COMPLEXO TITANIC
O cabelo dos futebolistas como espelho da masculinidade mediática

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Ao contrário do que gostariam os cronistas desportivos, os cabeleireiros de bairro e os comentadores que ainda dizem “à homem”, o cabelo dos jogadores de futebol nunca foi apenas cabelo. Foi sempre mais: disfarce, bandeira, extensão da psique ou mesmo assinatura visual. E, por vezes, tudo isso ao mesmo tempo — dependendo da década, da câmara e da audiência.
Num jogo onde a cabeça serve tanto para pensar como para marcar golos e fazer cortes, o cabelo tornou-se palco, cortejo e camuflagem. Nunca inocente nem neutro. Porque a verdadeira disputa, como se sabe, já não é apenas com os pés. O cabelo a todos os níveis e em qualquer circunstância é sempre importante. Então no futebol…
Durante muito tempo, a cabeça do jogador era um território em teoria disciplinado. Sóbrio, previsível e funcional. Cortes curtos, milimetricamente higiénicos, que cumpriam o código de uma masculinidade silenciosa, sem adornos nem desvios. Era uma ética do cabelo contido — como se uma madeixa fora do lugar pudesse pôr em risco o equilíbrio táctico da equipa.
Bobby Moore, Beckenbauer, Eusébio: homens cuja relação com o cabelo era a de um técnico de equipamentos com a gravidade. Nada se arriscava. O corte era um contrato com a virilidade operária. Nenhum deles diria a palavra “estilo” sem tossir.

Até que veio a explosão laranja — e com ela, o primeiro cabelo verdadeiramente subversivo. A selecção holandesa dos anos 70 levou ao relvado não apenas um novo sistema táctico, mas também uma estética que parecia saída de uma sala de ensaios da Island Records. Cruyff e os seus companheiros jogavam como se filosofassem e penteavam-se como se fossem sair numa capa dos Pink Floyd. A primeira equipa sem duvida a funcionar no colectivo a esse nível.
Cabelos compridos, franjas despreocupadas, um toque de boémia estudada. Ali, a revolução já não se fazia apenas nos pés: fazia-se nas cabeças. Jogar bem e parecer alguém que podia recitar Rimbaud. A franja como armadilha conceptual. Não era apenas uma equipa com cabelos compridos: era uma estética colectiva em revolta contra o formalismo higiénico do futebol europeu da época.
O cabelo era parte do sistema: a fluidez táctica do “futebol total” encontrava eco nessa fluidez dos penteados que pareciam só fazer raccord com as micto revoluções de costumes da época mas o futebol até aí era visto como conservador e paladino dos regimes políticos.

Enquanto os alemães tinham um Paul Breitner arrojado e os ingleses um George Best bêbedo e amalucado mais uma ou outra excepção, a laranja mecânica sem dúvida era também laranja psicadélica. Um movimento capilar táctico que antecedeu em décadas o conceito de branding visual, só que com charme, irreverência e zero gel, influenciando alguns jogadores portugueses como Victor Baptista do Benfica— o do brinco.
Mas talvez o primeiro a fazer do seu cabelo e penteado um freak show tenha sido mesmo George Best, que disse um dia que só tinha estado umas horas sóbrio na vida, mas que foram as piores da vida dele. Uma personagem especial.

Já nos anos 80, o cabelo passou para outro plano. O futebol, transformado por televisões omnipresentes e contratos publicitários obscenos, descobriu o seu lado performativo — e o cabelo, outrora submisso, tornou-se símbolo de identidade mediática. Maradona foi o ícone perfeito dessa transição.

