CORREIO MERCANTIL
‘Tenham noção’ da hipocrisia do Rodrigo

Do conforto da eternidade, com a serenidade estoica de quem já não teme as represálias nem a execração pública — essas sanções que ultrajam os vivos mas não alcançam os defuntos —, aprecio observar as deambulações e circunvoluções morais de certos indivíduos que nunca lograram ser coisa alguma, mas aspiram a tudo. E noto sempre, com o pasmo plácido dos desencarnados, um fenómeno digno de ladainha e troça: após temporadas de impudente desonra, eis que ressurgem eles, na praça, como santidades reabilitadas — lavadinhos de alma, enxutos de culpa e trajados com as vestes purificadas de quem se julga isento de mácula, como se fossem virgens do pecado ou, se não o foram, houvessem sido absolvidos por decreto celestial ou esquecidos por conveniência social.
Mais do que o prazer de ver o demagogo engasgar-se com o próprio sermão, deleita-me contemplar o funcionamento primoroso da lavandaria moral dos inescrupulosos: moderna, eficiente, com centrifugação ideológica, ciclo rápido de penitência mediática e perfume persistente de auto-indulgência. Nada de tinas de zinco nem saponificações de antigamente com cinzas de sobreiro e sebo de boi — trata-se agora de um dispositivo ético-industrial, homologado pela opinião pública, com função de branqueamento imediato e secagem a quente, no calor das palmas.

Não, minhas dilectas donzelas e estimados cavalheiros — não venho falar-vos de lavadeiras nem de roupas sujas da plebe. Refiro-me, sim, aos escudeiros das supostas boas causas, outrora investidos de microfone na lapela, sobrancelha arqueada e voz de sepulcro, que se armaram, em tempos de peste, em arautos do Apocalipse. Eram os pregadores de um novo evangelho científico — do tipo revelado, não demonstrado — que impunham a vara da virtude sanitária para fustigar os tresmalhados da Verdade instituída.
Mas agora, passada a borrasca e dissipado o pânico, os mesmos surgem com novo figurino: apóstolos da dúvida, soldados da consciência crítica, paladinos da pluralidade, arautos da rebeldia temperada. São os mesmos rostos, mas com decalque ideológico diferente — os mesmos lábios que ontem decretavam o exílio do herege, hoje murmuram sobre a importância da escuta. Onde antes marchavam com o catecismo da obediência, desfilam agora com os tambores da dissidência.
Já tereis concluído: mirei nova vítima dos meus dardos epigramáticos. Não me contenho. Sim, confesso: é mais forte do que eu, mais antigo do que as Tábuas da Lei e mais instintivo do que a saliva do moralista. Onde há pose, lanço sátira; onde encontro gravidade postiça, aponto ironia; e onde houver bambu — metafórico ou institucional —, armo a verve e disparo a troça.
Afinal, para que serve esta eternidade desocupada, senão para exercer o olímpico direito de ridicularizar os vivos que se levam demasiado a sério? Não tenho impostos a pagar, nem pele a salvar, nem imagem a preservar. Abro os olhos da alma (porque os outros já se foram com as traças) e observo. E, quando vislumbro um rosto que outrora ruborizou de escândalo e agora resplandece de candura reabilitada, não há querubim do purgatório que me detenha.

