ENTREVISTA A JOSEP CARLES RIUS, JORNALISTA E PRESIDENTE DA FUNDACIÓN PERIODISMO PLURAL

‘O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais’

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Elisabete Tavares|23/04/2025

Josep Carles Rius, 69 anos, ‘periodista’ catalão, defensor do Jornalismo enquanto serviço de interesse público e impulsionou o lançamento de meios de comunicação de serviço à comunidade na Catalunha.

Também tem investigado e abordado a crise no Jornalismo e na imprensa, sendo autor dos livros ‘Periodismo y democracia en la era de las emociones’, lançado no ano passado, e ‘Periodismo en reconstrucción’, publicado em 2016.

Na sua carreira como jornalista, foi director-adjunto do La Vanguardia, editor do El Noticiero Universal, chefe de redacção do El Periódico de Catalunya, diretor do extinto jornal Publico na Catalunha (2010-2012), e também trabalhou na TVE.

Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM

Actualmente, preside à Fundació Periodisme Plural , a única organização sem fins lucrativos dedicada ao jornalismo na Catalunha, que foi fundada em fevereiro de 2013 por um grupo de jornalistas. Esta Fundação publica vários meios de comunicação, designadamente Catalunya Plural e El Diario de la Educación, El Diari de la Sanitat e El Diari del Treball.

O jornalista também preside ao Conselho de Informação da Catalunha, um órgão de autorregulação dos jornalistas e que garante a aplicação das melhores práticas de ética e deontologia.

Rius, que dirigiu a Associação de Jornalistas da Catalunha, entre 2007 e 2010, tem um doutoramento em Ciências da Comunicação e Jornalismo. Foi também professor de Jornalismo durante 25 anos na Universidade Autónoma de Barcelona.

Josep Carles Rius / Foto: PÁGINA UM

Nesta entrevista ao PÁGINA UM, realizada na sede da Associação de Jornalistas da Catalunha, em Barcelona, o jornalista faz uma análise sobre a evolução da crise que tem vindo a afectar a imprensa e o Jornalismo e os perigos que essa crise traz para a democracia.

Josep Carles Rius alertou que a crise na informação chegou ao “fundo do poço” e isso é positivo porque, por vezes, é preciso ir ao fundo para se começar a reagir.

Defendeu que, no campo da informação, vivemos numa nova era em que é preciso “criar ilhas de credibilidade”, designadamente através de projectos de jornalismo independentes — como é o caso, em Portugal, do PÁGINA UM — para voltar a aproximar o público da imprensa e restaurar a confiança e a credibilidade na comunicação social.

Tem investigado a área do Jornalismo e a crise no sector. Não só investigou os problemas, mas também encontrou soluções. E a partir dessa análise que tem nos seus livros, quando é que começou esta crise de credibilidade da imprensa?

Bom, eu penso que a imprensa escrita tem os seus grandes anos na década de 80 e 90, que, tanto em Espanha como em Portugal, coincidem com a recuperação democrática e são anos em que a imprensa tem um grande prestígio. E é esse o círculo virtuoso de ter uma função de serviço público e, ao mesmo tempo, ser um grande negócio. A imprensa foi um grande negócio. E, ao mesmo tempo, havia alguns editores que tinham uma certa consciência social e deixavam os jornalistas trabalhar.

Penso que foi já nos anos 90 que o Jornalismo deixa de ser um contra-poder e começa a perder essa ligação com os cidadãos. Quer dizer, já não se escreve, já não se faz Jornalismo a pensar nos interesses dos cidadãos, mas nos interesses do próprio poder, porque o Jornalismo já tem os seus próprios interesses.