A sua cabeleira não era penteada, era mais desalinhada ainda que certinha no arco. Um animal capilar, indomável, denso, insolente. Aquilo não era cabelo, era um manifesto com pernas e cocaína. Um acto de insubmissão. A cabeça de Maradona jogava o seu próprio jogo: um jogo de desobediência estética, de desordem gloriosa, de caos coreografado com talento de um anjo caído. Em Barcelona era conhecido como Pelusa Maradona.
Os anos 80 foram também a década da franja curta à frente e do cabelo comprido atrás — o famoso mullet, corte de dualidade esquizofrénica. Um penteado de fronteiras instáveis, muito usado por futebolistas sul-americanos e europeus, como se o pescoço tivesse vontade própria. Era o início de uma relação mais marcada entre masculinidade e estilo.
Foi também a era do bigode e cabelo espesso, dos caracóis controlados a custo de mousse e dos cortes geometricamente desalinhados. A televisão a cores e os replays aproximaram as cabeças dos espectadores — e o cabelo teve de reagir, criar presença. Ainda não havia redes sociais, mas já havia replay em câmara lenta. E o penteado tinha de aguentar essa exposição a 24 frames por segundo
A estética era uma mistura de virilidade televisiva e boémia moderada. Os penteados jogavam com alguma irreverência, mas sempre dentro de uma certa contenção: ousavam, mas não colapsavam. Paolo Maldini exibia um cabelo que oscilava entre o guerreiro grego e o galã de novela brasileira. Hugo Sánchez parecia aplicar laca com régua. O futebolista dos 80s ainda era, no fundo, um homem que queria parecer sério — mesmo quando se penteava como cantor de casino.
Havia estilo, mas ainda não havia branding. Havia também vaidade, mas ainda não era bem um produto. O cabelo dos 80s era identidade, não se tratava ainda de mercadoria. A rebeldia vinha do estilo de vida — não do contrato publicitário. Era o último suspiro do jogador como ser humano quase privado.
Depois os anos 90 aceleraram tudo. Aí é que foi um a ver se te avias
O cabelo dos futebolistas tornou-se uma espécie de carnaval forever, laboratório de estilos, catálogo de experiências com final infeliz. O futebolista já não se limitava a marcar presença no jogo: precisava de marcar posição na estética do tempo. Era preciso aparecer. E o cabelo passou a ser prova de vida, território de invenção e, muitas vezes, desastre programado. O ridículo deixou de ser risco: passou a ser método. Nunca a Isabel Queiroz do Vale tivera tanto trabalho, já para não falar do disparo de vendas do shampoo Vidal Sassoon tal a influência que começavam a exercer nos media.
David Beckham elevou o processo capilar à categoria de fenómeno. Cada corte seu era um comunicado oficial. Da cabeça rapada ao moicano simétrico, do loiro platinado à franja calculadamente desalinhada, Beckham transformou a cabeça num outdoor rotativo.

Era jogador, sim, mas também produto e figura de desejo. E o cabelo, respondia às exigências da indústria. A cada corte, um novo contrato com a fama. Beckham percebeu que, no futebol moderno, o talento dura 90 minutos. Mas a imagem, joga um prolongamento permanente. O estilo dandy choninhas estava na moda e agora já eram as séries tipo Marés Vivas a copiar o estilo visual de futebolistas.
David Beckham preconizou e encaixou no termo metrossexual que nem ginjas. Até parece que o termo usado pela primeira vez pelo jornalista Mark Simpson fora inventado para ele. Hoje é um termo pouco usado e substituído por muitos outros possíveis e cada vez mais refinados.
O colombiano Valderrama será talvez o caso mais desafiante dessa estética que eleva os cabelos á condição de actor principal. Manteve sempre ao longo dos anos o mesmo estilo de cabeleira longa encaracolada mas estranha, sobretudo durante os democráticos anos 90. Uma loucura!
Já no novo milénio, o cabelo tornou-se uma linguagem global. Uma mercadoria visual com gramática própria. Cristiano Ronaldo, Neymar, Pogba, Arturo Vidal: cada um com a sua assinatura capilar e com a sua identidade estrategicamente desenhada acompanharam a revolução chamada Internet que finalmente já era acessível a toda a gente. E aí a loucura foi total. Cabelos geometricamente rasgados, dégradés que pareciam obras de engenharia, colorações de laboratório. O futebolista já não era apenas jogador: era influencer, modelo, avatar. O cabelo deixou de ser natural — passou a ser curadoria.

Neste cenário, jogadores africanos e latino-americanos transformaram o cabelo em afirmação cultural e política. Não era apenas estilo: era identidade em alta resolução. Das tranças fluorescentes de Taribo West às cristas neo-tribais de Cuauhtémoc Blanco, os cabelos tornaram-se gestos de presença. Contra a invisibilidade europeia, o excesso como resposta.
O relvado tornou-se espaço de disputa simbólica. Havia uma rebeldia codificada em cada risco, em cada cor, ou em cada provocação capilar. Era também aí que se jogava o jogo — longe da bola, mas perto da história.
Zidane, claro, fez o movimento inverso. A cabeça rapada talvez como recusa muçulmana. Um silêncio estético. Um apagamento deliberado da vaidade. A austeridade como posição ética. Não queria ser visto — queria ser compreendido. Mas foi com essa mesma cabeça, limpa de ornamentos, que desferiu a cabeçada mais célebre da história recente em Materazzi. Como quem diz: o cabelo pode não dizer tudo, mas a cabeça ainda pode falar. Um gesto como ruptura com o sistema da imagem?

E ainda há o caso do Ronaldo Fenómeno — o único jogador que conseguiu fazer do cabelo uma piada internacional.
No Mundial de 2002, deixou na testa um triângulo minúsculo e absurdo, uma provocação sem legenda, uma sabotagem simbólica que desafiou toda a lógica publicitária. Esse penteado ou lá o que era aquilo, não era bonito, nem coerente, muito menos prático e não fez moda. Era simplesmente um acto de nonsense. Um corte que parecia escrito por um surrealista bêbado sem dormir há dias. Um gesto dadaísta emitido em directo para três mil milhões de espectadores. E ninguém esqueceu porque a inutilidade, quando bem feita, é inesquecível. O filósofo espanhol António Escohotado disse um dia antes de morrer há três anos, referindo-se ao Fenómeno que já era presidente do Valladolid, tratar-se sem dúvida de uma das pessoas mais inteligentes que tinha conhecido em vida.

