PROMISCUIDADE NA IMPRENSA
Director de jornal local diz que autarquia socialista de Lagoa aceitou contrato fictício

O director e proprietário do jornal ‘Lagoa Informa’, Rui Pires Santos, admitiu publicamente, num editorial publicado hoje, na página 13, que o contrato de cobertura mediática travestido de prestação de serviços de publicidade institucional, celebrado com a Câmara Municipal de Lagoa, no decurso de um concurso público, contém cláusulas que “não são cumpridas”.
Nesta confissão, inserida num texto deste jornalista, que assinou o contrato comercial, é omitida a notícia do PÁGINA UM do passado dia 16, e o director do jornal local queixa-se de uma alegada ‘perseguição política’ por “elementos da Comissão Política do PSD Lagoa”. Contudo, acaba por confirmar os fortes indícios de falsidade contratual, colocando em dúvida a validade de um concurso público que atribuiu quase 100 mil euros ao jornal ‘Lagoa Informa’ para os anos de 2025 e 2026, em detrimento de outro candidato. E diz mesmo que a autarquia aceitou.

O contrato agora em causa, sob a capa de uma prestação de serviços de publicidade, inclui contrapartidas explícitas, impondo ao jornal uma cobertura sistemática e favorável das actividades da autarquia socialista. As cláusulas obrigam, por exemplo, que no mínimo 70% dos conteúdos sejam dedicados à “actualidade e figuras do concelho” e exigem ainda “presença no terreno” em eventos municipais, com a cobertura mediática por jornalistas acreditados, o que configura graves violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista, por se estar perante um ‘frete jornalístico’ institucionalizado.
Segundo Rui Pires Santos, estas cláusulas não passam de letra morta, como o próprio confessa no seu editorial: “alguns responsáveis do PSD não devem conhecer, nem ler o ‘Lagoa Informa’ para compreenderem que as mesmas [cláusulas] não são cumpridas”. E avisa os seus supostos detractores: “Portanto, talvez devessem ter mais contenção, moderação e não ter esta postura de perseguição, que revela ignorância e replica maldade do texto partilhado. Mas isso dá-vos gozo, eu sei. Até porque, na verdade, este até já é um comportamento normal num conjunto de pessoas”.
O director do ‘Lagoa Informa’ garante que, no passado, a ‘Gazeta de Lagoa’ – um jornal actualmente inactivo, embora ainda registado na ERC, em nome de Ana Maria Jesus Linha – teria recebido da autarquia local “valores médios de 120 mil euros por ano […] entre, por exemplo, 2003 e 2013.”, acrescentando que “há registos oficiais desses números”. E promete que “um dia até poderei publicá-los, para os recordar mais em pormenor e, quem sabe, reavivar a memória de alguns destes militantes do PSD mais distraídos sobre alguns mirabolantes e ‘épicos’ episódios de chantagem e pressão, de que vários políticos lagoenses têm conhecimento”.

Saliente-se que, no Portal Base, apenas constam diversos contratos de publicidade da autarquia local em 2008 e 2009 com Ana Maria Linha, a responsável da Gazeta de Lagoa, em valores diminutos (da ordem das centenas de euros, cada). A partir desse último ano, passaram a ser feitos contratos de assessoria de comunicação com Ana Maria Linha, que duraram até 2017, mas num período em que, segundo apurou o PÁGINA UM, a Gazeta de Lagoa já não publicava com regularidade.
Independentemente da situação anterior, o editorial do director do ‘Lagoa Informa’ e gerente da empresa Pressroma constitui uma admissão inequívoca de incumprimento contratual, colocando em causa a legalidade do procedimento concursal e da execução do contrato. Em direito administrativo, um contrato público pode ser considerado nulo se for celebrado com base em declarações falsas ou intenções não genuínas de cumprimento. No seu editorial, Rui Pires Santos diz que “relativamente ao referido contrato [assinado este mês], constam cláusulas que, de facto, poderiam colocar em causa a liberdade de imprensa, se as cumpríssemos”, mas adianta que tal “não acontece e isso pode facilmente constatar-se e provar em cada edição do jornal”.
Rui Pires Santos, que tem a carteira profissional de jornalista 3240, acrescenta ainda que “a discordância dessas cláusulas, demos a devida nota ao executivo camarário, que não soube explicar como as mesmas foram parar ao contrato, nem os serviços jurídicos da autarquia se mostraram disponíveis para as retirar do documento, alegando questões legais relacionadas com as regras de contratação pública”, manifestando ainda que “desde cedo, ficou explícito e vincado que não as íamos cumprir, tal como no passado, não tendo existido oposição a esse facto”.

Do ponto de vista legal, se a autarquia de Lagoa adjudicou um contrato tendo por base um caderno de encargos cuja execução real é desconsiderada pela outra parte, com a sua concordância implícita, estar-se-á perante um contrato simulado, com o objectivo exclusivo de financiar um órgão de comunicação local próximo do poder político, quer em termos ideológicos quer regionais. Aliás, o recente contrato foi celebrado após concurso público, o que ainda agrava a promiscuidade, ao qual também se candidatou outra empresa de media, a Minius Publicações, proprietária do semanário AltoMinho.
Esta tentativa de justificação histórica não só não iliba o actual contrato como evidencia que a prática de usar dinheiros públicos para sustentar jornais locais é recorrente e aceite como normal por sectores políticos diversos. O facto de Rui Pires Santos assumir que as cláusulas do contrato não são cumpridas, apesar de ter aceite formalmente as mesmas para vencer o concurso público, sugere que este procedimento poderá ter sido apenas uma formalidade para justificar legalmente um financiamento público previamente acordado. Se assim for, de acordo com juristas consultados pelo PÁGINA UM, além da eventual nulidade do contrato, poderá haver responsabilidade por viciação de concurso público, o que justifica a intervenção de entidades fiscalizadoras como o Tribunal de Contas e o Ministério Público.
Perante esta confissão pública de incumprimento, que poderá configurar conivência com práticas contratuais fraudulentas e gestão danosa do erário público, o PÁGINA UM contactou hoje o gabinete do presidente da edilidade, o socialista Luís Encarnação, que se candidatará para um segundo mandato nas próximas autárquicas. O chefe de gabinete do edil, José Manuel Albino, respondeu que, tendo em conta “a matéria em causa”, as questões formuladas foram remetidas aos “serviços de contratação para melhor análise e apreciação”.
Recorde-se que, na passada semana, depois de em Março ter aprovado uma deliberação menorizando a promiscuidade do anterior contrato de 2023, a ERC prometeu “abrir um procedimento de averiguações para aferir da existência de eventuais irregularidades”.

Na semana passada, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) também prometeu pronunciar-se perante esta promiscuidade contratual, proibida por lei, mas a reunião do Secretariado foi adiada. Na semana passada também foram colocadas questões ao gerente da Pressroma e também director do Lagoa Informa, Rui Pires Santos, mas não houve ainda qualquer resposta.
De acordo com o Portal Base, desde 2019 sucedem-se os contratos envolvendo publicidade, e não só, entre a Pressroma e três municípios algarvios, onde Lagoa surge em destaque com 490.518 euros. Os montantes dos contratos com Albufeira e Portimão são mais ‘modestos’: 52.716 e 20.018 euros, respectivamente.