CORREIO MERCANTIL

‘Habemus cadaver’: soltem as notícias!

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Brás Cubas|21/04/2025

Se há algo que me solaz verdadeiramente, deste lado da existência — onde já não há boletins informativos, apenas o sussurro longínquo da Eternidade e os ecos maliciosos da vaidade humana —, é observar a sofreguidão com que os vivos se apressam a escrever sobre os mortos antes mesmo que o corpo arrefeça, quiçá ainda morno de unção.

De ordinário, a imprensa, essa liturgia do efémero, converte-se então de súbito — e com piedosa avidez — numa oficina de beatificações laicas, onde se compõem hinos elegíacos com a diligência de um sacristão em véspera de enterro de bispo. Bastam dez minutos de agonia — um soluço mal digerido, uma síncope mais dramática — para que brotem dos teclados as mais extensas endechas e pungentes epicédios, verdadeiros elogia funebria..

Para a imprensa, que já não distingue entre o exitus e o incipit, a morte — esse derradeiro e solene acto biográfico — já não representa o fim de uma vida, mas sim o princípio de uma maratona editorial, uma espécie de Pentecostes necrológico em que todos falam ao mesmo tempo, em todas as línguas, sobre o mesmo cadáver. E se o dito for um Papa…

Confesso, aliás, que eu próprio estive para escrever esta crónica há umas semanas, talvez no exacto dia em que se espalhou, com zelo quase apostólico, a pneumonia bilateral de Jorge Mario Bergoglio — um rumor sobre o derradeiro momento que viajou com mais velocidade do que muitos dos seus motu proprios. Hesitei também quando o cotovelo do Santo Padre roçou uma marquesa hospitalar, esse altar clínico moderno onde tantos papas se tornam, enfim, mortais. Ou ainda — e talvez com mais tentação literária — quando a Santa Sé, num gesto de inusitada transparência (ou prudente previsão), começou a enviar aos jornalistas credenciados material de apoio à hagiografia redaccional, incluindo resumos biográficos laudatórios, instruções para subtítulos comoventes, modelos de manchetes beatíficas e notas de rodapé sobre a liturgia da escolha do próximo pontífice, com habemus papabile e tudo.

Mas enfim… procrastinei-a, delonguei-a, adiei-a, suspendi-a, posterguei-a, negligenciei-a e, por fim, desdenhei-a, com a brandura própria de quem já passou pela alfândega do Além e sabe que um morto, por mais literato que tenha sido em vida, tem sempre assuntos mais urgentes do que redigir panegíricos sobre outros defuntos ou dar varada nos abutres que tecem loas com penas de avestruz emocional e tinteiro de conveniência. A verdade é esta: há mortos que têm pressa em serem celebrados — e outros, como eu, que têm mais que fazer.

E aqui estamos a escrever à pressa, embora a minha intenção nunca fora escrever sobre o Papa, mas sim sobre estes tempos modernos onde a morte dos importantes é precedida por obituários em embargo, prontos a saltar do purgatório digital para a glória tipográfica assim que o electrocardiograma deixar de fazer piruetas.

E assim aqui estou eu, com esta crónica, a constatar o óbvio: Francisco — o pontífice dos gestos, das metáforas de evangelho reciclado e dos sapatos de sola jesuíta — ainda não esfriou os dedos do rosário e já lhe compuseram o epitáfio em cinquenta idiomas — ou mais, segundo consta, até em esperanto vaticanês —, cada um mais reverente que o anterior, como se toda a imprensa mundial se tivesse convertido de súbito à Sancta Ecclesia Catholica, Apostolica, Romana et Mediaticamente Oportunista. E louvam-lhe a humildade com tamanha empáfia que um eremita das Astúrias se sentiria mundano, um trapista belga pareceria tagarela, e um cartuxo da Bretanha soaria a influencer digital.

E repete-se tudo isto, em milhares de colunas, especiais televisivos e podcasts devotos, a mesma melodia piedosa: o homem do povo, o reformador possível, o pastor ternurento. O tom é de ladainha com layout modernizado. E o que mais me faz rir — e note-se que o riso, entre os mortos, é um acto de resistência e de elegância — é a antecipação.

