre rigor tem formação científica e técnica para o fazer. Esconde-se por detrás de pareceres anónimos e conclusões nebulosas, sem método nem escrutínio, como se fosse um tribunal de excepção para proteger os poderosos e castigar os incómodos. Não se sabe sequer se o Conselho Regulador decide em sentido contrário dos pareceres dos técnicos da ERC com o objectivo político de livrar os ‘amigos’ ou condenar os ‘inimigos’.
A minha crítica à ERC não é uma negação da regulação – pelo contrário. Sempre defendi que o Estado deve intervir para corrigir falhas de mercado e travar abusos das empresas privadas. Mas um regulador que age por omissão, como a ERC, que se escusa a exercer os seus poderes de forma transparente e que, pior ainda, tenta ludibriar juízes administrativos, não merece senão o meu mais firme repúdio.
Em 2022, o PÁGINA UM teve de recorrer ao Tribunal Administrativo para obter documentos que a ERC se recusava a facultar. Foi uma vergonha ter de apresentar uma intimação contra a entidade que deveria ser a guardiã e defensora do jornalismo livre e com acesso privilegiado às fontes de informação. No mês passado, voltámos a ser obrigados a recorrer ao Tribunal Administrativo. Desta vez, estão em causa quatro processos distintos, entre os quais os negócios da Global Media e as contas da IURD. Num desses processos, os advogados da ERC tiveram o desplante de tentar enganar o juiz, manipulando contagens de prazos para ganhar na secretaria aquilo que arriscam perder em tribunal: o direito (a que se arrogam) a serem obscuros. Sejamos claros: a ERC, actualmente, com a liderança de Helena Sousa, não é já uma instituição reguladora; estamos a falar de um bastião da opacidade.

E o que dizer da indigência estatística? Há poucas semanas, a ERC considerou que uma sondagem da Pitagórica para a TVI e CNN Portugal, em que 400 inquiridos votavam 1.032 vezes com toda a certeza, não tinha qualquer problema. Perante este nível de incompetência – ou cumplicidade – não posso, nem devo, aceitar que um conselho regulador com este grau de inconsciência se arrogue autoridade moral ou técnica para avaliar o PÁGINA UM.
É por isso que já deixei claro à ERC: o PÁGINA UM continuará a cumprir, com rigor escrupuloso, a Lei da Imprensa e a Lei da Transparência dos Media. Nada mais, até porque as deliberações sobre rigor informativo não passam de bitaites que nem sequer podem ser contestados em tribunal, exactamente por isso: são meros bitaites – e de gente pouco séria, além disso. O PÁGINA UM não se prestará a participar em fantochadas regulatórias que têm por único fim silenciar o único jornal que ousa expor as falhas gravíssimas da própria ERC.
Posto isto, sinto-me mais liberto para manter as críticas e a ‘vigilância’ sobre a acção da ERC, que é, hoje, um dos principais responsáveis pelo pântano de credibilidade da imprensa nacional – tanto por acção como por omissão. E o caso que publicamos hoje é a mais gritante demonstração disso.
Em Lagoa, uma autarquia socialista celebrou, desde 2019, contratos no valor de quase meio milhão de euros com uma empresa de media, exigindo explicitamente, em alguns contratos, a realização de entrevistas e cobertura de eventos da autarquia. Esta exigência é escrita. Há cláusulas que estipulam tiragens, conteúdos, periodicidade, presença no terreno, reuniões quinzenais com a autarquia e relatórios de desempenho. Isto não é um contrato publicitário: é um protocolo de subordinação editorial. E o jornal em causa, o Lagoa Informa, é dirigido por um jornalista com carteira profissional, Rui Santos Pires, que acumula as funções de gerente e assinante dos contratos.

A ERC esteve dois anos a analisar um contrato de 2023 que mostra a institucionalização do frete político feito por um órgão de comunicação social com recurso a dinheiros públicos. Concluiu que não havia ilegalidades, aceitou as desculpas esfarrapadas da empresa e emitiu uma recomendação inócua: que se garantisse, no futuro, a separação entre publicidade e jornalismo. Dez dias depois dessa recomendação, a Pressroma assinou novo contrato com cláusulas ainda mais abusivas. E, só porque o PÁGINA UM denunciou o caso, a ERC lá anunciou que vai abrir “um procedimento de averiguações”. Só agora. Só porque os obrigámos. Só porque a revelação lhe é demasiado vergonhosa. Uma vergonha que se junta a mais actos vergonhosos.
Aquilo que está aqui em causa é gravíssimo. A ERC está a institucionalizar o jornalismo encomendado. Está a declarar, com todas as letras, que não há problema algum que jornalistas prestem serviços comerciais ou políticos desde que misturem um pouco de publicidade num qualquer contrato. O recado foi dado: está aberta a temporada de caça por parte de empresas de media com espírito de agência de comunicação, usando a credibilidade, cada vez menor, dos jornalistas. E depois finge-se que há liberdade editorial.
O Lagoa Informa é apenas a ponta do icebergue de uma imprensa onde já há pouco jornalismo puro e já muita veneração paga. E isso, para a ERC, não merece sequer um puxão de orelhas.

Perante este estado de coisas, o PÁGINA UM continuará a fazer aquilo que sempre fez, mesmo com as limitações inerentes ao nosso modelo de negócio (acesso livre com donativos): cumprir a lei, defender o jornalismo independente e expor o que muitos preferem esconder. E, nesta linha, não fingiremos respeito por quem não o merece. O PÁGINA UM é transparente, autónomo e responsável perante os seus leitores – não perante um conselho capturado pela mediocridade e pela conveniência política.
No meio do caos, um desejo e uma esperança: Portugal precisa de uma ERC diferente. Uma entidade que defenda a liberdade de imprensa, e não que a subverta. Uma entidade que puna a promiscuidade, e não que a legitime, porque acha que, no curto prazo, salva os ‘amigos’ aflitos, mesmop que traia e aniquile a credibilidade do jornalismo. Mais do que nunca, precisamos de uma entidade que regule com coragem e competência – não com compadrios e inépcia.