Então, o que acontece é que chega a crise de 2008 e tudo isto é exposto. As pessoas descobrem que a imprensa não tinha falado, por exemplo, do tema da corrupção financeira e de tudo o que acabou por ser a causa da crise. Descobrem que a imprensa não fez o seu papel. E há uma grande crise de confiança que coincide com uma crise tecnológica. As grandes plataformas começam a ter impacto. O que elas fazem é pegar no negócio da publicidade. O negócio da publicidade sai para um intermediário; aquela publicidade que ia diretamente para os media fica nas plataformas.

Livro de Josep Carles Rius publicado no ano passado. / Foto: D.R.

Sim, na altura era o Yahoo!, por exemplo…

Sim. Tudo isto leva à tempestade perfeita. A soma das crises deixa-nos com a crise dos media em 2008. Há também erros dos grupos de media. No caso de Espanha, a sua aposta na televisão privada, o que lhes causou um desgaste económico muito importante.

A soma de tudo isso faz com que a imprensa esteja muito enfraquecida no momento da crise. Ao mesmo tempo, está a ser gerada toda uma nova geração de meios de comunicação, graças às novas tecnologias. No caso de Espanha, o encerramento do jornal Público, em 2012, levou à criação de 10 projectos jornalísticos diferentes. Isso muda o ecossistema mediático.

Tudo o que aconteceu nessa altura ainda está a ser digerido. E, neste momento, temos mais meios de comunicação do que nunca, mais jornalistas a trabalhar como jornalistas do que nunca. Mas há mais precariedade do que nunca e mais fragilidade do que nunca; uma situação de precariedade e de fragilidade. Isto provoca um risco ético, no sentido em que alguns meios de comunicação social e alguns jornalistas recorrem a más práticas éticas para  conseguir audiência ou publicidade. Por exemplo, o que estávamos a falar [antes da entrevista] sobre da mistura de publicidade e informação; não que as pessoas não saibam se estão perante publicidade ou informação.

E agora há esta palavra que é ‘conteúdo’ e que vale para tudo.

Sim, sim. Conteúdo promovido. Tudo o que isto faz é degradar a qualidade dos media, de modo que a recuperação da confiança, que é a chave para realmente sair da crise, tem sido muito difícil e muito, muito complicada.

Mas  vocês, aqui na Catalunha, conseguiram algo muito importante, que foi terem avançado para a solução. Disse que, no caso do Público, acabou por gerar 10 projectos que foram criados por jornalistas que saíram do jornal e há muitos mais. Quer falar um pouco sobre o que sucedeu aqui, na Catalunha?

Bem, penso que esta crise é uma crise global da imprensa. Um dos principais países afectados foram os Estados Unidos, que tinham uma rede de imprensa local muito importante e coesa.  Cada cidade dos Estados Unidos tinha o seu próprio jornal.

E o seu canal de televisão

De televisão e de rádio e tudo isso unia a comunidade. Eram muito importantes para a comunidade. Esta soma de crises — crise tecnológica, económica, crise social — levou ao encerramento de muitos meios de comunicação social nos Estados Unidos e afectou a coesão da sociedade norte-americana.

Site do Catalunya Plural.

Penso que esta crise dos media acaba por explicar — ou é uma das múltiplas causas — a vitória de Trump em 2016. Como? Foi criado todo um mundo paralelo. Tudo e ninguém é informação. Toda uma onda emocional. Sem intermediários, longe dos meios de comunicação… Quer dizer, os meios de comunicação, como os sindicatos, como as instituições, como as ONGs [organizações não-governamentais], actuam como intermediários entre o cidadão e o poder. Se destróis isto  e se substitui por redes sociais…

Que falam diretamente, sem filtro.

Certo. Então, o que é que aconteceu em 2016?  Trump tinha toda a grande imprensa contra ele — o The Washington Post, o The New York Times — toda a grande imprensa e a maioria das cadeias de televisão. E, em vez disso, ganhou porque dominou este mundo das redes.

Mesmo numa zona mais obscura da ‘web’, onde existia o fenómeno ‘Q’, que tinha muitos  seguidores…

Sim, sim. E o papel que as igrejas evangélicas tiveram. Ou seja, foram muitas as causas, mas estava tudo um pouco fora do sistema que até então conhecíamos. Com toda aquela imprensa contra, ele ganha.