Faz-se tudo isto em catadupa porque, hélas, há muito estava tudo já escrito. Todos os textos estavam preparados desde os tempos em que o desditoso Francisco— ou ditoso, porque dos vivos se livra — ainda subia escadas sem apoio e discursava com o vigor de seminarista inflamado

Já o velhinho arcebispo argentino se queixava das dores nas costas e arquejava, ofegante e curvado, como quem carrega mesmo nas vértebras o peso simbólico da cátedra de Pedro e as contradições de um pontificado de sorrisos humildes e bastidores tensos — e nas grandes redacções escrevinhava-se, como quem compõe o menu da última ceia, o seu obituário. Não se fez isto por devoção, não por reconhecimento sincero, mas porque a morte alheia rende cliques, como antigamente rendia indulgências.

A verdade, devotas leitoras e reverentes leitores, é que entre os vivos cultiva-se uma ciência antiga e obscena: a necroexpectativa. Não é exactamente desejar a morte — é apenas preparar-se para colher dela os dividendos simbólicos e profissionais. As redacções fervilham com dossiers sobre presidentes caducos, actores com acidentes vasculares cerebrais recidivantes, filósofos com Alzheimer, cantores com arritmia, atletas com demência precoce… e papas. Sobretudo papas. Há um gozo mórbido e metódico em estar pronto antes do próprio defunto. As lágrimas que se vertem nas linhas são bem calculadas: choram-se tronos vagos, púlpitos libertos, audiências reencaminhadas para novos vultos.

A morte de um Papa, mais do que comoção, é reposicionamento geopolítico, reconfiguração de influências eclesiásticas, rearranjo de carreiras episcopais, reacerto de colunas de opinião. Sempre se apreciou isto. Já há bispos a limpar a batina, cardeais a actualizar contactos, monseigneurs a rever selfies com o pontífice, teólogos a publicar análises para se fazerem notar no radar do Espírito Santo — ou, vá lá, dos eleitores com barrete escarlate.

As palavras de pesar vêm sempre acompanhadas, nas entrelinhas, de um leve eufemismo de alívio e um subtil tremor de expectativa: a história recomeça, e há lugares por preencher.

Eis a hipocrisia suprema dos vivos: choram a perda de quem lhes atrapalhava os planos. Não por malícia, entenda-se — mas por pura fisiologia da ambição. A morte do outro é, quase sempre, um fim, pelo menos teórico, nas limitações que ele nos impunha. Lembro-me, quando morri, de ter ouvido de um velho conhecido — desses que em vida me dispensavam salamaleques mecânicos — um discurso pungente sobre a minha inteligência, o meu espírito e o meu estilo. Nunca mo dissera em vida. Mas morto, tornei-me elogiável. Porque já não lhe disputava os favores da posteridade. Porque já não lhe respondia.

Assim é com o Papa — e com tantos outros. Enquanto vivos, são obstáculo; depois de mortos, são ornamento. Já não incomodam: emolduram. Transformam-se em bustos, em títulos honoríficos, em temas de conferência. Tornam-se, por fim, matéria moldável: sem voz, sem réplica, sem dissenso. A santidade, como a grandeza, é quase sempre uma construção póstuma com a argamassa da conveniência.

E a imprensa? Ah, essa escreve com a pena da emoção e o tinteiro da estatística. Porque sabem, os vivos, que a morte é o maior algoritmo. Um Papa morto é mais citado que um Papa vivo. Um poeta morto é mais vendido. Um actor morto é mais ovacionado. A morte, para os vivos, é uma promoção.

E não penseis que escrevo assim por despeito. Eu próprio, Brás Cubas, só fui plenamente lido depois de morto. Em vida, era apenas um diletante com vaidades. Agora? Agora sou um clássico. E isso, permiti-me dizê-lo com modéstia necrológica, é a minha vingança mais subtil.

Termino com uma sugestão aos ainda respirantes: escrevei já os obituários dos vossos ídolos, rivais e superiores — quiçá o vosso próprio. Estareis mais descansados no dia em que o coração deles parar, e garantireis as melhores prosas quando vós próprios vos finardes. Mas, sobretudo, ide treinando o choro — pois na hora da morte alheia é necessário parecer triste… e estar discretamente pronto para ocupar o lugar deixado vago. A morte é, para o defunto, o fecho de uma porta; para os vivos, é um átrio iluminado onde cada um corre para ver se chega primeiro ao cadeirão que ficou sem dono.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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