Bem sei: há os que pregam a paz, aqueles que discursam sobre a memória, aqueloutros que celebram a reconciliação — e depois há ainda os poucos, como eu, que atiram dardos. Não por crueldade, mas por fidelidade à precisão. Não por ressentimento, mas por zelo da verdade esquecida. Não por gosto de ferir, mas por obrigação moral de rasgar disfarces. Não por nostalgia do escândalo, mas por aversão à impunidade vestida de introspecção. Não por espírito de revanche, mas por resistência ao apagamento cerimonioso do passado recente.. Há figuras que pedem sátira como as paredes sujas pedem cal. E há vaidades que apenas se purificam com vinagre, aplicado com esponja retórica e uma pitada de fel. Portanto, não estranheis. Quando sentirdes o zumbido do sarcasmo e da ironia passando rente ao chapéu da compostura pública e a perfurar o ego dos pavões empoleirados, sabei: por aqui, enquanto houver bambu, lá vai flecha!
E hoje, bem no centro do alvo, temos Rodrigo Guedes de Carvalho — nome de escriba e pose de cônsul romano. Em tempos pandémicos, empoleirado no púlpito higienista da SIC, fazia das notícias um auto-de-fé, separando o povo entre fiéis e infiéis. Lançava anátemas retóricos contra os que ousavam interrogar os dogmas sanitaristas e, com o tom compungido de um penitente laico, condenava o desvio do pensamento como se fora heresia mortal. O altar não era o Sinai, era o estúdio. E não falava com Deus, mas com o teleponto. Ainda assim, recebia louvores dos deuses — ou, pelo menos, do primeiro-ministro António Costa. E digam-me, em boa fé: que mais pode ambicionar um jornalista supostamente independente do que o elogio público, em prime time, do chefe do Governo que devia escrutinar?
Rodrigo foi, pelos idos de um passado ainda morno, um sacerdote da Verdade Oficial — com a gravidade moral de quem, na sua superciliosa empáfia, acreditava piamente que salvaria a Humanidade se, entre uma pausa dramática e um franzir de sobrancelha, bradasse um “Tenham noção!”. Para ele, a dúvida era lepra, o contraditório uma heresia, os números — especialmente os do boletim diário dos óbitos e internados em unidades de cuidados intensivos — relíquias sagradas, e as restrições, sacramentos higiénicos rumo à salvação colectiva. A máscara, mais do que barreira viral, era escapulário de fé profiláctica, símbolo de adesão ao novo culto biossanitário. E quem ousasse não comungar da liturgia imposta era logo ungido com o selo infamante de “negacionista” — a mais recente encarnação do pecador moderno, expulso do templo mediático com a fúria dos escribas e a bênção do teleponto.
Mas agora — ó delícia destes tempos anfíbios — Rodrigo Guedes de Carvalho apresenta-se com indumentária nova. “Desde criança que não me encaixo…”, escreveu ele no Expresso — esse panfleto empertigado que celebra solenemente parcerias com farmacêuticas enquanto faz juras de independência — como quem sai, desajeitado, de um romance de Salinger lido à pressa e com o marcador ainda no prefácio. Notem bem a lírica melanólica deste pós-adolescente iluminado já com idade e calvície de avô:
“Desde criança que não consigo encaixar-me se continuam a garantir-me que nesta vida só há líderes e seguidores. Não tenho pretensões de profeta, mas muito menos vontade de ser ovelha, esmagada entre milhões de cópias, sempre à espera que me indiquem modas. Em breve haverá uma nova tendência. E milhões partilharão seja o que for para fazerem parte. Embora não saibam bem de quê.”
Convenhamos, é comovedor — tão comovedor quanto conveniente para causar aqueles sublimes espasmos afectivos que só a boa encenação proporciona. Proclama-se ele agora alheio às modas, mostra-se crítico dos líderes e dos seguidores, como se tivesse passado os anos pandémicos fechado numa cripta, sem rede, alheado da sua própria voz e do eco das suas homilias. Quer-se agora lobo solitário — depois de ter guiado, com zelo pastoral, o rebanho inteiro até ao curral sanitário.
Rodrigo lembra-me uma tragédia de Eurípides. Dir-se-ia um Penteu ressuscitado — aquele que, depois de espiar as bacantes, foi por elas despedaçado no auge do delírio dionisíaco — e regressado agora das entranhas do Hades com uma coroa de videira na cabeça e um discurso reciclado sobre liberdade de culto. Ou talvez se aproxime mais de um Torquemada aposentado, a publicar uma elegia à dúvida metódica e à tolerância de pensamento, como se os autos-de-fé fossem simples escorregadelas juvenis, próprias de quem andava a descobrir-se. Melhor ainda: Rodrigo reaparece como quem cai de um cavalo na estrada de Damasco — mas sem a luz divina, apenas com o reflexo de um ring light e o eco amortecido do seu próprio sermão moralizante.
Se por acaso andasse hoje a passear pelos salões do vosso mundo mediático — não com bengala, mas com sobrancelha arqueada —, Alexis de Tocqueville talvez baptizasse este fenómeno como “a metamorfose democrática do censor em vítima estética”. A reescrita biográfica tornou-se agora uma espécie de epopeia doméstica: cada qual reinventa-se ao sabor da corrente, como um Ulisses sem naufrágio nem saudade, mas com contrato de edição e entrevista marcada no Goucha ou no Daniel Oliveira. Ou em ambos. Arrisco dizer que Foucault, envergando a sua batina crítica, veria no comportamento do rgcboss — como se apresenta Rodrigo nas redes sociais —a elegante circulação de poderes pós-discursivos, talvez um recuo estratégico nos dispositivos de enunciação. Já eu, com menos pedantismo e mais convivência com almas deslavadas, chamo-lhe, com a franqueza que me assiste: pura e simples aldrabice.