E, naquele momento, aquilo teve um efeito positivo, que foi o de uma parte da população valorizar novamente a imprensa e as assinaturas do The New York Times e do The Washington Post dispararam.

E a vitória de Trump foi considerada um acidente histórico. Mas não foi. É um acidente da história que em 2024 volte a ganhar?

Portanto, já não há qualquer efeito benéfico com as assinaturas de jornais. A sociedade anti-Trump norte-americana está em choque, não está a reagir. A imprensa está em estado de choque.

Jeff Bezos intervém no The Washington Post, mas da primeira vez não interveio. Isto agora é muito mais grave. E é o sintoma de uma situação de uma nova era. Na noite em que ele ganhou as eleições, Elon Musk  disse ao público: “agora, vocês são os media”. Claramente, uma declaração de intenções.

Livro de Josep Carles Rius publicado em 2026. / Foto: D.R.

Sim, a era em que os jornalistas não são necessários.

Exacto, o Jornalismo não é necessário. É um ataque directo ao papel do Jornalismo. E isto tem réplicas não só nos Estados Unidos. É um fenómeno totalmente novo, a desinformação, que vai contra o Jornalismo tal como o conhecemos e que deixa o Jornalismo numa posição de fraqueza.

Mas não há aqui também um outro problema, que é o facto de os jornais e da imprensa se terem muitas vezes alinhado com o poder? E de não serem contra-poder, não fazerem o seu trabalho?

Sim, sim. Quando falámos da crise de confiança, o que se tornou evidente em 2008 com a crise, foi que as pessoas descobriram que os media não eram um contra-poder: faziam parte do poder. E, de certa forma,  quebrou-se a confiança aqui em Espanha. Quando foi o  [Movimento] 15-M, os protestos nas ruas, os jovens diziam: “a imprensa não nos representa”. Era uma crítica ao poder político, mas também aos media. E tudo isto ainda cá está, esta desconfiança.

Nos Estados Unidos, estão a salvar alguns destes meios de comunicação locais muito importantes para as comunidades através de organizações sem fins lucrativos e fundações. No mundo anglófono, há uma grande tradição do papel das fundações e elas estão a voltar ao início, a comprar alguns meios.

Muitas rádios, por exemplo, foram comprada por uma organização do magnata George Soros, na altura destas eleições presidenciais.

Sim, sim. E, por exemplo, o principal jornal de Filadélfia, um jornal histórico, foi salvo por uma fundação.

E isso é importante.

Claro.  Havia dois modelos: o modelo do The Washington Post, comprado por um magnata,  ou o modelo de The Philadelphia Inquirer, que é o jornal histórico de Filadélfia, que foi comprado por uma fundação.

Quiosque de jornais em Barcelona. A imprensa tem vivido uma forte crise económica que não se deve apenas à concorrência das plataformas tecnológicas. / Foto: PÁGINA UM

Então, se estás nas mãos de um magnata, não és livre, porque no momento-chave em que querias apostar na Kamala Harris, ele não deixa, e depois entra na linha editorial. Foi o que ele fez [Jeff Bezos].

Em vez disso, o The Philadelphia Inquirer continua lá, sem essas interferências. Por isso, é preciso tentar procurar elementos positivos. Penso que entender o Jornalismo não como um negócio, mas como um serviço público, e como um serviço sem fins lucrativos, como um serviço social; isso é positivo e isso é uma lição dessa crise. E foi isso que nós aqui modestamente tentámos fazer.

E também, tecnologicamente, as grandes plataformas foram ou são parte do problema. Mas a revolução tecnológica também faz parte da solução, porque permite o lançamento de pequenos projectos liderados por jornalistas, como o vosso.

