Milagre seria o camião de areia parar no ar, meditar sobre a vida e recuar

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Serafim|31/05/2025

Como gato idoso e culto que sou — e ainda por cima preto e branco, o que me concede legitimidade para abordar temas maniqueístas —, já vi muitos milagres. Já vi ratos fingirem-se de mortos para enganar donas de casa. Já vi uma criança dar-me uma sardinha inteira sem esperar que eu fizesse um truque. Já vi um veterinário dizer que não valia a pena vacinar-me pela sexta vez contra uma doença que nem os morcegos apanham.

Mas confesso: nada me preparou para o que encontrei no título do Correio da Manhã. Leiam, meus caros, com fé e estupefacção:

“Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”

Vamos aos pormenores. Primeiro, não só temos um camião que se atira a crianças e a um autocarro, como ainda os atira para uma ribanceira. Assim mesmo: atira-os. Os puristas devem achar que existe aqui um intolerável erro gramatical. Atira-os. Quem é os? As crianças, presumimos. Mas há aqui uma pequena questão de ordem gramatical: o verbo atirar é transitivo directo, tudo bem, mas o pronome os remete para um sujeito masculino plural. E se é para designar as crianças, então deveríamos ter atira-as. Sim, as. Porque, surpresa!, crianças é um substantivo feminino. Mesmo quando são 37 e alguma até joga futebol e gosta de camiões, continuam a ser as crianças.

Mas… sucede que, analisando bem, nem há erro. Isto é, se considerarmos que o camião de areia atira o autocarro (masculino) e, dentro dele, 37 crianças (femininas), então a forma composta os até pode estar sintacticamente justificada — ainda que não convença nem um cego em dia de nevoeiro. Portanto, puristas da gramática, sosseguem: o Correio da Manhã, por milagre — ou por pura inconsciência sintáctica —, até esteve gramaticalmente certo, mesmo parecendo idiota.

Resolvido isto, vamos ao essencial. Temos, então, um camião de 40 toneladas de areia a embater num autocarro e a projectá-lo ribanceira abaixo. Mas isto, ao contrário do título “Milagre na A8: camião com 40 toneladas de areia embate em autocarro com 37 crianças e atira-os para ribanceira”, não é um milagre! Isto é o resultado previsível das leis da Física clássica, mais especificamente da Segunda Lei de Newton, formulada no século XVII, e que nos diz que a força exercida sobre um corpo (F) é igual à massa (m) desse corpo multiplicada pela sua aceleração (a), ou seja: F = m × a.

Num exemplo mundano — mas infelizmente real —, se temos um camião com 40.000 quilogramas de massa a deslocar-se a determinada velocidade (digamos, 90 km/h, porque milagres raramente respeitam os limites), o impacto com um autocarro ligeiro, carregado de matéria-prima humana em idade escolar, gera uma força de colisão suficiente para vencer a inércia e lançar o conjunto infanto-veicular pela ribanceira abaixo. E quando dizemos força, falamos de algo concreto: cerca de um milhão de Newtons — sim, 1.000.000 N, numa estimativa simples em que o camião trava bruscamente num segundo.

Para se ter uma ideia, é o equivalente a levar, de uma só vez, 200 murros de Mike Tyson, todos concentrados no mesmo ponto e no mesmo instante — o suficiente para transformar um chassis em acordeão. Isso não é milagre. É Física. É Cinemática. É Dinâmica. É Física em movimento, é Mecânica aplicada a ferro e carne.

Milagre seria o camião parar no ar, meditar sobre a vida e recuar, envergonhado pelas suas intenções de maltratar crianças. Milagre seria o autocarro converter-se numa pomba e planar sobre o vale, ao som de um coral de Bach. Milagre seria o jornalista saber distinguir entre uma catástrofe com causas perfeitamente naturais, um acaso e um acto divino. Mas não. Para o Correio da Manhã, aparentemente, basta que um autocarro com 37 crianças caia numa ribanceira — depois de ser abalroado por um camião de 40 toneladas de areia — para haver milagre.

Senhores, contenham-se. Eu sei que o milagre a que se refere o Correio da Manhã não está no título, mas na ausência de vítimas, tanto assim que alteraram o título na versão digital mesmo mantendo o permalink. Mas, mesmo assim: milagre? Milagre seria o camião ter parado a tempo. Milagre seria não ter havido acidente. Milagre seria o Correio da Manhã ter enviado um jornalista que distinguisse entre causa e consequência, entre acção divina e reacção em cadeia. Mas não. Portanto, para o Correio da Manhã, feita a correcção, milagre é isto: um camião cheio de areia bate num autocarro cheio de crianças, tudo se precipita ribanceira abaixo e não morre ninguém.

Sobre milagres desta natureza, em acidentes evitáveis, sempre serei céptico. Mas tenho ainda a esperança, talvez mesmo a fé e a crença, de que um dia, sim, um dia, talvez a Graça divina desça e conceda ao jornalismo sensacionalista um milagre a sério: não assassinarem constantemente a inteligência dos leitores.

Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

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