Foi uma surpresa agradável.
Mas se os jogadores jogam com o cabelo, os treinadores jogam com a cabeça — literalmente. A estética do treinador obedece a outra lógica: não quer bem seduzir, quer respeito. O jogador procura desejo, o treinador exige autoridade. E o cabelo, ou a sua ausência, é parte da táctica. Mesmo agora que são cada vez mais novos.
Durante décadas, os treinadores preferiram a sobriedade capilar. Cabeças nuas, calvícies assumidas, riscas laterais discretas. A autoridade era incompatível com a vaidade. Guardiola, Sarri, Spalletti: carecas não por destino, mas por escolha estratégica. A superfície lisa como extensão de um cérebro onde a vaidade foi substituída pela geometria do pressing.
Mourinho, por outro lado, criou um corte blindado à entropia. Cabelo sempre igual, sempre calibrado. Uma espécie de colete táctico para a cabeça — nem uma ponta fora de sítio, como se uma franja desalinhada pudesse pôr em causa a linha de quatro defesas. Muito militar. O seu cabelo diz muito do seu jogo.
Mas nem sempre foi assim.
César Luis Menotti que nos deixou à pouco, foi não só o arquitecto do futebol ofensivo argentino como o primeiro treinador rock’n’roll da história moderna do desporto. E foi campeão do mundo em 1978 com a Argentina, ainda que a jogar em casa e com uma vitória muito suspeita por 6 golos sobre o Peru sob uma ditadura militar de Videla. Mas isso é lance para outro penálti como dizem os filipinos.

No entanto, via-se logo na cabeleira que o menino era diferente.
Longe da austeridade militar dos seus pares, Menotti trazia um cabelo pop-glam ‘setentista’, comprido, ondulado, com entradas dramáticas mas sem abdicar do volume — como se tivesse saído directamente de uma jam session dos Rolling Stones .
Sempre com cigarro na mão, o seu estilo era uma antítese dos treinadores-furriel da época. Mais próximo de um poeta boémio do que de um gestor de balneário, Menotti fez do cabelo uma declaração de princípios. Um elogio à liberdade.
O treinador que também havia sido jogador era magro, alto, desgrenhado e carismático — um pensador político do futebol com aspecto de guitarrista new age. E isso contagiava o jogo. Para ele, o futebol tinha de ser bonito, criativo, desobediente — e o cabelo, claro, dançava essa música.
E há o caso do argentino Passarela que já nos anos 90 proibiu mesmo os jogadores da selecção de ostentarem cortes arrojados e instigava-os a não fazer a barba acreditando que assim a testosterona necessária para ganhar o jogo viria para o relvado sem passar pelo balneário.
Não resultou.
Hoje, com a moda dos transplantes capilares, o cabelo dos jogadores entrou na era da ficção clínica. Não se trata de questões de genética, mas talvez de investimento. Não é bem biologia. É mais tecnologia aplicada ao ego.
De Istambul a Braga, de clínicas discretas a viagens com hashtag, os folículos são comprados como se fossem cláusulas de rescisão. O cabelo tornou-se prótese emocional. Uma negação da finitude. Até a calvície é agora opcional. O jogador moderno tem de ser completo: veloz, adaptável, resiliente e esteticamente confiável até à ultima selfie.
No fundo, o cabelo dos futebolistas é um campo de batalha simbólica, um espelho das ansiedades do tempo. É onde se negoceia o desejo, se encena a masculinidade, se mede o capital de atenção. Porque a cabeça, no futebol e na vida, está sempre em jogo. Quem controla o cabelo, controla o clique das câmaras. Quem domina a imagem, escreve o relato.
Mas estranhamente o cabelo dos futebolistas nos últimos anos voltou a parecer-se com o dos primórdios. São quase todos iguais, rapado na zona da orelhas e do pescoço e depois um cabelo curto normalmente com risco ao lado a dar o volume. Eu diria, militarizado. Estranho. Provavelmente, tenha sido substituído pelas tatuagens e disso pouco sei.

E talvez, em breve, vejamos o primeiro jogador com cabelo renderizado por inteligência artificial. Um penteado dinâmico, que muda conforme a intensidade do jogo, a emoção do público, ou a vontade do patrocinador. A cabeça como interface.
E nesse dia pixelizado talvez percebamos que o último cabelo verdadeiramente livre num corpo aprisionado foi o de Maradona. Até aí o argentino foi diferente.
Corte para fade.
Ruy Otero é artista media
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