Isto é um oceano de desinformação, mas depois é crucial ter ilhas de credibilidade, abrigos, e que o cidadão encontre esses abrigos. E esse oceano de desinformação, nós não o vamos mudar. Isto está cá para ficar. Faz parte das redes, porque aquela utopia em que vivíamos de liberdade de expressão para todos… Eles controlam as redes através de algoritmos, através da forma como manipulam. Mas as redes ainda têm um lado positivo para a liberdade de informação. E o grande dever, a grande responsabilidade dos jornalistas, é criar essas ilhas de credibilidade.

E é por isso que é tão importante que haja projectos e esses projectos são agora tecnologicamente mais viáveis. É possível criar um site na Internet e intervir no debate público sem ter grandes recursos. Não tem de ser um grande jornal ou uma grande revista, uma cadeia de televisão. Mas, claro, é uma luta muito desigual, porque tens de estar aqui a lutar com todas estas tendências.

E com grandes máquinas, grandes máquinas de ataque, de desinformação, de ataque aos jornalistas que querem fazer um trabalho sério.

Claro, essas ilhas de credibilidade são ameaçadas por estas ondas.

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Josep Carles Rius alerta que, com a nova Administração Trump, nos Estados Unidos, a liberdade de imprensa está em risco, o que é uma ameaça para a democracia. Mas também aponta ‘culpas’ da crise na imprensa aos jornalistas que se tornaram activistas, seguiram ondas emocionais em vez de fazer Jornalismo, e desiludiram o público. / Foto: Jørgen Håland

Sim. E nós temos visto em Portugal que o PÁGINA UM tem sido alvo de um ataque de desinformação. Porque não querem que façamos Jornalismo. Foi algo que nos impressionou e chocou. Não estávamos à espera. Mas estava a falar aqui de projectos, projectos de Jornalismo para as comunidades. Que projectos são e como o avalias?

Claro, quando falo de ilhas de credibilidade… Por vezes, há ilhas de proximidade. Numa cidade pequena há um meio de comunicação que é o espaço de confiança e credibilidade num determinado território. Há outras ilhas de credibilidade em comunidades. Nós concentrámo-nos nas comunidades que estão na linha da frente na defesa dos direitos humanos, dos direitos essenciais, da Educação, da Saúde e do trabalho digno. Nós temos jornais especializados nestas três temáticas.

A nossa experiência — e já estamos a falar de uma experiência de mais de 10 anos —, é muito positiva em em termos de direitos fundamentais. Estas comunidades compreenderam a nossa intenção. Estamos a criar praças, espaços públicos de confiança, onde podem encontrar informação precisa e rigorosa. E, ao mesmo tempo, um espaço de encontro onde podem debater, publicar os seus blogues, publicar os seus artigos e interagir entre si — ou seja, revistas educativas, tanto em catalão como em espanhol.

E disponibilizam isso?

Claro. É onde as opiniões são trocadas, onde a comunidade se conhece. Veja-se o Diário da Educação: quase 50% do conteúdo é gerado pela própria comunidade através de artigos, blogues, reflexões. Acima de tudo, o nosso valor é criarmos o espaço para que ele seja encontrado. Obviamente, fazemos jornalismo especializado em Educação e damos-lhe essa informação. Mas, além disso, é uma praça pública, um local onde a comunidade se reúne e se encontra num clima de respeito e confiança. Os professores, por exemplo.

A informação que os grandes meios de comunicação produzem sobre Educação é altamente condicionada pela necessidade de obter cliques, para terem audiência. Depois, distorcem a realidade da Educação, ou seja, um problema numa escola é ampliado porque isso dá audiência.

Foto: D.R.

Por outro lado, uma experiência positiva numa escola não acontece, não aparece, porque não recebe cliques e agora tudo isso está a acontecer na imprensa mainstream. É tudo uma questão de cliques.

Depois, tem de se criar estes abrigos, com um espaço onde não julgamos. Não procuramos quantidade, procuramos qualidade. O nosso valor é que sejam públicos de professores, de professores universitários, de mestres, que comunicam.