Na verdade, Rodrigo, como Páris de Tróia, fez uma escolha: em tempos que exigiam coragem e assertividade, preferiu a vaidade do reconhecimento público ao incómodo da dúvida honesta. Como Alcibíades, seduziu as massas com retórica lustrada e, como os sofistas de Atenas, adorou o som das próprias palavras mais do que a verdade que lhes deveria caber. Agora, com um gesto estudado e olhar de penitente contemplativo, tenta imitar o silêncio resignado de Antígona — como se nunca tivesse berrado com a convicção inflexível de Creonte.
Ah, mas o estilo! O seu escrito no Expresso — essa peça de exegese narcisista — é uma mistura pouco homogénea de Genesis (a banda) com génese (a sua), entrelaçada numa prosa de lençóis desdobrados e tendências de meia estação, nostalgias de infância e frases semi-poéticas. Ali, o banal veste-se de profundo com ares de quem frequenta cafés literários; a introspecção exibe-se como epifania, mas funciona sobretudo como detergente moral. A roupa, note-se, não está propriamente limpa — apenas cheira melhor. E é tudo o que parece interessar hoje: não lavar, mas perfumar.
O problema de Rodrigo Guedes de Carvalho não reside em ter mudado de opinião — isso, aliás, é apanágio dos espíritos livres e das mentes em movimento. O busílis está em mudar de pele como a serpente, sem jamais reconhecer o veneno que inoculou com a anterior. Rodrigo, como tantos outros deste tempo líquido, é um homem sem passado: não tem história, apenas sucessivas versões de si próprio, arquivadas como actualizações de software — cada uma incompatível com a anterior, mas todas, curiosamente, destituídas de culpa.
Dir-me-ão: “Mas ele é sensível, escreve livros, fala de música, chora nos lençóis!” Sim, também Nero tocava lira enquanto Roma ardia. E as lágrimas, como bem sabia Françoise de La Rochefoucauld, esse mestre das epigramas, são por vezes apenas o hipócrito disfarce do vício a render homenagem à virtude. Que Rodrigo sinta, não duvido. Mas os crocodilos também choram — e, no entanto, devoram.

Se Hobbes viu o homem como lobo do homem, os novi-moralistas são ovelhas com pele de lobo — não para atacar, mas para parecer ferozes quando já ninguém os ameaça. São também os pós-moralistas: não porque erraram, mas porque fingem nunca ter errado. São os novos Pilatos do vosso tempo: lavaram as mãos e passaram álcool-gel diante da multidão, enquanto levavam os outros ao crucifixo.
Na política, chamam-se a isto transformistas. Na televisão, pivots. Mas, no fundo, são iguais: espelhos que reflectem o gosto da audiência. Ontem foram apóstolos do medo. Hoje são mártires da autenticidade. Amanhã? Amanhã serão outra qualquer coisa, que der mais jeito — mas jurarão que sempre o foram.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.