E não está sujeito a algoritmos nem nada.

Claro. São espaços reservados onde, por exemplo, as newsletters são extremamente importantes, porque permitem aceder diretamente sem passar por uma rede social. Fazemos fóruns de cinema, reuniões, também fazemos de eventos presenciais para que a comunidade se possa reunir.

E que tenham confiança no Jornalismo e nos meios, em termos daquilo que é a qualidade da informação. Uma entidade fidedigna, entidades fidedignas em termos de qualidade da informação, que é algo muito importante.

Claro, claro. Este oceano, este mar imenso de desinformação, de discurso de ódio, manipulação, pós-verdade. Tudo isto está aqui: as redes, o TikTok, ou o que quer que seja.

Estamos em 1984, como no livro.

Sim, sim. Completamente. E vamos continuar. Não vamos conseguir mudar.

Então, o que tem de se fazer é criar ilhas [de informação credível]. E depois, criar também a partir da sociedade. Por isso, é importante a Associação de Jornalistas [da Catalunha], o Conselho de Informação da Catalunha. A partir da sociedade civil também; procurar ter uma cumplicidade da sociedade. Para que a sociedade seja consciente, primeiro temos de dar-lhes instrumentos para que encontre essas ilhas de credibilidade, para que saibam que existem e que se pode refugiar ali.

Depois, do ponto de vista político, temos de ser exigentes e pedir, por exemplo, os meios de comunicação social públicos… É importantíssimo que os meios públicos sejam responsáveis e sejam equitativos, transparentes e não sejam instrumentos do poder. Por isso, tem que se lutar pelos meios de comunicação social públicos.

Sim, porque há algo de confusão entre o que é público e a política e o governo, que são separados. O público somos todos nós. Os que pagam os impostos. Isso é público e é necessário apoiar o Jornalismo por aí também; mas não é o governo ou os políticos. Mas tem havido um pouco de confusão. Um pouco não, muita.

Em Portugal, também..

Então, tem que se ter uma exigência constante.

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A evolução da tecnologia também trouxe uma oportunidade aos media, e hoje é possível criar jornais e revistas digitais com baixo orçamento e que servem o interesse público. Foto: D.R.

E acredita que esta experiência que é já um caso de sucesso, porque já tem uma década, é importante que seja um exemplo? Por exemplo, para aquilo que será a importância do Jornalismo para a democracia, que é um tema que falou no seu último livro. Por exemplo, mencionou o caso de Trump, mas temos aqui graves problemas também na Europa. No caso de Trump, temos também o problema com os media mainstream, que diziam, por exemplo, que Biden estava muito bem, o que não era verdade, e todos podiam ver isso. Pensa que os jornalistas também têm de seguir mais esse exemplo seu, e não aquele que foi feito nos últimos anos? Fazer jornalismo, não contra algo, mas pela democracia.

Sim, é assim. Claro. Quando falamos das Ilhas de credibilidade, eu entendo que são ilhas de credibilidade onde o que impera é o Jornalismo. Mas pode-se criar ilhas que são refúgios ideológicos. Quer dizer, eu, diante deste mundo, crio um espaço onde só me comunico com os que pensam como eu e juntos defendemo-nos contra o inimigo, que são os que pensam diferente. O risco — e isso estaria mais no activismo — é que o Jornalismo não crie abrigos de Jornalismo, mas sim abrigos ideológicos. Pode haver ideologias que a ti te pareçam melhor, ou ideologias que consideras que, no caso, por exemplo, da extrema-direita, como o fascismo ou o neonazismo, que atentam diretamente contra a democracia. Por isso, penso que no Jornalismo temos de reivindicar ilhas de credibilidade jornalística.

O que é que se passa aqui, o que é que vivemos? Antes de mais, temos de recordar constantemente é que sem democracia não há Jornalismo e sem Jornalismo não há democracia. Vimos isso na Rússia. Putin eliminou o Jornalismo, não foi? E o risco agora nos Estados Unidos também existe, e na Hungria existe e noutros locais.

Temos que ser muito claros que temos que ser militantes da democracia. A democracia é fundamental, porque se não houver democracia, não há Jornalismo, não há liberdade de informação, nem de expressão. Então, isto é básico.

Qual tem sido o grande problema? Nos últimos anos, tem havido uma série de ondas emocionais, estados de emoção. Nós, na Catalunha, experienciámos isso. Muitos jornalistas aderiram à onda de emoção em vez de dizerem: “não, não, temos de manter aqui o rigor da informação e não nos deixarmos levar por esta onda de emoção”.

O caso do Brexit. O Brexit é um caso de uma onda emocional para os nacionalistas britânicos. Disseram à Europa: “nós somos melhores, Europa fora!” E agora estão arrependidos, mas o mal já está feito. No caso dos Estados Unidos, Trump está a cavalgar uma onda emocional que é toda a crise, certo?

Da crise, da classe média americana, especialmente da América profunda, não das zonas costeiras e assim por diante, que está à procura de inimigos. E isso já aconteceu nos anos 30.

 Isto é uma repetição?

Certo, e depois procuras o inimigo, procuras o imigrante. O Jornalismo não pode surfar nas ondas emocionais; é preciso enfrentar as ondas emocionais, mesmo que a família, o ambiente, os amigos estejam no meio da onda emocional. O que vivemos aqui na Catalunha com o processo foi uma onda emocional.

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Josep Carles Rius defende que se devem criar ‘ilhas de credibilidade’ no espaço digital, onde o público pode encontrar informação credível e fiável. Essas ilhas são, por exemplo, projectos de jornalismo independente. / Foto: D.R.

As famílias divididas.

Sim, sim. Não foi uma só. Depois claro, desde o início que eu disse: “não, não. Cuidado!”

Mas vimos a mesma coisa durante a pandemia ou na questão da Ucrânia ou de  Gaza. Quase não se pode fazer perguntas ou pedir dados. Na pandemia, alguém era considerado negacionista e anti-vacinas só por pedir dados! E em relação à Ucrânia, és  Putinista e, em relação Gaza, és considerado pró-Israel.

Sim, sim.

E isso é perigoso para o Jornalismo e, especialmente quando se trata de jornalistas, por vezes, ir ao encontro dessas emoções.

Como as emoções têm tanto poder e também agora as pessoas têm tantas formas de se exprimirem, porque às vezes as emoções e a manipulação das emoções, mas agora podem exprimir as vossas emoções imediatamente.

Através do Whatsapp ou de memes.

Estamos numa manipulação das emoções, mas há também mais ferramentas para manipular essas emoções: algoritmos, as redes.

Temos problemas ou situações muito antigas, que fazem parte do ser humano. O ser humano não mudou muito nos últimos 3.000 anos. Só que temos uns instrumentos super poderosos, como a inteligência artificial. Tudo isso torna o desafio, que nós jornalistas temos, muito mais complexo e mais importante para intervir e actuar.

Assisti a alguns jornalistas, não só nos Estados Unidos, mas em Portugal, que confundiram um bocadinho, o ser militante da democracia com ser militante de Biden, ou de  Kamala Harris ou de Trump. E a democracia pode ser personalizada assim, em partidos? Como um jornalista pode ser militante da democracia e conseguir ver os factos de uma forma não emocional?

Nós aqui, por exemplo, no Conselho de Informação da Catalunha, fizemos uma declaração muito extensa e contundente quando nas últimas eleições locais a extrema-direita teve muitos votos aqui em Espanha e especialmente na Catalunha. Porque aqui temos dois partidos de extrema-direita: o espanhol e o catalão. E muitos jornalistas, sobretudo dos meios de comunicação locais,  tiveram pela primeira vez de lidar com porta-vozes e políticos de extrema-direita. Agora estão presentes em quase todas as câmaras municipais. Os jornalistas locais estavam, pela primeira vez, a lidar com um discurso de extrema-direita.

Penso que um jornalista tem de procurar a justiça, a honestidade, tudo para informar, não para ser um activista de uma causa, mas tem de ser claro sobre onde estão os limites.

Estar informado também.

Nesse caso, fizemos uma declaração muito forte, afirmando que não se pode tratar a extrema-direita como o resto dos partidos políticos, porque a extrema-direita no seu programa, no seu essencial, tem o ódio. Quer eliminar uma parte da população. Recorre a mentiras, nega a Ciência, vai contra todas as evidências de topo o tipo.

Portanto, o jornalista tem de confrontar este discurso, não pode simplesmente pôr o microfone e fazer com que isto saia. Penso que há aqui que estabelecer alguns limites.

A tragédia ocorrida em Valência gerou muita desinformação e foi um ‘abre-olhos’ para muitos, em termos da crise actual de informação que vivemos, segundo Josep Carles Rius. / Foto: D.R.

Isso é algo que os jornalistas têm sempre de fazer, certo?

Sim, sim, mas isto realço isso. É claro que outros podem tentar enganar-nos. Mas isto faz parte da política deles, faz parte do programa deles para enganar.

Temos visto, pelo menos em Portugal, que muitos media se limitam a ser pé de microfone com a generalidade dos políticos. Não é também um mau hábito do jornalista? Porque colocam o microfone e esperam que o político fale. Mas agora o político é outro…

Sim, sim, certo.

Também é um despertar para muitos jornalistas.

Sim, sim. Por isso, no caso da Catalunha, dos jornalistas, sobretudo dos jornalistas mais locais, foi um despertar absoluto. Porque de um dia para o outro encontraram-se com interlocutores que nunca tinham enfrentado antes. Que estavam a quebrar as regras.

Então, o hábito de pôr o microfone e deixá-los dizer o que quiserem, estava a começar a ser perigoso, porque o que eles estavam a defender é a expulsão dos meus vizinhos, que são negros. Cuidado, isto é perigoso.

E muitas vezes com mentiras ou com algo manipulado, com muitas imagens.

Penso que houve uma mudança no caso de Espanha, nas últimas eleições locais, em que a aliança catalã, que é um partido pró-independência, mas de extrema-direita, entrou em cena. E o VOX consegue muitos deputados. Há uma mudança. E nós, no Conselho de Informação da Catalunha, produzimos um documento muito, muito duro e que não foi compreendido por toda a gente. Havia pessoas que diziam: “não, não, não; tens de tratar toda a gente da mesma forma”. Ou dizem que a extrema-esquerda está a fazer a mesma coisa. Não, a extrema-esquerda não quer expulsar os teus vizinhos. Ela pode ser muito rude, mas isto não.

Sim, claro que não é a mesma coisa. Em todo o caso, por exemplo, na pandemia, testemunhámos a existência de discurso de ódio de políticos de extrema-esquerda, de políticos de extrema-direita, de centro, contra grandes cientistas mundiais. Cientistas que alertavam que o caminho a seguir era o da Suécia, que estava a fazer melhor a gestão da pandemia. Depois, as emoções tomaram conta de muitos jornalistas, que deixaram de ser isentos e independentes – um tema de que fala no seu livro. Temos de ter muito cuidado para não emitirmos involuntariamente discursos de ódio com o nosso ‘microfone’.

Sim, sim.

Durante a pandemia, foi um choque ver pessoas a ser vítimas de perseguição e de censura, porque não estavam alinhados com os políticos e com a onda emocional. Para os jornalistas é um desafio.

Sim. Nós vivemos algumas situações que colocaram o Jornalismo à prova.

Mas é positivo. Pensas que há um bom futuro para o Jornalismo e para os jornalistas?

Penso que sim, mas sendo claro que o desafio é muito difícil. Não se pode ser incauto. Isso e vai depender da determinação e da vontade dos próprios jornalistas de encontrarem também cumplicidades com a sociedade, de ser exigentes politicamente.

Agora há uma boa oportunidade com as novas leis europeias. A directiva de liberdade de imprensa [Media Freedom Act] é um bom marco. Mas cada Estado tem de a aplicar e veremos como será aplicada. E aqui temos que ser exigentes, temos de acompanhar e temos feito muitas coisas aqui. Estamos muito envolvidos na tentativa de fazer com que o governo use bem isto, aplique bem este quadro jurídico europeu.

Porque pode ser bem aplicado ou mal, dependendo do uso que o poder político lhe quer dar.

Claro que depende da vontade política.

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Para Josep Carles Rius, o jornalista não pode ser apenas um pé de microfone. / Foto: Kane Reinholdtsen.

E com toda esta crise de Informação, esta quebra de confiança que houve entre o público e os meios de comunicação social clássicos, pensa que há um futuro positivo, no sentido em que vamos conseguir sair disto com uma imprensa credível e com a população a entender que tem de a apoiar?

Penso que, às vezes, temos que bater no fundo do poço para começar a agir.

Pensa que chegámos ao fundo do poço?

Penso que sim. Por exemplo, no caso da tragédia de Valência, toda a desinformação que houve… Foi um abre-olhos para muita gente.

No caso do Trump, foi uma desgraça; está a ser um abre-olhos também. A situação na Sala Oval com Zelensky, teve impacto. O papel do Elon Musk também é revelador.

Tem de estar a correr algo muito mal para começarmos a perceber que temos de reagir. E a chave aqui é a Europa. A Europa tem a capacidade de reagir, certo?

Porque, nos Estados Unidos, os democratas e todas as pessoas que sentiram que perderam as eleições ainda estão em choque, mas vão reagir. Acredito que sim, e haverá decisões judiciais. E o The New York Times está a resistir.

Para chegar aos jovens, a melhor forma é através dos professores e da comunidade educativa, designadamente via publicações especializadas, defende Josep Carles Rius.

Mas claro, é preciso de mais pessoas reajam. Aqui, por exemplo, a onda emocional que tivemos com o processo que nos levou  a uma situação muito difícil, abriu muito os olhos das pessoas. E penso que a repetição do que aconteceu aqui seria impossível agora, porque muitas pessoas não aceitariam, sentiram-se enganadas.

E o Brexit? O mal está feito, mas a sociedade agora aceita que estavam errados, que foram enganados por tudo isto.

Bem, eu sou um optimista por natureza e penso que a sociedade vai reagir, mas nós temos um papel muito importante, como jornalistas, para manter os padrões éticos e criar estas ilhas de credibilidade.

E os jovens, temos de pensar nos jovens que já não leem os meios de comunicação clássicos, nem veem televisão nem nada; é tudo TikTok.

É por isso que penso que é muito importante chegar aos professores, para ajudar a formar os jovens. Chegar diretamente aos jovens, é muito difícil, mas há pessoas que, durante 6 horas por dia, chegam aos jovens e que são os professores. Por isso, é preciso cuidar dos professores, dar-lhes instrumentos para isso.

Por isso, criámos há mais de 10 anos duas publicações de Educação para os professores, que dão aos professores ferramentas para formarem mediaticamente também os seus alunos. Os jovens que com 15, 20 ou 25 que estão no TikTok, quando chegarem perto dos 30, deixem o TikTok e passem para um jornal ou se informem melhor.

Talvez o jornalismo também possa entrar um bocadinho nessas plataformas.

Sim, sim. Isto é um desafio, mas penso que há três formas de chegar aos jovens: através do TikTok; através das famílias; e através dos professores — do mundo docente, não diria só professores, mas toda a comunidade educativa.

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